Paul Haggis é roteirista de
Menina de Ouro,
de Clint Eastwood, mas esse crédito não significa tanto
assim. O mérito com as palavras e com o esqueleto dramático,
quando o roteirista passa à direção, precisa ser relativizado
se seu projeto não for o de um cinema de digitação,
no qual as teclas do computador, antes da filmagem,
determinam cada imagem e cada acontecimento no set.
Não se sabe qual é a atitude de Paul Haggis quando está
no comando, se apenas dirige para dar imagem a um filme
já pronto no roteiro, ou se usa o roteiro como corpo
modificável na filmagem e na montagem. Tampouco se pode
afirmar que Crash
é a ilustração visual das palavras, sem nenhuma disposição
de trabalhar na elaboração das cenas. Seria exagero
chegar a tal constatação: Haggis mostra disposição para
criar “climas”, estabelecendo, na busca de uma atmosfera
cool e desencantada, com um contraste entre sonoridades
de melancólica poesia, na trilha sonora, e a degradação
social apresentada em cenas de violência, com armas
em mãos.
No entanto, se a câmera operada pelo diretor de fotografia
James Muro (um dos operadores de steadycam e
de câmera em Titanic)
executa travellings para seduzir os olhos, logo é possível
se dar conta de que, na rede de tensos encontros multiétnicos
movidos pela lógica da coincidência, há lógica em excesso,
esquematismo demais, reutilização de situações em contextos
diferentes, expedientes sem os quais as coincidências
cairiam no absurdo, sem nos transmitir nenhuma significação.
Os acasos são exageradamente organizados e, quando colocados
em associação com outros acasos, nos deixam ver as vigas
do roteiro, não o resultado cinematográfico. É o preço
a ser pago por roteiristas cujo esqueleto estrutural
espertinho parece reinar sobre outros aspectos.
Haggis é presioneiro de seus esquemas. Com tantos eixos
étnicos-narrativos, apenas ocasionalmente em conexão,
tenta amarrar a convivência entre os núcleos, mas deixa
os personagens resumidos em poucas cenas, impondo-lhes
situações reveladoras que demonstram a índoles deles,
até para relativizar essas índoles adiante, em novo
esquematismo, pelo qual se mostra as duas faces de quase
todos. Assim, o “vilão”, um policial truculento (Matt
Dillon) que bolina uma mulher negra em uma operação
de revista na rua, terá seus momentos do bem, seja cuidando
do pai doente, seja salvando a mulher bolinada da explosão
de seu carro. A complexidade de Haggis resume-se à dicotomia.
Em outro momento, uma madame, depois de ser apresentada
como neurótica racista, para quem todo jovem mexicano
tatuado é ladrão até prova em contrário, escorrega em
casa. O risco não está apenas lá fora, mas na força
do acaso.
O diretor-roteirista transita por vias e esquinas de
combinações de tempos e núcleos narrativos trabalhadas
com razoável frequência nos últimos anos, seja por Quentin
Tarantino ou por Doug Liman, e filma a intolerência
étnica a contaminar Los Angeles, sempre a partir do
drama de personagens enfermos e em crise, todos à beira
de comprar uma arma ou puxar um gatilho diante da insegurança
e do ódio. Há compaixão e impotência no olhar de Haggis
para os seres de sua ficção. Tenta tanto ter “peninha”
deles como esboçar uma visão cética de impasse, mas
de um ceticismo sem nenhuma energia ou revolta indignada.
Se tanto a narrativa de enfoque giratório quanto o cinismo
(revelado no uso das músicas) remetem a Robert Altman,
o tratamento dos personagens como seres coitadinhos
em um mundo cão do descalabro generalizado é mais a
soma de Paul Thomas Anderson com Alejandro Gonzáles
Iñárritu.
Produzido ao custo de U$ 6,5 milhões e ganhador do Festival
de Deauville, Crash, não apenas pelos custos
e pelo currículo de troféus, é pensado como grife independente.
Não faltam nem as participações secundárias de atores
mais populares, provavelmente cobrando cachê simbólico
para fazer filme artístico. Temos lá Sandra Bullock,
Matt Dillon, Brendan Fraser. Já a temática é da agenda
política: intolerância de gente estigmatizada pela origem
e aparência, com minorias étnicas contra outras outras
minorias étnicas, sendo a mais expressiva a de um comerciante
iraquiano que se lança contra um chaveiro hispânico.
Nada mais adequado para um olhar empenhado em expor
seu impotente ceticismo diante da falência da comvivência
entra as diferenças. Haggis é o blasê de olho em situações
explosivas. Sua crueldade, exposta em alguns diálogos
sobre a vocação criminal dos negros, é morna. Talvez
porque ele se recuse a ver seus seres como humanos e
insista em tratá-los como catregorias sociais e étnicas,
repetindo o procedimento que parece estar desaprovando.
Cléber Eduardo
|