O
Coronel e o Lobisomem pode não ter nascido,
mas funciona bem como um jogo de palavras. Trata-se
de um passatempo. Nem tanto por ser um filme para entreter
– para ter-entre dois momentos – mas porque internamente,
toda a lógica de sua construção
é moldada por uma espera, a saber, a do Coronel
vivido por Diogo Vilela, que aguarda que a Lua chegue
para revelar a verdade sobre o real caráter de
seu oponente. Nesse sentido, tem toda lógica
do mundo a maneira como a narração é
feita com a pompa e as circunstância de uma certa
elegância na prosa, um falar, se não exatamente
rebuscado – imagem de época, na verdade -, falado
com tons de apresentação. Todos os personagens,
mas, mais que eles, o roteirista, estão voltados
para uma exibição de boas falas, de frases
bem apresentadas, de uma certa estetização
verbal e verborrágica.
Redundância, neste caso, não é excesso,
é apenas a curva que, se alonga o caminho, permite
ver a arvore e colher seus frutos. É um filme
de efeitos, então. Que se presta a uma construção
de oposição entre memória (representada
pela narração do Coronel) e factualidade
(representada pelo mito da câmera onisciente,
aquela que representa "a verdade" do filme).
Mas o efeito se esgota no performatismo. O grande problema
de O Coronel e o Lobisomem é que ele baseia
toda sua lógica em um conflito, mas não
problematiza o estatuto desse embate. Monta uma oposição
entre um aristocrata heróico – cuja aproximação
com a audiência se dá mais pela equalização
de suas fraquezas do que pela diferenciação
de seus atos (ele é tão torto e desastrado
quanto nós, não é um protagonista
impossível, portanto) – e um novo-rico (cuja
origem, descobrimos, é no seio de sua própria
família), mas não vai além de colocar
essas peças sobre o tabuleiro. É como
a rinha de galo que mostra, um espaço de conflito
em que não importam tanto, afinal as origens
dos contendores.
Mas importa. Diante disso, entretanto, o filme não
quer dar a tonalidade que o sangue precisa ter. Para
ser divertido, para ser uma comédia popular,
prefere converter sua luta de classes numa luta mítica
entre o parente predestinado e o agregado injustiçado.
E trabalha na lógica do lobo-como-lobo-do-homem
que a lenda do lobisomem representa: o humano cuja essência
lupina, combatente, sanguinária, é irresistível.
Coronel lembra muito as comédias de Molière
(sem o mesmo brilhantismo, na verdade) que, por mais
que sejam clássicos do teatro, não podem
deixar de ser vistas como panfletos do monarquista contra
a burguesia de poder nascente e crescente. O novo-rico
é sempre trapaceiro, ou desajeitado, ou tolo,
enfim, não é naturalmente talhado para
ser rico. Molière, apesar disso, dava cores vivas
a sua desconstrução. Maurício Farias,
não, prefere operar no plano do burlesco.
Claro, o filme pode ser visto como um ensaio sobre como
a sociedade patriarcal encontra a decadência,
tornando-se, ela mesma, supersticiosa e encarando, ela
mesma, a essência lupina do capitalismo. Nesse
sentido, o Coronel não seria outra coisa senão
a lembrança nostálgica de um tempo aristocrático,
cuja poesia permitia a existência de amores eternos,
sereias e de Ana Paula Arósio. Da mesma forma,
o Lobisomem pode ser um símbolo dessa burguesia
animalesca, faminta, de uma modernidade impessoal e
impeditiva, regada a crises econômicas e negociatas.
Mas faltam ao filme brios para construir essa oposição.
E, mais que isso, falta ao filme construir essa oposição
como o apego de seu protagonista a esta era. É
o segundo problema maior do filme: ele toma tanto partido
de Ponciano de Azevedo Furtado que não permite
enxergar o mundo senão pelos olhos dele. E com
suas lentes, os planos são grandiosos e tudo
são causos, a verdade é frugal e a própria
luta de classes é apenas uma fanfarronice.
Nesse sentido, O Coronel e o Lobisomem aproxima-se
de outro filme que tem o dedo de Guel Arraes, O Auto
da Compadecida (este dirigido por ele, produtor
do que chega agora às telas). No texto de Ariano
Suassuna também se coloca uma oposição
entre moderno e antigo, no caso entre uma sociedade
de justiça, paradigmatizada na República
de Estado weberiano, de relações institucionais
e impessoais e conformada na figura simbólica
do Encourado, o diabo, contra uma sociedade de piedade,
cujo paradigma é o poder moderador monárquico
e suas relações personalizadas e que toma
a forma da Compadecida, mãe de Jesus e de seus
pedidos de atenuantes contra os pecadores. Arraes faz
igualmente a opção por valorizar o jogo,
o burlesco da trama, soma a ela trechos de A Pena
e a Lei (conjunto de três pequenas peças
que Suassuna juntou em uma só) e lhes amputa
a discussão sobre igualdade que é sua
marca. É mais importante, para ele, a figura
burlesca de João Grilo e menos importante a figura
ambígua do julgamento.
É na circificação, na redução
ao picadeiro (que ganha ainda forma de uma filmagem
pouco inspirada, que aposta numa espacialidade mais
cenográfica do que dramatúrgica, que não
traduz as relações sobre as quais tenta,
fracamente, se sustentar), que perde O Coronel e
o Lobisomem. Uma boa prova disso é o uso
limitado de Selton Mello. Reduzido a pouco mais que
um sotaque ambulante, o personagem não tem suas
múltiplas personalidades exploradas. Afinal,
ele é um esquizo, um ser duplo, um monstro, e
como tal não se pode reproduzir, daí a
dimensão grotesca de seu casamento com Esmeraldina,
que igualmente não é explorada, servindo
apenas de pano de fundo para o amor idealizado de Ponciano
pela prima. Ela própria, aliás, é
um duplo: na visão do Coronel, um tolo, é
uma deusa, a imagem da promessa da harmonia (a própria
definição grega de beleza), mas é
uma mulher interesseira, que promove jogos de sedução
para conquistar objetivos (nem sempre muito claros,
mas todos ligados a alguma ordem de satisfação
pessoal). A prima é uma lobismulher. Mais que
isso, é uma sereia, cujo canto leva os homens
ao fundo (e ao afogamento). Mas a descrição
do filme, que é a de Ponciano, colhe da sereia
apenas a beleza estonteante e a dimensão idílica,
paradisíaca de seu corpo e de seu ambiente marinho.
E isso também acontece com a própria obra.
O filme esquece-se de sua dimensão bestial. Canta
para o público um canto de sereia.
Alexandre Werneck
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