DIAS NO CAMPO
Raúl Ruiz, Días de campo, Chile/França, 2005

Don Federico, escritor e “imaginista”, conversa com seu amigo Daniel Rubio. As pessoas à sua volta ora estão lá, ora não estão. Ao falar do romance que escreve(ria) e de suas memórias, as imagens se alternam, se fundem, se transformam, vão e vêm. A diluição das fronteiras entre sonho, memória e “real”, tema recorrente em Raul Ruiz, mescla-se aqui com a própria idéia de criação artística. Criar a si mesmo, viver os sonhos, sofrer a memória, agir em imaginação, fazer um filme. Dias no Campo poderia ser o romance de Federico, ou a confusão de diversos sonhos, ou simplesmente um limbo no qual não há mais vida e tudo o que passou torna-se indistintamente memória. Memória que pinga como a goteira ambulante (e fantasma) que marcava em compasso o tempo na casa do escritor. Que está lá, e só precisa ser contada, escrita, capturada. Nestas imagens, as pessoas aparecem e desaparecem, como espectros que vagam. Vivas ou mortas, fazem parte de um indistinto caldo que alimenta ficções. Como a que Paulita escreve nas cartas que recebe do filho distante, que ela mesma confecciona, talvez com o intuito de alimentar a imaginação de Federico e fazê-lo propor uma viagem, se compadecer da empregada que ama o filho, mas não vê há muito tempo.

Mas espectro, também, parece ser a imagem do filme. Fotografia em digital de definição muito pobre, ela não consegue cativar, a despeito dos sempre ótimos enquadramentos e movimentos de câmera de Ruiz, que partem o espaço, desorientam e (con)fundem pessoas, objetos e paisagem. Essa “ausência de materialidade” visual é certamente o principal motivo da dificuldade que é “se colar” ao filme, estabelecer com ele um pacto, cooperar com sua desorganização, se deixar cooptar e mergulhar no seu universo. Ficamos com a voz doce e amorosa de Federico, que nos embala e nos conduz por sua vertigem ficcional da própria vida. Mas esta voz, que nos liga a Paulita, a Daniel, aos relógios, às goteiras, aos escritos, a tudo aquilo que ainda não foi inventado, não chega a nos costurar a essa imagem. O que ela suscita pede mais força, mais impacto, mais solidez. Ruiz, que certamente nutre bastante afeto por este mundo que narra, a ponto de sua instância narrativa parecer totalmente fundida à narração de Federico (em parte diluída em tudo que o cerca), numa adesão praticamente irrestrita, não chega a carregar a imagem deste filme da pregnância que seus planos usualmente apresentam.

Por outro lado, quem sabe esteja aí um reflexo da própria narrativa: a paisagem e vida campestres de um Chile que já não existe mais, tal como restituída por um escritor em seu sono eterno. (Bem sabemos que quando sonhamos não enxergamos bem...) Um Chile revisitado pelo diretor após 30 anos sem filmar no país. Um mundo cuja geografia (a espacial mais do que a sentimental), repleta de fendas, é de reconstituição quase impossível, pela confusão de espaços, incompletudes, não-correspondência perfeita de planos e contraplanos, planos gerais e planos fechados.

Aberturas que encerram também uma sedução. Uma atração pela parte, pelo detalhe, no que eles contêm em si mesmos de características que suscitam afeto, sem que precisem fazer sentido dentro de uma construção maior. Um trecho de poema, fantasmas de mortos na guerra que vagam, um rádio a repetir a mesma frase incessantemente, socos de boxe desferidos no ar, uma coleção de fósforos, a constatação de que muitas pessoas já morreram. Transitando por entre estas “notas”, nos sentimos confortáveis, acolhidos. E lembramos de nos perguntar: será que precisamos mesmo de história (ou da História) para ordenar cronologicamente (e logicamente) adventos tecno-científicos, fatos, pensamentos, sentimentos...?

Tatiana Monassa