DOUTORES DA ALEGRIA
Mara Mourão, Brasil, 2005

É preciso tocar em uma questão exterior ao filme, mas não ao cinema e à crítica, antes de uma aproximação com Doutores da Alegria. Ter o conhecimento de ser esse um filme de Mara Mourão, diretora de Alô?! e Avassaladoras, certamente alimenta expectativas antecipadas. Não é caso exclusivo: qualquer filme cria uma esperança qualquer no crítico caso, esse conheça outros trabalhos do diretor. Isso pode até interferir na percepção, pois supresas e frustrações, a rigor, só são possíveis se o crítico, antes de ver o filme, fizer suposições baseadas em conhecimento da obra do realizador. No caso de Mara Mourão, levando em conta esse raciocínio, a expectativa é negativa: Alô?! e Avassaladoras, hoje já desbotados na memória, deixaram lembrança desanimadora. Em matéria de humor, registro de ambos, Mara Mourão nos parece insignificante. Falta-lhe traquejo para controlar os tempos das piadas e escolher a maneira mais eficaz de construir o campo. Doutores da Alegria, talvez em parte por conta da fragilidade dos dois filmes anteriores, é, portanto, uma surpresa se a postura inicial for de pé atrás.

O material, evidentemente, ajuda. Mara Mourão encadeia depoimentos de atores que, vestidos e maquiados de palhaços, atuam para crianças em hospitais. Há muitos fragmentos de depoimentos dos “doutores”, explicações sobre a importância da atividade cênica-interativa, para eles e para os pacientes, momentos dessas atuações. Pode-se ver o filme, portanto, por esses dois recortes: um é o processo criativo dos atores, com seus métodos e reflexões, que, se não são desprovidos de emoção nas palavras, ofertam certo distanciamento: o da análise. Outro são as interações com as crianças, situações mais calorosas, mais dotadas de emoção, sem tanta interferência da diretora, já que, embora a câmera esteja ali com o objetivo de captar imagens para um filme, o acontecimento existiria sem a sua presença e, mesmo não ignorando os sinais de performance para a câmera, essa câmera capta autenticidade nas “cenas”.

Esses momentos observacionais, porém, apesar de serem os mais fortes e vivos, são problemáticos pelo ritmo, mais ou menos constante, que determina os cortes. Aparentemente, captou-se, em digital, com duas câmeras. Há vários momentos com plano e contraplano, algo impossível de fazer com uma câmera apenas, sem um trabalho de encenação e repetição da cena. O que facilitaria, porém, acaba atrapalhando. A quantidade de material registrado acaba determinando um caráter apressado de cada plano, sem dar tempo para a cena se estabelecer. Também se opta por não dar espaço ao “depois”, a como reagem as crianças nas ausências do palhaço, a como as palhaçadas interferem na vida delas fora do espetáculo.

Seu recorte escolhido, em cima dos palhaços, mais que das crianças, tem algo de propagandístico e, nesse sentido, pouco vale a informação de que o criador dos Doutores, Wellington Nogueira, é marido de Mara Mourão. Mesmo se não se souber disso, pelo jeito como as coisas estão articuladas, é evidente o tom propagandístico, de adesão, sobretudo quando os atores tecem considerações sobre o caráter subversivo da atuação deles, usando uma máscara (o nariz, a maquiagem) para jogar fora as máscaras e, assim, ir para o sacrifício da boa imagem e enfiar-se no mico completo, varrendo do corpo e da voz os traços da civilização dos bons modos. Eles falam disso como padres falam de Deus. Há algo de mágico nessa “missão” deles (segundo os próprios), algo de beatificado em suas falas. Gasta-se tempo demais com a auto-legitimação da atividade e tempo de menos com a atividade propriamente dita. Mara Mourão empenha-se mais nas explicações, pela boca dos palhaços, e pouco nas evidências das ações em si. No cômputo geral, contudo, demonstra progresso.

Cléber Eduardo