QUERIDA WENDY
Thomas Vintenberg, Dear Wendy, Dinamarca/Alemanha/Inglaterra/França, 2005

Querida Wendy não deve ser visto como crítica à cultura armamentista dos norte-americanos – pois crítica envolve análise, entendimento e reflexão, que o filme não realiza –, e sim brincadeira provocativa, descerebrada e de mau-gosto, já que cultua o fascínio adolescente que ambos os cineastas (Vintenberg na direção e Von Trier no roteiro) nutrem pelos EUA. Ao afirmarem com todas as letras o repúdio ao objeto que, na verdade, amam, os diretores resumem a complexa questão das armas somente ao recalcamento puritano de personagens que, incapazes de expressar sua sexualidade, apelam para pistolas de todo tipo a fim de, em substituição ao falo, gerar a segurança e a auto-estima que a repressão sexual os impedem de ter.

O herói se chama Dick, não por acaso nome com que o pênis é conhecido nos EUA. Junto a Freddie, Sebastian, Clarabelle, Huey e Stevie, Dick forma confraria que, na velha mina abandonada, mantém relacionamento amoroso com as armas antigas que cada membro possui. Família ou clã que pauta sobre regras próprias, os rejeitados da cidade carvoeira, palco da ação, desprezam por completo os hábitos e o estilo de vida do ambiente circundante - que Vintenberg e Von Trier tratam como mero estereótipo da América confederada, arcaica e ignorante, onde xerifes violentos e asquerosos falam engraçado e comem muffins em lanchonetes. A estereotipia total do espaço serve, em Querida Wendy, aos mesmos propósitos que os cenários marcados no chão em Dogville: remeter ao não-lugar, aos EUA mitificado que, saídos da imaginação masturbatória dos cineastas, fecha-se sobre si mesmo e se transforma em microcosmo isolado onde não atuam outras forças (políticas, econômicas) que não sejam as percepções sado-masoquistas dos personagens quanto ao lugar.

Assim, Dick e companhia não se apresentam com instrumentos para refletir acerca da violência que a cultura das armas estabelece na sociedade norte-americana - uma vez que o exercício da crítica, por exemplo, passaria necessariamente pela origem da nação, pelo processo de independência que garantiu aos cidadãos o porte de armas para se insurgirem contra governos autoritários e de exceção. Vintenberg e Von Trier, claro, desconsideram a História, da mesma maneira que omitem lobbies econômicos e sociais contemporâneos que tornam a defesa pessoal, direito assegurado pela Constituição, negócio multimilionário e segmento de mercado a ser conquistado à bala, se preciso. Eles preferem, ao contrário, responsabilizar os relacionamentos egoístas e egocêntricos dos personagens com o meio que, por sua vez, baseiam-se na marginalização oriunda da incapacidade de liberar catarticamente a frustração e a raiva através do sexo. Assim, o grupo liderado por Dick busca nas armas o substituto para o contato humano, procura na violência método eficaz para se afirmar frente aos demais agentes que compõem o ambiente, fecha-se para dar vazão às próprias crenças, mesmo que elas signifiquem a destruição de todos.

Assusta, em Querida Wendy, o êxtase com que Vintenberg e Von Trier gozam o niilismo absurdo contido nas ações de Dick e de seus companheiros. Não há limite para o sadismo que eles, diretores e personagens, desencadeiam a fim de satisfazer os ideais hedonistas que professam. Como adolescentes que adoram observar a vizinha trocando de roupa, mas que, em contrapartida, culpabilizam-se quando descobertos, os cineastas ao mesmo tempo em que heroicizam a carnificina que fecha o filme (através da plasticidade do tiroteio, da potência envolvida no uso das armas), também desenvolvem a narrativa em primeira pessoa – trata-se de Dick escrevendo para Wendy, sua arma, e confessando-lhe o quanto a ama –, com o intuito de forçar a platéia a se identificar com o protagonista e, em conseqüência, a sentir o prazer recalcado que está no centro de Querida Wendy.

Dick, ao término de Querida Wendy, alcança seu objetivo: é morto pela arma que tanto desejava. Caso se suicidasse logo nos primeiros minutos de projeção, ele teria, pelo menos, poupado o espectador de duas longas horas de sofrimento.

Paulo Ricardo de Almeida