O
próposito de Do Luto à Luta, de
Evaldo Mocarzel, salta aos olhos e ouvidos. Estamos
diante de uma militância cinematográfica
pela inserção sócio-cultural dos
portadores de Down. Para provar a validade de sua tese,
segundo a qual as crianças com Down têm
vida quase normal se inseridas, o diretor ouve os pais
e os filhos, lado a lado, com os filhos demonstrando
consciência de sua condição, ouvindo
os pais falando do momento da "revelação",
da notícia da deficiência genética.
As falas dos pais são testemunhos da resistência
deles à adversidade por meio do amor familiar.
Há uma corrente de solidariedade nessa exposição,
com cada um confessando seu triunfo na suposta derrota.
Percebe-se nas palavras e no olhar de cada entrevistado
uma demonstração de espírito superior,
compreensível para quem lida com dificuldades
impostas pelo curso da vida. Alguns dos pais falam de
seus filhos e da convivência com eles como se
estivessem tratando de algo sagrado e divino. Ouve-se
um dos pais dizer que, na possibilidade de escolher,
optaria por ter um filho com Down. É a afirmação
mais reveladora de todas e, de uma certa forma, sintetiza
um espírito geral dos depoimentos.
Embora todos queiram os filhos inseridos, parecem ver
algo de puro neles, menos contamináveis pela
mundanidade da civilização, com espírito
mais nobre, por assim dizer.
O fardo dos pais torna-se também uma espécie
de ferramenta purificadora, que faz de cada um dos "premiados"
pelo "acaso" um ser também sagrado.
Isso está, em alguma medida, na tela. Tem algo
de terapia social para quem fala e algo de união
fraterna para quem vê. Eles desabafam. Nós
nos solidarizamos. É a importância social
do filme.
Já a participação dos filhos com
Down, quase sempre empenhada em nos mostrar como eles
são "normais", aproxima-se de um terreno
mais arriscado. Talvez a intenção de Mocarzel
seja a mais nobre possível. Ele registra a demonstração
de capacidades das crianças, adolescentes e adultos
portadores da deficiência genética, para
nos informar sobre até onde vai o potencial deles.
Há casos de prática de hipismo, de adolescente
que cuida do pai, de adolescente que deseja transar,
de um playboy, um egocêntrico, um hedonista,
uma jovem cheia de revolta com o preconceito sofrido
e um literato cheio de sabedoria. Passadas algumas "demonstrações"
de habilidades e de consciência, contudo, começa
a imperar, na falta de termo melhor, uma lógica
da inserção pela produtividade. Exemplo:
o literato é estimulado pelo diretor a dizer
o nome de compositores austríacos para vermos
se ele é mesmo um Down culto. O normal para o
filme, portanto, é o espetacular. É preciso
fazer algo especial para se provar digno da aceitação
social. Um Down sem desejos esportivos ou intelectuais,
um Down absolutamente normal, medíocre em sua
experiência, não tem espaço nesse
esquema de campeonato de talentos. Assim está
na tela e a tela supera intenções. Assim
é na vida dos seres "normais", aptos
a ingressar no mercado de trabalho, mas só se
provarem essa aptidão. A inserção
no mundo da competitividade passa, então, por
essa demonstração da capacidade de fazer
coisas.
E ai surge a passagem mais problemática de Do
Luto à Luta. Durante uma entrevista com mãe
e filha adolescente, a mãe pede a filha para
contar seu maior desejo, pois essa manifestação
pode ajudar outros pais e filhos na mesma situação.
Ela se envergonha. A mãe insiste. Ela assume:
está cheia de vontade de iniciar-se sexualmente.
A passagem é complicada. Por um lado, desmistifica-se
a sexualidade, sobretudo em sua aurora. Por outro, a
menina tem sua intimidade tornada pública apenas
porque é Down, porque, como jovem especial, tem
a tarefa cívica de compartilhar esse desejo pessoal.
Nesse momento, a normalização buscada
é, mais uma vez, arquivada. Pois a intimidade
dela só tem valor no filme porque ela não
é vista ali como normal e pode ajudar a comunidade
com sua confissão. A sexualidade dela entra na
lógica da produtividade.
Tal lógica acaba esbarrando em outra quando o
diretor delega a câmera e a equipe para um jovem
entrevistado comandar um trecho ficcional do filme.
Temos ai duas questões problemáticas.
Uma é a continuação do exibição
de talentos. Outra é uma certa busca romântica
e idealista, quase metafísica, de um olhar e
de uma subjetividade do portador de Down. É como
se o comando da câmera pudesse revelar algo interno
de quem dirige. Isso ganha expressão visual em
trecho anterior, quando, depois de uma mãe afirmar
o quanto há de mistério com sua filha,
vemos um corte para o rosto da filha, perdido em algum
lugar reservado de sua imaginação e percepção.
Nos dois casos (o do garoto que dirige e da menina que
olha para nada), temos um esvaziamento de qualquer impulso
romântico, já que, na imagem, nenhum mistério
é esboçado. Vemos apenas as superfície
dos corpos, os olhares, as expressões faciais,
articuladas com frases melhores ou piores, dependendo
da personalidade e da capacidade retórica de
cada um deles. Não há nada de sagrado
a encontrar. Apenas seres humanos mais ou menos parecidos
com seres humanos sem nenhuma deficiência.
Uma outra seqüência merece destaque. É
o momento no qual Mocarzel é entrevistado por
um garoto. Ele pergunta por que o diretor está
fazendo aquele filme. Mocarzel gagueja. Corte para a
imagem do diretor com uma criança com Down a
quem ele trata por filha. Resposta dada na imagem. A
motivação para o filme está em
casa. É pessoal. Em primeira pessoa. Assumir
essa circunstância anterior ao filme dá
ao diretor um outro estatuto dentro do próprio
filme. Ele deixa de ser o observador de uma circunstância
alheia para se tornar objeto indireto de sua própria
experiência documental, deixando na dinâmica
de entrevistas a sombra de uma primeira pessoa nunca
explicitada fora desse momento de revelação.
Mocarzel é um realizador que não tem medo
de riscos. Pode quebrar a cara com suas soluções,
como no final de Parteiras da Amazônia,
ou obter êxitos ao menos parciais com as "ousadias",
como nesse caso de Do Luto à Luta. É
seu melhor trabalho, até uma revisão prove
em contrário. Inclusive pelos próprios
terrenos movediços onde ousa pisar sem receio
de escorregar.
Cléber Eduardo
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