O espelho mágico nos permite
ver o passado. Através dele, olhamos nossas vidas, que
consistem no somatório de tudo que fizemos e deixamos
de fazer, de tudo que acreditamos ou desprezamos, de
todos os lugares que visitamos, de todas as pessoas
que amamos ou que deixamos de amar. Nós, que tentamos
capturar o Tempo porque tememos a Morte, mas que, na
nossa breve passagem sobre a terra, temos, sobretudo,
medo de viver.
Alfreda está obcecada pela Virgem Maria. Quer Vê-La,
quer que Ela lhe apareça em visão para que possam conversar.
Acredita, inclusive, que a mãe de Jesus era rica, tal
qual ela mesma. Saído da prisão, Luciano vai trabalhar
no verdadeiro castelo onde Alfreda e Bahia, seu marido,
habitam. Com emprego indefinido, ora motorista, ora
conselheiro, Luciano e o amigo Filipe Quinta, falsário
de vocação e afinador de pianos de profissão, resolvem
aplicar golpe na ricaça, fazendo-a crer que se encontra
diante da Virgem. Porém, a depressão que acomete Alfreda,
as dúvidas quanto ao mistério e à maravilha da vida,
acabam por levá-la à morte.
Adaptado pelo próprio Manoel de Oliveira do romance
A Alma dos Ricos, de Agustina Bessa-Luís (sua
fonte habitual de argumentos, como provam O Princípio
da Incerteza, Inquietude, Party, Vale
Abraão e Francisca), O Espelho Mágico
une as histórias a princípio incompatíveis de Alfreda
e de Luciano, pois, se ela é rica e religiosa, ele é
pobre e descrente. Porém, em comum, ambos possuem passados
de sofrimento: Alfreda, pelas obrigações que a fortuna
lhe impôs, enquanto Luciano, pela trágica paixão por
Camila, que o trocou por homem de melhor classe social.
Não que Manoel de Oliveira os explicite, já que o mecanismo
presente em seu cinema, e tão cristalino (no sentido
de pureza, não de visibilidade) em Um Filme Falado
e em Viagem ao Princípio do Mundo, aponta para
a impregnação do tempo nos espaços, nos gestos, nas
falas, espalhando-se por todos os lados e entrando de
forma avassaladora na alma – as árvores que balançam,
as flores que desabrocham, o vento que sopra, as longas
escadarias do castelo, os espelhos no quarto.
Por que encenar o passado através de flashbacks,
uma vez que tudo é tempo, o qual se converte seja nos
acontecimentos naturais que existem apenas no átimo
em que ocorrem, seja nos objetos fabricados pelo homem,
que guardam em si a memória da sociedade que os criou?
O cineasta, ao contrário, prefere que os personagens
revelem somente o que desejarem sobre suas vidas anteriores
ao filme, respeitando-lhes a intimidade, e nada mais.
Na obsessão que sente pela Virgem Maria, Alfreda se
cerca de diversos conselheiros: padre Clodel, a freira
que encontra no jardim e, especialmente, o professor
Heschel, de quem ouve que Nossa Senhora também era rica,
teoria com a qual se agarra para, através da identificação
com sua modelo, encontrar o que existe de extraordinário
em sua própria vida, fora-do-comum em relação às banalidades
cotidianas. Para Alfreda, Maria representa o Céu, o
inexplicável do mundo, a beleza que o homem busca a
fim de se tornar igualmente divino. No entanto, comprimida
entre o passado e o futuro (a morte, única certeza com
a qual nascemos – e como seria bem ter um mestre para
seguir, sem que precisássemos pensar nela sozinhos),
a existência de Alfreda se assemelha à prisão de que
Luciano é solto no início do filme, ou ao estado de
coma da heroína antes de morrer, pois significa a morte-vida,
o limbo onde se vaga sem sentido e sem esperanças, o
ambiente em que tudo está à mostra sem que se possa
de fato enxergar, o vazio repleto de questões e ansioso
por respostas para preenchê-lo – quiçá um filho, a maternidade
santificada que Alfreda deseja sem sucesso, mas que
Maria alcançou mesmo sendo virgem.
Embora não possa ter filhos gerados em seu ventre, Alfreda
trata de adotá-los, seja nos alunos de música que seu
marido patrocina, seja em Luciano (que admite ao irmão
o relacionamento filial que mantém com ela), posto que
o ajuda a se livrar das drogas e a lidar melhor com
a saudade por Camila. Em Espelho Mágico, personificada
pela mais pura e santa de todas, está em jogo a capacidade
ímpar da mãe de criar vida onde antes não havia, bem
como a revelação de que o processo no qual nascimento,
morte e renascimento se interligam, transformando continuamente
o efêmero no eterno, abarca a todos e, por não ter início
nem fim, precisa apenas ser percebido, ao invés de gerado
– ver com novos olhos, descobrir que Deus (a divindade
que independe de religiões e que se origina na procura
humana pelo Conhecimento) está contido no que existe
de mais simples do dia-a-dia.
Luciano se liberta da opressão do passado, Filipe Quinta
se apaixona por Abril (a mulher que, no golpe que aplicariam,
interpretaria a Virgem Santíssima), e mesmo Alfreda,
antes de morrer, enxerga que o reflexo do sol na água
se mostra tão extraordinário e belo quanto às visões
de Maria pelas quais suspirava. Manoel de Oliveira,
ao falar da Morte e do Tempo em Espelho Mágico,
chega à conclusão de que, apesar dos pesares, é bom
estar no mundo. Vivamos, pois, seja lá como for.
Paulo Ricardo de Almeida
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