DO LUTO À LUTA
Evaldo Mocarzel, Brasil, 2004

O próposito de Do Luto à Luta, de Evaldo Mocarzel, salta aos olhos e ouvidos. Estamos diante de uma militância cinematográfica pela inserção sócio-cultural dos portadores de Down. Para provar a validade de sua tese, segundo a qual as crianças com Down têm vida quase normal se inseridas, o diretor ouve os pais e os filhos, lado a lado, com os filhos demonstrando consciência de sua condição, ouvindo os pais falando do momento da "revelação", da notícia da deficiência genética. As falas dos pais são testemunhos da resistência deles à adversidade por meio do amor familiar. Há uma corrente de solidariedade nessa exposição, com cada um confessando seu triunfo na suposta derrota. Percebe-se nas palavras e no olhar de cada entrevistado uma demonstração de espírito superior, compreensível para quem lida com dificuldades impostas pelo curso da vida. Alguns dos pais falam de seus filhos e da convivência com eles como se estivessem tratando de algo sagrado e divino. Ouve-se um dos pais dizer que, na possibilidade de escolher, optaria por ter um filho com Down. É a afirmação mais reveladora de todas e, de uma certa forma, sintetiza um espírito geral dos depoimentos.

Embora todos queiram os filhos inseridos, parecem ver algo de puro neles, menos contamináveis pela mundanidade da civilização, com espírito mais nobre, por assim dizer.

O fardo dos pais torna-se também uma espécie de ferramenta purificadora, que faz de cada um dos "premiados" pelo "acaso" um ser também sagrado. Isso está, em alguma medida, na tela. Tem algo de terapia social para quem fala e algo de união fraterna para quem vê. Eles desabafam. Nós nos solidarizamos. É a importância social do filme.

Já a participação dos filhos com Down, quase sempre empenhada em nos mostrar como eles são "normais", aproxima-se de um terreno mais arriscado. Talvez a intenção de Mocarzel seja a mais nobre possível. Ele registra a demonstração de capacidades das crianças, adolescentes e adultos portadores da deficiência genética, para nos informar sobre até onde vai o potencial deles. Há casos de prática de hipismo, de adolescente que cuida do pai, de adolescente que deseja transar, de um playboy, um egocêntrico, um hedonista, uma jovem cheia de revolta com o preconceito sofrido e um literato cheio de sabedoria. Passadas algumas "demonstrações" de habilidades e de consciência, contudo, começa a imperar, na falta de termo melhor, uma lógica da inserção pela produtividade. Exemplo: o literato é estimulado pelo diretor a dizer o nome de compositores austríacos para vermos se ele é mesmo um Down culto. O normal para o filme, portanto, é o espetacular. É preciso fazer algo especial para se provar digno da aceitação social. Um Down sem desejos esportivos ou intelectuais, um Down absolutamente normal, medíocre em sua experiência, não tem espaço nesse esquema de campeonato de talentos. Assim está na tela e a tela supera intenções. Assim é na vida dos seres "normais", aptos a ingressar no mercado de trabalho, mas só se provarem essa aptidão. A inserção no mundo da competitividade passa, então, por essa demonstração da capacidade de fazer coisas.

E ai surge a passagem mais problemática de Do Luto à Luta. Durante uma entrevista com mãe e filha adolescente, a mãe pede a filha para contar seu maior desejo, pois essa manifestação pode ajudar outros pais e filhos na mesma situação. Ela se envergonha. A mãe insiste. Ela assume: está cheia de vontade de iniciar-se sexualmente. A passagem é complicada. Por um lado, desmistifica-se a sexualidade, sobretudo em sua aurora. Por outro, a menina tem sua intimidade tornada pública apenas porque é Down, porque, como jovem especial, tem a tarefa cívica de compartilhar esse desejo pessoal. Nesse momento, a normalização buscada é, mais uma vez, arquivada. Pois a intimidade dela só tem valor no filme porque ela não é vista ali como normal e pode ajudar a comunidade com sua confissão. A sexualidade dela entra na lógica da produtividade.

Tal lógica acaba esbarrando em outra quando o diretor delega a câmera e a equipe para um jovem entrevistado comandar um trecho ficcional do filme. Temos ai duas questões problemáticas. Uma é a continuação do exibição de talentos. Outra é uma certa busca romântica e idealista, quase metafísica, de um olhar e de uma subjetividade do portador de Down. É como se o comando da câmera pudesse revelar algo interno de quem dirige. Isso ganha expressão visual em trecho anterior, quando, depois de uma mãe afirmar o quanto há de mistério com sua filha, vemos um corte para o rosto da filha, perdido em algum lugar reservado de sua imaginação e percepção. Nos dois casos (o do garoto que dirige e da menina que olha para nada), temos um esvaziamento de qualquer impulso romântico, já que, na imagem, nenhum mistério é esboçado. Vemos apenas as superfície dos corpos, os olhares, as expressões faciais, articuladas com frases melhores ou piores, dependendo da personalidade e da capacidade retórica de cada um deles. Não há nada de sagrado a encontrar. Apenas seres humanos mais ou menos parecidos com seres humanos sem nenhuma deficiência.

Uma outra seqüência merece destaque. É o momento no qual Mocarzel é entrevistado por um garoto. Ele pergunta por que o diretor está fazendo aquele filme. Mocarzel gagueja. Corte para a imagem do diretor com uma criança com Down a quem ele trata por filha. Resposta dada na imagem. A motivação para o filme está em casa. É pessoal. Em primeira pessoa. Assumir essa circunstância anterior ao filme dá ao diretor um outro estatuto dentro do próprio filme. Ele deixa de ser o observador de uma circunstância alheia para se tornar objeto indireto de sua própria experiência documental, deixando na dinâmica de entrevistas a sombra de uma primeira pessoa nunca explicitada fora desse momento de revelação. Mocarzel é um realizador que não tem medo de riscos. Pode quebrar a cara com suas soluções, como no final de Parteiras da Amazônia, ou obter êxitos ao menos parciais com as "ousadias", como nesse caso de Do Luto à Luta. É seu melhor trabalho, até uma revisão prove em contrário. Inclusive pelos próprios terrenos movediços onde ousa pisar sem receio de escorregar.


Cléber Eduardo