Querida Wendy não deve
ser visto como crítica à cultura armamentista dos norte-americanos
– pois crítica envolve análise, entendimento e reflexão,
que o filme não realiza –, e sim brincadeira provocativa,
descerebrada e de mau-gosto, já que cultua o fascínio
adolescente que ambos os cineastas (Vintenberg na direção
e Von Trier no roteiro) nutrem pelos EUA. Ao afirmarem
com todas as letras o repúdio ao objeto que, na verdade,
amam, os diretores resumem a complexa questão das armas
somente ao recalcamento puritano de personagens que,
incapazes de expressar sua sexualidade, apelam para
pistolas de todo tipo a fim de, em substituição ao falo,
gerar a segurança e a auto-estima que a repressão sexual
os impedem de ter.
O herói se chama Dick, não por acaso nome com que o
pênis é conhecido nos EUA. Junto a Freddie, Sebastian,
Clarabelle, Huey e Stevie, Dick forma confraria que,
na velha mina abandonada, mantém relacionamento amoroso
com as armas antigas que cada membro possui. Família
ou clã que pauta sobre regras próprias, os rejeitados
da cidade carvoeira, palco da ação, desprezam por completo
os hábitos e o estilo de vida do ambiente circundante
- que Vintenberg e Von Trier tratam como mero estereótipo
da América confederada, arcaica e ignorante, onde xerifes
violentos e asquerosos falam engraçado e comem muffins
em lanchonetes. A estereotipia total do espaço serve,
em Querida Wendy, aos mesmos propósitos que os
cenários marcados no chão em Dogville: remeter
ao não-lugar, aos EUA mitificado que, saídos da imaginação
masturbatória dos cineastas, fecha-se sobre si mesmo
e se transforma em microcosmo isolado onde não atuam
outras forças (políticas, econômicas) que não sejam
as percepções sado-masoquistas dos personagens quanto
ao lugar.
Assim, Dick e companhia não se apresentam com instrumentos
para refletir acerca da violência que a cultura das
armas estabelece na sociedade norte-americana - uma
vez que o exercício da crítica, por exemplo, passaria
necessariamente pela origem da nação, pelo processo
de independência que garantiu aos cidadãos o porte de
armas para se insurgirem contra governos autoritários
e de exceção. Vintenberg e Von Trier, claro, desconsideram
a História, da mesma maneira que omitem lobbies
econômicos e sociais contemporâneos que tornam a defesa
pessoal, direito assegurado pela Constituição, negócio
multimilionário e segmento de mercado a ser conquistado
à bala, se preciso. Eles preferem, ao contrário, responsabilizar
os relacionamentos egoístas e egocêntricos dos personagens
com o meio que, por sua vez, baseiam-se na marginalização
oriunda da incapacidade de liberar catarticamente a
frustração e a raiva através do sexo. Assim, o grupo
liderado por Dick busca nas armas o substituto para
o contato humano, procura na violência método eficaz
para se afirmar frente aos demais agentes que compõem
o ambiente, fecha-se para dar vazão às próprias crenças,
mesmo que elas signifiquem a destruição de todos.
Assusta, em Querida Wendy, o êxtase com que Vintenberg
e Von Trier gozam o niilismo absurdo contido nas ações
de Dick e de seus companheiros. Não há limite para o
sadismo que eles, diretores e personagens, desencadeiam
a fim de satisfazer os ideais hedonistas que professam.
Como adolescentes que adoram observar a vizinha trocando
de roupa, mas que, em contrapartida, culpabilizam-se
quando descobertos, os cineastas ao mesmo tempo em que
heroicizam a carnificina que fecha o filme (através
da plasticidade do tiroteio, da potência envolvida no
uso das armas), também desenvolvem a narrativa em primeira
pessoa – trata-se de Dick escrevendo para Wendy, sua
arma, e confessando-lhe o quanto a ama –, com o intuito
de forçar a platéia a se identificar com o protagonista
e, em conseqüência, a sentir o prazer recalcado que
está no centro de Querida Wendy.
Dick, ao término de Querida Wendy, alcança seu
objetivo: é morto pela arma que tanto desejava. Caso
se suicidasse logo nos primeiros minutos de projeção,
ele teria, pelo menos, poupado o espectador de duas
longas horas de sofrimento.
Paulo Ricardo de Almeida
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