Há
uma vibração acelerada nos corpos envolvidos
em tensões – sejam elas atrativas ou repulsivas
– e um nervosismo impaciente, parte de paixões
e agressões. Esta pulsação, um
tanto aflita, é o que orienta Cidade Baixa
através dos movimentos dos seus personagens.
O ritmo intenso de sua narrativa fílmica é
pautado pelos grãos da película, pela
movimentação de uma câmera que se
esforça para captar o que acontece (que acontece
não-observante do seu campo de visão)
e pela montagem que não se preocupa com uma continuidade
de tempo-espaço sem arestas.
Deco, Naldinho e Karinna impregnam a imagem de Sérgio
Machado. Polarizados num triângulo fechado demais
para permitir qualquer expressão mais livre,
eles entram num conflito inevitável, estiramento
de todas as confusões que se passam entre eles.
Gostar, se sentir atraído, ferver de desejo,
ter ciúmes, agitar-se de raiva, irritar-se, perder
a paciência, estourar – tudo acaba acontecendo
meio sem distinção, em superposição
ou em seqüência, sem ordem alguma, num espaço
que abriga ao mesmo tempo em que repele. Porque a Cidade
Baixa é um lugar pra se fazer algum dinheiro,
pra se viver a vida, mas também um lugar que
impregna os seres que o habitam de forma pegajosa, um
lugar que parece possuir uma energia perniciosa. Talvez
outra vida fosse possível fora dali, uma vida
de movimentos mais amplos e mais largos. Mas é
ali que eles compartilham um tempo e uma vivência,
que se saturam uns dos outros, se afastam e voltam a
se chocar.
O caminho que percorrem, da partida do filme até
seu fim, é bastante "reconhecível":
dois amigos do peito, que se conhecem desde a infância,
encontram uma prostituta e forma-se um triângulo
que gerará a disputa entre estes dois. Mas o
desenrolar que esperamos de tal argumento "típico"
nunca vem. Pois Cidade Baixa é um filme
de personagens, que se mantém sobre uma tênue
linha entre a narrativa de uma história e a picturização
de indivíduos. Karinna, além de ser a
prostituta, é uma pessoa que tem prazer, que
precisa ganhar dinheiro, que faz amizades, que é
repleta de inseguranças... Deco, além
de ser o negro amigão, é um homem de decisões
fortes, de sentimentos firmes, de grande auto-confiança...
E Naldinho, para além de ser aquele cara malandro
e debochado, que só pensa em se dar bem, é
um homem orgulhoso, um amigo dedicado, um sujeito explosivo
e possessivo... O multi-facetamento destes personagens,
suas constantes mistura e confusão e freqüente
indefinição (inclusive na imagem, por
meio de borrões, saídas de foco, movimentos
não-ordenados) abre um campo de fruição
da narrativa que está menos relacionado ao que
acontece do que a como acontece. É mais
importante perceber os olhares, os movimentos corporais,
os traços descritos pelos gestos. Sentir a tensão
que une um plano a outro, um movimento a outro, acompanhar
os contatos dos corpos e deixar-se instalar sensorialmente
no clima sugerido. Clima criado, prioritariamente, por
uma interação atores-espaço e encenação-câmera.
A criação de um todo orgânico entre
atores e espaço (integrados de forma inter-dependente),
que parece existir de forma autônoma em relação
à câmera, não se dá em torno
de um naturalismo ilusionista, mas de um realismo expressivo.
O filme parece vivo, para além dos cortes. Vivo
na intensidade de um ritmo compassado, tenso, muito
ajudado pela trilha sonora. A câmera, em sua movimentação
quase-caótica, se esforça para captar
o que acontece como se testemunhasse um evento que escapa
ao seu controle, que obedece a leis próprias.
O movimento errático dos personagens em relação
a este quadro, movido por um misto indistingüível
de desejo e violência, deixa então transparecer
a idéia de que há sempre algo que escapa
do campo visível, seja porque esta câmera
não é capaz de restituir as oscilações
do mundo e das pessoas, seja porque nem tudo se dá
a ver em termos narrativos e inteligíveis. No
entanto, não ficamos com a sensação
de que há um universo que nos foge ou que estamos
visando um fragmento incompleto de um todo inapreensível.
Seguimos um fluxo preciso e um quê delimitado
como algo em que vale a pena se fixar e dirigir a atenção,
pelo prazer do relato em imagens.
Há qualquer coisa em comum nos filmes dos colaboradores
e amigos Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio
Machado (Madame Satã, Cinema, Aspirinas
e Urubus e Cidade Baixa, respectivamente):
um gosto pela imagem um pouco incomum no cinema brasileiro
e que os destaca no seu cenário contemporâneo
(embora estejam em diálogo direto com ele), configurando
algo bastante raro: a condução de uma
narrativa de sentimentos "exteriorizada" na
forma fílmica – o que dá a eles um certo
ar de "Movimento". Gerar profundo interesse
pelos corpos como manifestação da existência
e fazer a imagem retratar uma sensação,
seja por sua configuração plástica
em si, seja pela organização do seu encadeamento,
é algo empreendido pelos três, com resultados
diversos, com maior ou menor sucesso.
No caso de Cidade Baixa, esta "verdade sensória"
almejada é do âmbito de uma urgência
tensa, caracterizada pelo indefinível misto atração-repulsão.
Esta sensação de que há algo prestes
a explodir a qualquer momento, que permeia os personagens,
suas expectativas e seus atos, ecoa também uma
certa violência urbana bastante atual (para nossa
realidade e para nosso cinema) e dificilmente captada
em narrativas específicas sobre a questão,
como os filmes que giram em torno das favelas cariocas.
A relação entre os três vértices
do triângulo de Cidade Baixa, como expressa
pela imagem do filme, instaura um clima e provoca um
estado de espírito. Ambos partem dos sentimentos
emanados pelas situações retratadas, mas
reverberam para além da narrativa que o filme
empreende. Valem como experiência. O que configura
uma afirmação cinematográfica de
valor incomensurável.
Tatiana Monassa
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