ESPELHO MÁGICO
Manoel de Oliveira, Espelho mágico, Portugal, 2005

O espelho mágico nos permite ver o passado. Através dele, olhamos nossas vidas, que consistem no somatório de tudo que fizemos e deixamos de fazer, de tudo que acreditamos ou desprezamos, de todos os lugares que visitamos, de todas as pessoas que amamos ou que deixamos de amar. Nós, que tentamos capturar o Tempo porque tememos a Morte, mas que, na nossa breve passagem sobre a terra, temos, sobretudo, medo de viver.

Alfreda está obcecada pela Virgem Maria. Quer Vê-La, quer que Ela lhe apareça em visão para que possam conversar. Acredita, inclusive, que a mãe de Jesus era rica, tal qual ela mesma. Saído da prisão, Luciano vai trabalhar no verdadeiro castelo onde Alfreda e Bahia, seu marido, habitam. Com emprego indefinido, ora motorista, ora conselheiro, Luciano e o amigo Filipe Quinta, falsário de vocação e afinador de pianos de profissão, resolvem aplicar golpe na ricaça, fazendo-a crer que se encontra diante da Virgem. Porém, a depressão que acomete Alfreda, as dúvidas quanto ao mistério e à maravilha da vida, acabam por levá-la à morte.

Adaptado pelo próprio Manoel de Oliveira do romance A Alma dos Ricos, de Agustina Bessa-Luís (sua fonte habitual de argumentos, como provam O Princípio da Incerteza, Inquietude, Party, Vale Abraão e Francisca), O Espelho Mágico une as histórias a princípio incompatíveis de Alfreda e de Luciano, pois, se ela é rica e religiosa, ele é pobre e descrente. Porém, em comum, ambos possuem passados de sofrimento: Alfreda, pelas obrigações que a fortuna lhe impôs, enquanto Luciano, pela trágica paixão por Camila, que o trocou por homem de melhor classe social. Não que Manoel de Oliveira os explicite, já que o mecanismo presente em seu cinema, e tão cristalino (no sentido de pureza, não de visibilidade) em Um Filme Falado e em Viagem ao Princípio do Mundo, aponta para a impregnação do tempo nos espaços, nos gestos, nas falas, espalhando-se por todos os lados e entrando de forma avassaladora na alma – as árvores que balançam, as flores que desabrocham, o vento que sopra, as longas escadarias do castelo, os espelhos no quarto. 

Por que encenar o passado através de flashbacks, uma vez que tudo é tempo, o qual se converte seja nos acontecimentos naturais que existem apenas no átimo em que ocorrem, seja nos objetos fabricados pelo homem, que guardam em si a memória da sociedade que os criou? O cineasta, ao contrário, prefere que os personagens revelem somente o que desejarem sobre suas vidas anteriores ao filme, respeitando-lhes a intimidade, e nada mais.

Na obsessão que sente pela Virgem Maria, Alfreda se cerca de diversos conselheiros: padre Clodel, a freira que encontra no jardim e, especialmente, o professor Heschel, de quem ouve que Nossa Senhora também era rica, teoria com a qual se agarra para, através da identificação com sua modelo, encontrar o que existe de extraordinário em sua própria vida, fora-do-comum em relação às banalidades cotidianas. Para Alfreda, Maria representa o Céu, o inexplicável do mundo, a beleza que o homem busca a fim de se tornar igualmente divino. No entanto, comprimida entre o passado e o futuro (a morte, única certeza com a qual nascemos – e como seria bem ter um mestre para seguir, sem que precisássemos pensar nela sozinhos), a existência de Alfreda se assemelha à prisão de que Luciano é solto no início do filme, ou ao estado de coma da heroína antes de morrer, pois significa a morte-vida, o limbo onde se vaga sem sentido e sem esperanças, o ambiente em que tudo está à mostra sem que se possa de fato enxergar, o vazio repleto de questões e ansioso por respostas para preenchê-lo – quiçá um filho, a maternidade santificada que Alfreda deseja sem sucesso, mas que Maria alcançou mesmo sendo virgem.

Embora não possa ter filhos gerados em seu ventre, Alfreda trata de adotá-los, seja nos alunos de música que seu marido patrocina, seja em Luciano (que admite ao irmão o relacionamento filial que mantém com ela), posto que o ajuda a se livrar das drogas e a lidar melhor com a saudade por Camila. Em Espelho Mágico, personificada pela mais pura e santa de todas, está em jogo a capacidade ímpar da mãe de criar vida onde antes não havia, bem como a revelação de que o processo no qual nascimento, morte e renascimento se interligam, transformando continuamente o efêmero no eterno, abarca a todos e, por não ter início nem fim, precisa apenas ser percebido, ao invés de gerado – ver com novos olhos, descobrir que Deus (a divindade que independe de religiões e que se origina na procura humana pelo Conhecimento) está contido no que existe de mais simples do dia-a-dia.

Luciano se liberta da opressão do passado, Filipe Quinta se apaixona por Abril (a mulher que, no golpe que aplicariam, interpretaria a Virgem Santíssima), e mesmo Alfreda, antes de morrer, enxerga que o reflexo do sol na água se mostra tão extraordinário e belo quanto às visões de Maria pelas quais suspirava. Manoel de Oliveira, ao falar da Morte e do Tempo em Espelho Mágico, chega à conclusão de que, apesar dos pesares, é bom estar no mundo. Vivamos, pois, seja lá como for.

Paulo Ricardo de Almeida