ELEIÇÃO
Johnnie To, Election/Hak seh wui, Hong Kong, 2005

Um modelo exemplar de toda uma forma de se fazer cinema, este filme de Johnnie To é um dos objetos de vital interesse para se compreender não só o cinema de ação em Hong Kong – para isso é mais recomendável recorrer à uma quantidade mais ampla de obras, cada vez mais fáceis de se encontrar em território brasileiro –, mas também como uma obra que vira do avesso o gênero a que pertence, sem deixar de lhe fazer parte. Election se estrutura de forma básica, apostando inclusive numa narrativa muito pouco movimentada para os padrões dos policiais de HK, mostrando duas vertentes de uma das sociedades de crime organizado locais preparando terreno para a eleição interna, onde um novo líder para os próximos anos seria eleito. O impacto do resultado e os dois possíveis líderes que ali guerream colocam não só o grupo em confronto com si mesmo, mas também a policia sem saber exatamente a quem atacar; as duas facções correm atrás de um bastão que significa a força máxima dentro do grupo – e jamais se é posto em questão não se curvar diante dele.

Tudo é conduzido com um calma que impressiona: além de impor para o filme um rigor bastante forte nos quadros, To não só tem um tato especial para o corte, como acima de tudo demonstra o talento de saber quando resolver a encenação, às vezes solucionando uma cena inteira com um plano que muda toda a perspectiva da cena. Elogios estendendidos para o exímio trabalho de Chen Siu-keung (fotógrafo) e Patrick Tam (montador), sendo Chen um colaborador regular de To. Como exemplo basta pegar a sequência em que, algum tempo após a prisão dos líderes das facções e do então líder da sociedade há uma cena em que, a pedido da polícia, o líder maior tenta negociar uma trégua das facções que viesse a poupar o banho de sangue, enquanto a câmera alterna entre as grades – eles estão presos num corredor de celas, lado a lado – e a cada vez mais óbvia falha da tentativa de paz se faz ver, o cineasta abre o plano e usa de forma brilhante o espaço do scope para mostrar todas as celas num plano aberto só, redinamizando tudo o que mostrava.

Como escolhe apostar por uma encenação onde a tensão dá o tom, especialmente após um certo momento onde o confronto já não parece mais evitável, To usufrui ao máximo de seus atores, sobretudo Simon Yam e Tony Leung (Ka Fai, não confundir com Chiu Wai, habitual ator de Wong Kar Wai e de tantos outros filmes de HK, embora este Leung também já tenha trabalhado com Wong) que realmente impressionam como Lok e Big D, os dois líderes das facções, alternando tons explosivos e quase zens com uma tranqüilidade invejável. To arrasta este tom tenso de uma forma que qualquer novo passo para a trama possa ser esperado, desarmando o espectador por completo. Quando Lok finalmente tem o bastão que lhe é de direito, segundo as regras da sociedade que participam, e se reúne com Big D dentro de seu carro para decidir o futuro próximo da organização, e acima de tudo o seu futuro, o cineasta encontra o limite para a tensão que vinha construindo até ali com tempos longos, e em outro momento brilhante resolve toda a cena – que mesmo antes do corte é excepcional, não só em conceito mas em imagem – com um corte sensacional para a cerimônia que ergueria Lok oficialmente como o líder do grupo pelos próximos anos.

E é então que To demonstra que as intenções aqui vão para além de construir um grande crescente de tensão, e que tudo isso passa principalmente por uma forma de olhar que ele constrói por todo o filme. A ética existente entre os personagens, que mesmo em confronto respeitam-se de forma impressionante, é a mesma de To com aqueles que filma: este modo de olhar que não sobrepõe um personagem ao outro, que acompanha todos eles com igual dedicação, é chave para tudo aquilo que To consegue em outra camada. Há pelo menos uma cena sensacional neste aspecto, com Lok se reunindo com todos aqueles que arriscaram suas vidas para lhe recuperar o bastão. Quando o confronto chega ao fim, To arrisca tudo o que construiu de forma corajosa alongando a trama mais um pouco, dando um passo a mais. Há ainda coisas para acontecerem, atos a serem realizados. E há ainda a seqüência final, com uma decupagem sensacional, uma cena que fecha o filme e de certa forma um ciclo que o filme tenta retratar. Se trata de uma seqüência quase brutal, mas ao mesmo tempo melancólica, em que Lok quebra seu tom de calmaria, e essa passagem do personagem é tão bem arquitetada na câmera quanto por parte de Simon Yam, especialmente brilhante nesta cena. O plano final de Lok e seu filho no carro (“vamos para casa”), não deixa dúvidas: trata-se de um filme especial.

Guilherme Martins