O CORONEL E O LOBISOMEM
Maurício Farias, Brasil, 2005

O Coronel e o Lobisomem pode não ter nascido, mas funciona bem como um jogo de palavras. Trata-se de um passatempo. Nem tanto por ser um filme para entreter – para ter-entre dois momentos – mas porque internamente, toda a lógica de sua construção é moldada por uma espera, a saber, a do Coronel vivido por Diogo Vilela, que aguarda que a Lua chegue para revelar a verdade sobre o real caráter de seu oponente. Nesse sentido, tem toda lógica do mundo a maneira como a narração é feita com a pompa e as circunstância de uma certa elegância na prosa, um falar, se não exatamente rebuscado – imagem de época, na verdade -, falado com tons de apresentação. Todos os personagens, mas, mais que eles, o roteirista, estão voltados para uma exibição de boas falas, de frases bem apresentadas, de uma certa estetização verbal e verborrágica.

Redundância, neste caso, não é excesso, é apenas a curva que, se alonga o caminho, permite ver a arvore e colher seus frutos. É um filme de efeitos, então. Que se presta a uma construção de oposição entre memória (representada pela narração do Coronel) e factualidade (representada pelo mito da câmera onisciente, aquela que representa "a verdade" do filme).

Mas o efeito se esgota no performatismo. O grande problema de O Coronel e o Lobisomem é que ele baseia toda sua lógica em um conflito, mas não problematiza o estatuto desse embate. Monta uma oposição entre um aristocrata heróico – cuja aproximação com a audiência se dá mais pela equalização de suas fraquezas do que pela diferenciação de seus atos (ele é tão torto e desastrado quanto nós, não é um protagonista impossível, portanto) – e um novo-rico (cuja origem, descobrimos, é no seio de sua própria família), mas não vai além de colocar essas peças sobre o tabuleiro. É como a rinha de galo que mostra, um espaço de conflito em que não importam tanto, afinal as origens dos contendores.

Mas importa. Diante disso, entretanto, o filme não quer dar a tonalidade que o sangue precisa ter. Para ser divertido, para ser uma comédia popular, prefere converter sua luta de classes numa luta mítica entre o parente predestinado e o agregado injustiçado. E trabalha na lógica do lobo-como-lobo-do-homem que a lenda do lobisomem representa: o humano cuja essência lupina, combatente, sanguinária, é irresistível. Coronel lembra muito as comédias de Molière (sem o mesmo brilhantismo, na verdade) que, por mais que sejam clássicos do teatro, não podem deixar de ser vistas como panfletos do monarquista contra a burguesia de poder nascente e crescente. O novo-rico é sempre trapaceiro, ou desajeitado, ou tolo, enfim, não é naturalmente talhado para ser rico. Molière, apesar disso, dava cores vivas a sua desconstrução. Maurício Farias, não, prefere operar no plano do burlesco.

Claro, o filme pode ser visto como um ensaio sobre como a sociedade patriarcal encontra a decadência, tornando-se, ela mesma, supersticiosa e encarando, ela mesma, a essência lupina do capitalismo. Nesse sentido, o Coronel não seria outra coisa senão a lembrança nostálgica de um tempo aristocrático, cuja poesia permitia a existência de amores eternos, sereias e de Ana Paula Arósio. Da mesma forma, o Lobisomem pode ser um símbolo dessa burguesia animalesca, faminta, de uma modernidade impessoal e impeditiva, regada a crises econômicas e negociatas. Mas faltam ao filme brios para construir essa oposição. E, mais que isso, falta ao filme construir essa oposição como o apego de seu protagonista a esta era. É o segundo problema maior do filme: ele toma tanto partido de Ponciano de Azevedo Furtado que não permite enxergar o mundo senão pelos olhos dele. E com suas lentes, os planos são grandiosos e tudo são causos, a verdade é frugal e a própria luta de classes é apenas uma fanfarronice.

Nesse sentido, O Coronel e o Lobisomem aproxima-se de outro filme que tem o dedo de Guel Arraes, O Auto da Compadecida (este dirigido por ele, produtor do que chega agora às telas). No texto de Ariano Suassuna também se coloca uma oposição entre moderno e antigo, no caso entre uma sociedade de justiça, paradigmatizada na República de Estado weberiano, de relações institucionais e impessoais e conformada na figura simbólica do Encourado, o diabo, contra uma sociedade de piedade, cujo paradigma é o poder moderador monárquico e suas relações personalizadas e que toma a forma da Compadecida, mãe de Jesus e de seus pedidos de atenuantes contra os pecadores. Arraes faz igualmente a opção por valorizar o jogo, o burlesco da trama, soma a ela trechos de A Pena e a Lei (conjunto de três pequenas peças que Suassuna juntou em uma só) e lhes amputa a discussão sobre igualdade que é sua marca. É mais importante, para ele, a figura burlesca de João Grilo e menos importante a figura ambígua do julgamento.

 

É na circificação, na redução ao picadeiro (que ganha ainda forma de uma filmagem pouco inspirada, que aposta numa espacialidade mais cenográfica do que dramatúrgica, que não traduz as relações sobre as quais tenta, fracamente, se sustentar), que perde O Coronel e o Lobisomem. Uma boa prova disso é o uso limitado de Selton Mello. Reduzido a pouco mais que um sotaque ambulante, o personagem não tem suas múltiplas personalidades exploradas. Afinal, ele é um esquizo, um ser duplo, um monstro, e como tal não se pode reproduzir, daí a dimensão grotesca de seu casamento com Esmeraldina, que igualmente não é explorada, servindo apenas de pano de fundo para o amor idealizado de Ponciano pela prima. Ela própria, aliás, é um duplo: na visão do Coronel, um tolo, é uma deusa, a imagem da promessa da harmonia (a própria definição grega de beleza), mas é uma mulher interesseira, que promove jogos de sedução para conquistar objetivos (nem sempre muito claros, mas todos ligados a alguma ordem de satisfação pessoal). A prima é uma lobismulher. Mais que isso, é uma sereia, cujo canto leva os homens ao fundo (e ao afogamento). Mas a descrição do filme, que é a de Ponciano, colhe da sereia apenas a beleza estonteante e a dimensão idílica, paradisíaca de seu corpo e de seu ambiente marinho. E isso também acontece com a própria obra. O filme esquece-se de sua dimensão bestial. Canta para o público um canto de sereia.


Alexandre Werneck