PARALELAS E TRANSVERSAIS
Cão de Briga, de Louis Leterrier
Oliver Twist , de Roman Polanski


Danny the Dog, França/EUA/Reino Unido, 2005
Oliver Twist, Reino Unido, República Tcheca/França/Itália, 2005


Por vias paralelas e óbvias, o último filme de Roman Polanski, Oliver Twist, faz uma ponte muito clara, e ao mesmo tempo incômoda, com o projeto bancado e roterizado por Luc Besson e dirigido por Louis Leterrier, Cão de Briga. Clara porque trata de dois órfãos, que erram até encontrar alguém que lhes dê uma chance de integração em uma vida familiar. Incômoda, porque apesar de mais de um século separar uma história da outra, e de Polanski beirar o academicismo, limitando-se a construir sua narrativa como um bom artesão, seu filme soa muito menos preso a uma fórmula do que o de Leterrier.

Polanski quase sempre foi acadêmico em alguma medida, sem que isso signifique prejuízo em seu modo de ver o mundo por meio de seus filmes. Desde Repulsa ao Sexo, sua habilidade de diretor sempre esteve próxima aos costumes e cacoetes dos filmes que compartilhavam com os dele o mesmo contexto histórico no cinema. Suas transgressões geralmente se davam dentro do filme, muito bem inseridas na história, e essa afirmativa é livre de qualquer juízo de valor. Seus filmes serviam ao que ele esperava que fizesse sucesso à época em que foram feitos, seja em obras magistrais como Macbeth e O Bebê de Rosemary ou em filmes menos inspirados como A Dança dos Vampiros e O Quê?. Mesmo esse último deixa clara sua estrutura de filme maluquinho como os que se faziam no início dos anos 70, pós psicodelismo e cinemas novos. Nos últimos anos, o diretor resolveu abrir o jogo e se assumir como um bom artesão, mandando às favas os modismos de ocasião, o que lhe rendeu alguns belos feitos como A Morte e a Donzela e O Último Portal. Oliver Twist vem se somar a O Pianista como o projeto mais cinemão do diretor, e nesse sentido, Oliver Twist não se sai tão bem quanto o antecessor. Ainda assim, é um filme de momentos admiráveis.

Louis Leterrier, apesar da roupagem mais moderna e esperta de seu filme, não deixa de ser acadêmico, de uma maneira cada vez mais freqüente desde o sucesso da trilogia Matrix. Com um roteiro bem pífio e maniqueísta – e nisso também Polanski foi superior, ainda que sob a pena de Charles Dickens – Cão de Briga se sustenta quase que exclusivamente na destreza das cenas de ação, e no uso da persona cinematográfica de Jet Li. Nada de errado com isso, se o filme assumisse essa característica e repensasse a linguagem cinematográfica que está repetindo. O que acontece é um incômodo tom auto-importante para tudo que se diz, para toda e qualquer possibilidade de mensagem a ser passada, para a lição óbvia e simplória de humanidade. Com isso, perde-se a possibilidade de uma experiência sensorial mais ampla, e sobram boas intenções.

Polanski embaralha as cartas no meio do jogo, transformando-o em algo enigmático, porque se conhecemos bem a obra de Dickens, ou o filme de David Lean, não sabemos quais as soluções que o diretor escolheu para sua adaptação. Essas escolhas, no meio do caminho, se revelam menos previsíveis, levando em conta o progresso do filme até então. Como em O Pianista (um tanto mais discretamente, talvez), Polanski abre uma nova etapa em que o maniqueísmo existente na obra de Dickens (salvo falha de memória) se revela bem diminuído no filme, representado apenas por um único vilão, Bill Sykes.

Leterrier faz uma operação quase inversa. Começa no mesmo tom de Polanski, com o lado bom e o lado mau bem definidos. Na segunda parte, porém, faz com que o lado mau se intensifique, obrigando o lado bom a ser ainda mais virtuoso. Essa estratégia joga o filme em um dilema do qual ele não consegue sair. Porque para o lado bom exercer sua bondade, o lado mau precisaria continuar existindo, e aí o filme deveria terminar bem diferente. Se ao matar quem lhe fazia mal, você se torna igual a ele, seus tormentos nunca teriam fim, porque o lado mau carece dessa moral, logo, exterminaria o lado bom. A discussão nem chega perto de se desenvolver, pois o filme se resolve com um golpe de vaso na cabeça e com o personagem sumindo de cena como que por milagre, junto dos outros personagens do populoso lado mau da trama. A cena final tem sua beleza, assim como os momentos em que a persona Jet Li é aproveitada, mas deixa um sabor de que tudo poderia ser melhor narrado.

Oliver Twist, mesmo sendo o filme mais fraco do diretor desde Busca Frenética, possui uma integridade fora do comum, seja na maneira muito a vontade com a qual a câmera se posta entre os marginais, seja pela delicadeza de tom nas relações entre Oliver e as pessoas que lhe querem bem. O final é um belíssimo exemplo dessa delicadeza, com benfeitor sentindo que havia dado abrigo a um nobre e raro coração. As imagens mostram apenas olhares, soluços, mas dizem tudo, sem necessidade de um diálogo didático e redutor.

Cão de Briga luta por uma integridade que sua opção narrativa colada ao roteiro insiste em burlar. Também incomoda a maneira como uma faceta do filme, a de mostrar boas cenas de ação, praticamente anula a possibilidade de se curtir a outra, que capta a sintonia entre pessoas que sofreram grandes perdas na vida. Quando começamos a nos acostumar com uma ambientação, surge uma mudança nos rumos do personagem quebrando a possibilidade de empatia dentro do mundo específico captado. Mesmo que isso seja pensado e idealizado para causar esse choque, algo se perde no caminho. Talvez porque entre um mundo e outro não exista uma entrega, uma intimidade da câmera com o que está sendo filmado. A câmera parece estar ali unicamente para registrar, e esse registro é feito apenas parcialmente. Sente-se uma incompletude incômoda, e que trabalha contra o filme.

Oliver Twist também muda o destino do personagem, de maneira incrivelmente similar, e por diversas vezes, também buscando o incômodo do espectador, mas sua verve é bem outra. Está impregnada de ruas lamacentas até o último fotograma, e daí extrai toda a sua força.

O contraste entre o limpinho da casa de seu benfeitor e o cotidiano malandro e sujo de terra das ruas londrinas fazem com que sintamos mais a mudança de ambiente. Em Cão de Briga, somos jogados diretamente em um contraste que só é estabelecido pelas falas (mensagens) e ações dos personagens. Por isso a orfandade de Danny é muito menos sentida que a de Oliver.


Sérgio Alpendre