Um modelo exemplar de toda uma
forma de se fazer cinema, este filme de Johnnie To é
um dos objetos de vital interesse para se compreender
não só o cinema de ação em Hong Kong – para isso é mais
recomendável recorrer à uma quantidade mais ampla de
obras, cada vez mais fáceis de se encontrar em território
brasileiro –, mas também como uma obra que vira do avesso
o gênero a que pertence, sem deixar de lhe fazer parte.
Election se estrutura de forma básica, apostando
inclusive numa narrativa muito pouco movimentada para
os padrões dos policiais de HK, mostrando duas vertentes
de uma das sociedades de crime organizado locais preparando
terreno para a eleição interna, onde um novo líder para
os próximos anos seria eleito. O impacto do resultado
e os dois possíveis líderes que ali guerream colocam
não só o grupo em confronto com si mesmo, mas também
a policia sem saber exatamente a quem atacar; as duas
facções correm atrás de um bastão que significa a força
máxima dentro do grupo – e jamais se é posto em questão
não se curvar diante dele.
Tudo é conduzido com um calma que impressiona: além
de impor para o filme um rigor bastante forte nos quadros,
To não só tem um tato especial para o corte, como acima
de tudo demonstra o talento de saber quando resolver
a encenação, às vezes solucionando uma cena inteira
com um plano que muda toda a perspectiva da cena. Elogios
estendendidos para o exímio trabalho de Chen Siu-keung
(fotógrafo) e Patrick Tam (montador), sendo Chen um
colaborador regular de To. Como exemplo basta pegar
a sequência em que, algum tempo após a prisão dos líderes
das facções e do então líder da sociedade há uma cena
em que, a pedido da polícia, o líder maior tenta negociar
uma trégua das facções que viesse a poupar o banho de
sangue, enquanto a câmera alterna entre as grades –
eles estão presos num corredor de celas, lado a lado
– e a cada vez mais óbvia falha da tentativa de paz
se faz ver, o cineasta abre o plano e usa de forma brilhante
o espaço do scope para mostrar todas as celas num plano
aberto só, redinamizando tudo o que mostrava.
Como escolhe apostar por uma encenação onde a tensão
dá o tom, especialmente após um certo momento onde o
confronto já não parece mais evitável, To usufrui ao
máximo de seus atores, sobretudo Simon Yam e Tony Leung
(Ka Fai, não confundir com Chiu Wai, habitual ator de
Wong Kar Wai e de tantos outros filmes de HK, embora
este Leung também já tenha trabalhado com Wong) que
realmente impressionam como Lok e Big D, os dois líderes
das facções, alternando tons explosivos e quase zens
com uma tranqüilidade invejável. To arrasta este tom
tenso de uma forma que qualquer novo passo para a trama
possa ser esperado, desarmando o espectador por completo.
Quando Lok finalmente tem o bastão que lhe é de direito,
segundo as regras da sociedade que participam, e se
reúne com Big D dentro de seu carro para decidir o futuro
próximo da organização, e acima de tudo o seu futuro,
o cineasta encontra o limite para a tensão que vinha
construindo até ali com tempos longos, e em outro momento
brilhante resolve toda a cena – que mesmo antes do corte
é excepcional, não só em conceito mas em imagem – com
um corte sensacional para a cerimônia que ergueria Lok
oficialmente como o líder do grupo pelos próximos anos.
E é então que To demonstra que as intenções aqui vão
para além de construir um grande crescente de tensão,
e que tudo isso passa principalmente por uma forma de
olhar que ele constrói por todo o filme. A ética existente
entre os personagens, que mesmo em confronto respeitam-se
de forma impressionante, é a mesma de To com aqueles
que filma: este modo de olhar que não sobrepõe um personagem
ao outro, que acompanha todos eles com igual dedicação,
é chave para tudo aquilo que To consegue em outra camada.
Há pelo menos uma cena sensacional neste aspecto, com
Lok se reunindo com todos aqueles que arriscaram suas
vidas para lhe recuperar o bastão. Quando o confronto
chega ao fim, To arrisca tudo o que construiu de forma
corajosa alongando a trama mais um pouco, dando um passo
a mais. Há ainda coisas para acontecerem, atos a serem
realizados. E há ainda a seqüência final, com uma decupagem
sensacional, uma cena que fecha o filme e de certa forma
um ciclo que o filme tenta retratar. Se trata de uma
seqüência quase brutal, mas ao mesmo tempo melancólica,
em que Lok quebra seu tom de calmaria, e essa passagem
do personagem é tão bem arquitetada na câmera quanto
por parte de Simon Yam, especialmente brilhante nesta
cena. O plano final de Lok e seu filho no carro (“vamos
para casa”), não deixa dúvidas: trata-se de um filme
especial.
Guilherme Martins
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