O primado da ficção
A melhor maneira de descrever seu impacto é afirmar
que Cinema, aspirinas e urubus está fadado a
ser um filme-paradigma no cinema brasileiro recente.
Divisor de águas a partir do qual uma determinada condescendência
não pode mais ser permitida, o filme de estréia de Marcelo
Gomes em longa-metragem é um corpo absolutamente estranho
e sem par no cinema nacional atual. Na verdade, ele
flutua sobre este cinema como um espectro que amedronta
pela capacidade de pôr às claras aquilo que tentava
ser empurrado para baixo do tapete. É filme que não
só afirma suas próprias qualidades, como ao fazê-lo
revela aos outros suas insuficiências. Isso se dá, acima
de tudo, por uma aposta tocante do filme nas possibilidades
da ficção cinematográfica, da fabulação. A história
de Johann e Ranulpho, espécie de buddy movie
pelas estradas do sertão, comove exatamente pelo fato
de seu registro apostar tão fortemente na verdade daquela
construção ficcional. “Verdade” entendida aqui nem como
verossimilhança, nem como “naturalismo”, e sim pelo
sentido que realmente importa numa fabulação: a crença
do próprio narrador (o cineasta) naquilo que nos narra.
O filme acredita, o tempo todo, na verdade daqueles
dois homens e no trajeto deles, e por isso mesmo nos
faz aceitar o seu relato desde cedo.
No entanto, isso apenas parcialmente explica o encanto
e a estranheza do filme no cenário brasileiro atual.
O outro pólo que completa sua singularidade é o de centrar
esta sua aposta na sua própria ficção no seu domínio
da linguagem cinematográfica. Equivale dizer que nós
só acreditamos no que assistimos ali com tanta força,
porque é o cinema de Marcelo Gomes que faz isso conosco.
Cinema, aspirinas e urubus tem a qualidade rara
do domínio técnico da linguagem que não chama a atenção
para si, mas sim que está lá a serviço do que se narra.
Assim é sua fotografia, sua montagem, sua direção de
arte e figurinos: precisos e até virtuosos, mas nunca
auto-conscientes disso, porque servem aos personagens,
ao filme. Sem esta resolução em imagens e sons, poderia
ser apenas mais uma bela “história filmada”. Com ela,
ele é um filme – nem mais nem menos.
E é a partir destas características que afirmamos que
trata-se de uma obra única e quase inaugurante no cinema
brasileiro atual. Ele não nos conquista pela
criatividade e a excelência do seu roteiro (pensamos
em Jorge Furtado ou Guel Arraes), embora seu roteiro
seja muito bom. Ele não deseja nos impressionar
com um magistral tour de force de atuação
(pensemos no Lázaro Ramos de Madame Satã),
embora seus atores estejam precisos. Ele não
deseja apresentar uma tese sobre o espaço do
sertão que retrata, nem sobre a época
em que se passa (como vários filmes "regionais"
ou "históricos"), embora se insira
cuidadosamente no espaço e tempo. E, se houve
filmes ficcionais mais “poderosos” feitos aqui recentemente
(citemos Madame Satã, citemos O Invasor),
estes eram sempre filmes que nos arrebatavam pelo seu
domínio do cinema como força de produção de sentido
a partir da linguagem, exemplares típicos dos “grandes
filmes”.
Pois Cinema, aspirinas e urubus não almeja
ser o “grande filme”, e é justamente por isso
que se torna um: pela calma certeza sobre o seu relato
e sobre o poder (quase esquecido no Brasil) do simples
contar uma história pelo cinema. Em sua mistura precisa
de preocupações narrativa e de personagens com o apuro
técnico-conceitual (que em nada soa esquizofrênica),
ele faz uma ponte entre um cinema popular possível e
um instrumental mais caro de um “cinema de arte”. Ao
fazer isso nos lembra do óbvio (como muitas vezes se
precisa fazer no Brasil): que as fronteiras entre estes
dois modelos nunca precisaram ou deveriam ser delimitadas
numa separação de espaços que guetificam os filmes entre
este ou aquele lado. “Cinema popular de arte”, ou “cinema
de arte popular”, como queiram, Cinema, aspirinas
e urubus veio para confundir o que nunca devia ser
claro.
Ao fazer isso, o filme de Marcelo Gomes nos esclarece
também de onde vinha um certo discurso recente sobre
a superioridade de um determinado cinema argentino atual
sobre o cinema brasileiro. Ao contrário da interpretação
mais corrente, de que o cinema argentino refletiria
mais a realidade de lá do que o nosso a daqui (que simplesmente
não se sustenta porque o cinema brasileiro tem sim falado
bastante sobre o Brasil de hoje em vários tipos de enfoque),
o que podemos ver com clareza é que o cinema de uma
Lucrecia Martel, de um Pablo Trapero, cria um sentido
de urgência pelo simples fato de atrelarem um olhar
cuidadoso sobre a realidade na frente de suas câmeras
com a capacidade de não se colocar acima desta realidade.
Olham-na de frente, se irmanam a seus personagens, deixam
que suas câmeras tentem retirar deles uma “verdade do
relato”, nem impondo a eles um “sentido” totalizante,
nem tratando-os como simples títeres. Crê-se tanto no
universo ficcional audiovisual que não sobra ao espectador
opção que não a de fazer o mesmo. E é este mesmo movimento
que faz o filme de Marcelo Gomes – com sucesso comparável
ao dos acima citados.
Se Cinema, aspirinas e urubus não é um filme
perfeito (há momentos no meio de sua narrativa onde
um certo esgarçamento se faz sentir, há pequenas cenas
que funcionam menos do que outras, etc), isso apenas
o torna mais útil no seu efeito, porque poderia ser
o caso de se pensar que era uma avis rara inatingível
de conjunção de talentos, uma daquelas “obras únicas”.
Mas ainda bem que não: na impressionante segurança que
exibe em seu filme de estréia, Marcelo Gomes nos lembra
que o cinema não precisa ser uma questão de gênio, e
sim uma questão simples de como olhar para o mundo.
É na generosidade deste olhar, e na crença no seu dispositivo
ao fazê-lo, que o filme (sem nem de longe ambicionar
fazê-lo) eleva a barra de exigência com o nosso cinema
ficcional para onde nunca devia ter saído. É uma simples
questão de respeito ao cinema e ao espectador.
Eduardo Valente
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