CRASH - NO LIMITE
Paul Haggis, Crash, EUA, 2005

Paul Haggis é roteirista de Menina de Ouro, de Clint Eastwood, mas esse crédito não significa tanto assim. O mérito com as palavras e com o esqueleto dramático, quando o roteirista passa à direção, precisa ser relativizado se seu projeto não for o de um cinema de digitação, no qual as teclas do computador, antes da filmagem, determinam cada imagem e cada acontecimento no set. Não se sabe qual é a atitude de Paul Haggis quando está no comando, se apenas dirige para dar imagem a um filme já pronto no roteiro, ou se usa o roteiro como corpo modificável na filmagem e na montagem. Tampouco se pode afirmar que Crash é a ilustração visual das palavras, sem nenhuma disposição de trabalhar na elaboração das cenas. Seria exagero chegar a tal constatação: Haggis mostra disposição para criar “climas”, estabelecendo, na busca de uma atmosfera cool e desencantada, com um contraste entre sonoridades de melancólica poesia, na trilha sonora, e a degradação social apresentada em cenas de violência, com armas em mãos.

No entanto, se a câmera operada pelo diretor de fotografia James Muro (um dos operadores de steadycam e de câmera em Titanic) executa travellings para seduzir os olhos, logo é possível se dar conta de que, na rede de tensos encontros multiétnicos movidos pela lógica da coincidência, há lógica em excesso, esquematismo demais, reutilização de situações em contextos diferentes, expedientes sem os quais as coincidências cairiam no absurdo, sem nos transmitir nenhuma significação. Os acasos são exageradamente organizados e, quando colocados em associação com outros acasos, nos deixam ver as vigas do roteiro, não o resultado cinematográfico. É o preço a ser pago por roteiristas cujo esqueleto estrutural espertinho parece reinar sobre outros aspectos.

Haggis é presioneiro de seus esquemas. Com tantos eixos étnicos-narrativos, apenas ocasionalmente em conexão, tenta amarrar a convivência entre os núcleos, mas deixa os personagens resumidos em poucas cenas, impondo-lhes situações reveladoras que demonstram a índoles deles, até para relativizar essas índoles adiante, em novo esquematismo, pelo qual se mostra as duas faces de quase todos. Assim, o “vilão”, um policial truculento (Matt Dillon) que bolina uma mulher negra em uma operação de revista na rua, terá seus momentos do bem, seja cuidando do pai doente, seja salvando a mulher bolinada da explosão de seu carro. A complexidade de Haggis resume-se à dicotomia. Em outro momento, uma madame, depois de ser apresentada como neurótica racista, para quem todo jovem mexicano tatuado é ladrão até prova em contrário, escorrega em casa. O risco não está apenas lá fora, mas na força do acaso.

O diretor-roteirista transita por vias e esquinas de combinações de tempos e núcleos narrativos trabalhadas com razoável frequência nos últimos anos, seja por Quentin Tarantino ou por Doug Liman, e filma a intolerência étnica a contaminar Los Angeles, sempre a partir do drama de personagens enfermos e em crise, todos à beira de comprar uma arma ou puxar um gatilho diante da insegurança e do ódio. Há compaixão e impotência no olhar de Haggis para os seres de sua ficção. Tenta tanto ter “peninha” deles como esboçar uma visão cética de impasse, mas de um ceticismo sem nenhuma energia ou revolta indignada. Se tanto a narrativa de enfoque giratório quanto o cinismo (revelado no uso das músicas) remetem a Robert Altman, o tratamento dos personagens como seres coitadinhos em um mundo cão do descalabro generalizado é mais a soma de Paul Thomas Anderson com Alejandro Gonzáles Iñárritu.

Produzido ao custo de U$ 6,5 milhões e ganhador do Festival de Deauville, Crash, não apenas pelos custos e pelo currículo de troféus, é pensado como grife independente. Não faltam nem as participações secundárias de atores mais populares, provavelmente cobrando cachê simbólico para fazer filme artístico. Temos lá Sandra Bullock, Matt Dillon, Brendan Fraser. Já a temática é da agenda política: intolerância de gente estigmatizada pela origem e aparência, com minorias étnicas contra outras outras minorias étnicas, sendo a mais expressiva a de um comerciante iraquiano que se lança contra um chaveiro hispânico. Nada mais adequado para um olhar empenhado em expor seu impotente ceticismo diante da falência da comvivência entra as diferenças. Haggis é o blasê de olho em situações explosivas. Sua crueldade, exposta em alguns diálogos sobre a vocação criminal dos negros, é morna. Talvez porque ele se recuse a ver seus seres como humanos e insista em tratá-los como catregorias sociais e étnicas, repetindo o procedimento que parece estar desaprovando.

Cléber Eduardo