Don Federico, escritor e “imaginista”,
conversa com seu amigo Daniel Rubio. As pessoas à sua
volta ora estão lá, ora não estão. Ao falar do romance
que escreve(ria) e de suas memórias, as imagens se alternam,
se fundem, se transformam, vão e vêm. A diluição das
fronteiras entre sonho, memória e “real”, tema recorrente
em Raul Ruiz, mescla-se aqui com a própria idéia de
criação artística. Criar a si mesmo, viver os sonhos,
sofrer a memória, agir em imaginação, fazer um filme.
Dias no Campo poderia ser o romance de Federico,
ou a confusão de diversos sonhos, ou simplesmente um
limbo no qual não há mais vida e tudo o que passou torna-se
indistintamente memória. Memória que pinga como
a goteira ambulante (e fantasma) que marcava em compasso
o tempo na casa do escritor. Que está lá, e só precisa
ser contada, escrita, capturada. Nestas imagens, as
pessoas aparecem e desaparecem, como espectros que vagam.
Vivas ou mortas, fazem parte de um indistinto caldo
que alimenta ficções. Como a que Paulita escreve nas
cartas que recebe do filho distante, que ela mesma confecciona,
talvez com o intuito de alimentar a imaginação de Federico
e fazê-lo propor uma viagem, se compadecer da empregada
que ama o filho, mas não vê há muito tempo.
Mas espectro, também, parece ser a imagem do filme.
Fotografia em digital de definição muito pobre, ela
não consegue cativar, a despeito dos sempre ótimos enquadramentos
e movimentos de câmera de Ruiz, que partem o espaço,
desorientam e (con)fundem pessoas, objetos e paisagem.
Essa “ausência de materialidade” visual é certamente
o principal motivo da dificuldade que é “se colar” ao
filme, estabelecer com ele um pacto, cooperar com sua
desorganização, se deixar cooptar e mergulhar no seu
universo. Ficamos com a voz doce e amorosa de Federico,
que nos embala e nos conduz por sua vertigem ficcional
da própria vida. Mas esta voz, que nos liga a Paulita,
a Daniel, aos relógios, às goteiras, aos escritos, a
tudo aquilo que ainda não foi inventado, não chega a
nos costurar a essa imagem. O que ela suscita pede mais
força, mais impacto, mais solidez. Ruiz, que certamente
nutre bastante afeto por este mundo que narra, a ponto
de sua instância narrativa parecer totalmente fundida
à narração de Federico (em parte diluída em tudo que
o cerca), numa adesão praticamente irrestrita, não chega
a carregar a imagem deste filme da pregnância que seus
planos usualmente apresentam.
Por outro lado, quem sabe esteja aí um reflexo da própria
narrativa: a paisagem e vida campestres de um Chile
que já não existe mais, tal como restituída por um escritor
em seu sono eterno. (Bem sabemos que quando sonhamos
não enxergamos bem...) Um Chile revisitado pelo diretor
após 30 anos sem filmar no país. Um mundo cuja geografia
(a espacial mais do que a sentimental), repleta de fendas,
é de reconstituição quase impossível, pela confusão
de espaços, incompletudes, não-correspondência perfeita
de planos e contraplanos, planos gerais e planos fechados.
Aberturas que encerram também uma sedução. Uma atração
pela parte, pelo detalhe, no que eles contêm em si mesmos
de características que suscitam afeto, sem que precisem
fazer sentido dentro de uma construção maior. Um trecho
de poema, fantasmas de mortos na guerra que vagam, um
rádio a repetir a mesma frase incessantemente, socos
de boxe desferidos no ar, uma coleção de fósforos, a
constatação de que muitas pessoas já morreram. Transitando
por entre estas “notas”, nos sentimos confortáveis,
acolhidos. E lembramos de nos perguntar: será que precisamos
mesmo de história (ou da História) para ordenar cronologicamente
(e logicamente) adventos tecno-científicos, fatos, pensamentos,
sentimentos...?
Tatiana Monassa
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