Por vias paralelas e óbvias, o último
filme de Roman Polanski, Oliver Twist, faz uma
ponte muito clara, e ao mesmo tempo incômoda,
com o projeto bancado e roterizado por Luc Besson e
dirigido por Louis Leterrier, Cão de Briga.
Clara porque trata de dois órfãos, que
erram até encontrar alguém que lhes dê
uma chance de integração em uma vida familiar.
Incômoda, porque apesar de mais de um século
separar uma história da outra, e de Polanski
beirar o academicismo, limitando-se a construir sua
narrativa como um bom artesão, seu filme soa
muito menos preso a uma fórmula do que o de Leterrier.
Polanski quase sempre foi acadêmico em alguma
medida, sem que isso signifique prejuízo em seu
modo de ver o mundo por meio de seus filmes. Desde Repulsa
ao Sexo, sua habilidade de diretor sempre esteve
próxima aos costumes e cacoetes dos filmes que
compartilhavam com os dele o mesmo contexto histórico
no cinema. Suas transgressões geralmente se davam
dentro do filme, muito bem inseridas na história,
e essa afirmativa é livre de qualquer juízo
de valor. Seus filmes serviam ao que ele esperava que
fizesse sucesso à época em que foram feitos,
seja em obras magistrais como Macbeth e O
Bebê de Rosemary ou em filmes menos inspirados
como A Dança dos Vampiros e O Quê?.
Mesmo esse último deixa clara sua estrutura de
filme maluquinho como os que se faziam no início
dos anos 70, pós psicodelismo e cinemas novos.
Nos últimos anos, o diretor resolveu abrir o
jogo e se assumir como um bom artesão, mandando
às favas os modismos de ocasião, o que
lhe rendeu alguns belos feitos como A Morte e a Donzela
e O Último Portal. Oliver Twist
vem se somar a O Pianista como o projeto mais
cinemão do diretor, e nesse sentido, Oliver
Twist não se sai tão bem quanto o
antecessor. Ainda assim, é um filme de momentos
admiráveis.
Louis Leterrier, apesar da roupagem mais moderna e esperta
de seu filme, não deixa de ser acadêmico,
de uma maneira cada vez mais freqüente desde o
sucesso da trilogia Matrix. Com um roteiro bem
pífio e maniqueísta – e nisso também
Polanski foi superior, ainda que sob a pena de Charles
Dickens – Cão de Briga se sustenta quase
que exclusivamente na destreza das cenas de ação,
e no uso da persona cinematográfica de Jet Li.
Nada de errado com isso, se o filme assumisse essa característica
e repensasse a linguagem cinematográfica que
está repetindo. O que acontece é um incômodo
tom auto-importante para tudo que se diz, para toda
e qualquer possibilidade de mensagem a ser passada,
para a lição óbvia e simplória
de humanidade. Com isso, perde-se a possibilidade de
uma experiência sensorial mais ampla, e sobram
boas intenções.
Polanski embaralha as cartas no meio do jogo, transformando-o
em algo enigmático, porque se conhecemos bem
a obra de Dickens, ou o filme de David Lean, não
sabemos quais as soluções que o diretor
escolheu para sua adaptação. Essas escolhas,
no meio do caminho, se revelam menos previsíveis,
levando em conta o progresso do filme até então.
Como em O Pianista (um tanto mais discretamente,
talvez), Polanski abre uma nova etapa em que o maniqueísmo
existente na obra de Dickens (salvo falha de memória)
se revela bem diminuído no filme, representado
apenas por um único vilão, Bill Sykes.
Leterrier faz uma operação quase inversa.
Começa no mesmo tom de Polanski, com o lado bom
e o lado mau bem definidos. Na segunda parte, porém,
faz com que o lado mau se intensifique, obrigando o
lado bom a ser ainda mais virtuoso. Essa estratégia
joga o filme em um dilema do qual ele não consegue
sair. Porque para o lado bom exercer sua bondade, o
lado mau precisaria continuar existindo, e aí
o filme deveria terminar bem diferente. Se ao matar
quem lhe fazia mal, você se torna igual a ele,
seus tormentos nunca teriam fim, porque o lado mau carece
dessa moral, logo, exterminaria o lado bom. A discussão
nem chega perto de se desenvolver, pois o filme se resolve
com um golpe de vaso na cabeça e com o personagem
sumindo de cena como que por milagre, junto dos outros
personagens do populoso lado mau da trama. A cena final
tem sua beleza, assim como os momentos em que a persona
Jet Li é aproveitada, mas deixa um sabor de que
tudo poderia ser melhor narrado.
Oliver Twist, mesmo sendo o filme mais fraco
do diretor desde Busca Frenética, possui
uma integridade fora do comum, seja na maneira muito
a vontade com a qual a câmera se posta entre os
marginais, seja pela delicadeza de tom nas relações
entre Oliver e as pessoas que lhe querem bem. O final
é um belíssimo exemplo dessa delicadeza,
com benfeitor sentindo que havia dado abrigo a um nobre
e raro coração. As imagens mostram apenas
olhares, soluços, mas dizem tudo, sem necessidade
de um diálogo didático e redutor.
Cão de Briga luta por uma integridade
que sua opção narrativa colada ao roteiro
insiste em burlar. Também incomoda a maneira
como uma faceta do filme, a de mostrar boas cenas de
ação, praticamente anula a possibilidade
de se curtir a outra, que capta a sintonia entre pessoas
que sofreram grandes perdas na vida. Quando começamos
a nos acostumar com uma ambientação, surge
uma mudança nos rumos do personagem quebrando
a possibilidade de empatia dentro do mundo específico
captado. Mesmo que isso seja pensado e idealizado para
causar esse choque, algo se perde no caminho. Talvez
porque entre um mundo e outro não exista uma
entrega, uma intimidade da câmera com o que está
sendo filmado. A câmera parece estar ali unicamente
para registrar, e esse registro é feito apenas
parcialmente. Sente-se uma incompletude incômoda,
e que trabalha contra o filme.
Oliver Twist também muda o destino do
personagem, de maneira incrivelmente similar, e por
diversas vezes, também buscando o incômodo
do espectador, mas sua verve é bem outra. Está
impregnada de ruas lamacentas até o último
fotograma, e daí extrai toda a sua força.
O contraste entre o limpinho da casa de seu benfeitor
e o cotidiano malandro e sujo de terra das ruas londrinas
fazem com que sintamos mais a mudança de ambiente.
Em Cão de Briga, somos jogados diretamente
em um contraste que só é estabelecido
pelas falas (mensagens) e ações dos personagens.
Por isso a orfandade de Danny é muito menos sentida
que a de Oliver.
Sérgio Alpendre
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