AMOR PARA SEMPRE
Roger Mitchell, Enduring love, Inglaterra, 2005

Parece haver dois filmes, ou pelo menos dois conflitos distintos, em Amor Para Sempre, do inglês Roger Mitchell, baseado em livro de Ian McEwan. Primeiro temos o trauma provocado em um professor pela morte de um desconhecido, depois que ambos, mais um grupo de pessoas, tentam conter o vôo descontrolado de um balão com uma criança dentro.  O protagonista, intelectual com visão biológica do amor, dotado de racionalismo ferrenho, acha-se culpado, e é atormentado pela lembrança do acidente e pela possibilidade de tê-lo evitado. Acha que sua opção - largar a corda quando o balão começa a voar - foi falha de caráter. Covardia. Individualismo. O segundo conflito, que nasce mais ou menos atrelado ao primeiro, mas toma outra rumo, é mais insólito.

O protagonista começa a ser seguido por um sujeito a quem conheceu no local da tragédia, e esse sujeito revela, depois de algum mistério, qual é seu interesse no protagonista. Papo religioso, papo sexual – muito estranho. Esse segundo núcleo dramático arquiva o primeiro, com sua base psicológica e moral, para revestir a história com uma linha de “suspense com psicopata”. A questão da culpa se dilui, e abre espaço para a ameaça. Em quaisquer casos, investe-se no desequilíbrio dos dois personagens - na loucura consciente de um e na piração orgânica do segundo. O amor mostra-se uma questão patológica. A suspeita de conspiração toma conta do personagem central, insistindo, assim, em seus princípios racionalistas.

Roger Mitchell não se limita a ligar a câmera para filmar, em 2:35, com ampla margem lateral, esse drama moral-psiquíco com mecanismos de thriller: quer correr atrás de um estilo que potencialize a instabilidade do universo filmado. Corre demais até. Talvez para se contrapor à sobriedade, para muitos conservadora, de Um Lugar Chamado Notting Hill e A Mãe, decide por condução quase frenética. Ele coloca a câmera em vários ângulos de um mesmo espaço, sem necessariamente obter efeitos plásticos de suas mudanças de enquadramento, tampouco uma dinâmica visual gerada pela passsagem de um plano a outro. Puro maneirismo para se manter a narrativa em ação constante, seja o movimento dos corpos dos atores, seja o movimento da câmera ou dos cortes. Mitchell também busca um ar de modernidade quando cultiva a dissonância de som e imagem no mesmo plano. Até mesmo a sequência do vôo do balão e da queda subsequente são nada óbvias, embora seja possível também vê-las apenas como fruto de uma direção pouco hábil.

Quando resolve observar mais os seres e agilizar menos a imagem, Mitchell encontra um casal de atores que, ao contrário daquele outro de 9 Canções, do também inglês  Michael Winterbotton, revela a intimidade com algum grau de autenticidade. Não se trata de sexo, como no outro filme, mas de tensão. A relação do protagonista vai para o vinagre quando o peso da culpa passa a ter importância superior à sua namorada (Samantha Morton). Mitchell tem a vantagem de lidar com uma circunstância dramática quando filma essa intimidade de casal. Eles não vivem a intimidade cotidiana, mas uma intimidade espetacular. De qualquer forma, se a princípio parece disposto a agarrar-se no minímo e penetrar nele até extrair caldo dramático, Mitchell abandona essa proposta: ao inserir a enigmática figura do “perseguidor” do protagonista, o filme larga o conflito psicológico e toma o patológico, substituindo a crise emocional pela intriga com acontecimentos novos.

O diretor demonstra ter uma habilidade maior para construir um sentido de cena, de conflitos entre personagens durante conversas, sem exibir a mesma capacidade quando “esculpe” a imagem, empregando não só enquadramentos variados como também acelerando ou colocando as situações em câmera lenta. Mitchell parece um diretor conservador brincando de pequenos experimentalismos. Seu conservadorismo competente já era conhecido de Um Lugar Chamado Notting Hill e A Mãe, filmes diferentes entre si, mas dotados de um esquematismo dramático que, com resultados variados, revelavam um diretor apoiado demais nas etapas posteriores e anteriores à filmagem. É verdade que A Mãe, em alguns momentos, fugia do previsível. Tínhamos lá uma família também ameaçada de dissolução por conta da força dos instintos incontroláveis (de uma mãe coroa com o jovem homem de sua filha). A protagonista de meia-idade manifesta seu desejo sem vergonha de fazê-lo com o despudor necessário para qualquer manifestação bruta de desejos. A circunstância, para Mitchell, porém, pedia “respeito”. A câmera nos dava a ver algo de carnal desse desejo, mas mantinha uma distância até certo ponto movida por pudor. Esse era o interesse limítrofe do filme.

Dois “roteirismos” manifestam-se nas soluções dos conflitos de seu novo filme: 1) O casal reeditará o piquenique interrompido no início, interrupção que, no desenvolver das situações, interromperá a própria relação deles. 2) A necessidade circunstancial do herói atormentado em envolver-se em uma segunda morte para enterrar o trauma gerado pela primeira. Mas, há menos auto-limites em Amor Para Sempre, afinal, agora, estamos em um filme mais moderninho. Vemos primeiro a queda de um homem no início. Se não se mostra o impacto do corpo no chão, os efeitos físicos serão mostrados logo adiante, assim como a imagem da queda, de outro ângulo, será repetida mais de uma vez. Mitchell não crê na força dramática da morte e do acidente. Opta por uma estilização que, embora às vezes possa causar algum estranhamento positivo, quase sempre mostra-se questionável como arma para potencializar o material manuseado pelo diretor.

Cléber Eduardo