CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Marcelo Gomes, Brasil, 2005

O primado da ficção

A melhor maneira de descrever seu impacto é afirmar que Cinema, aspirinas e urubus está fadado a ser um filme-paradigma no cinema brasileiro recente. Divisor de águas a partir do qual uma determinada condescendência não pode mais ser permitida, o filme de estréia de Marcelo Gomes em longa-metragem é um corpo absolutamente estranho e sem par no cinema nacional atual. Na verdade, ele flutua sobre este cinema como um espectro que amedronta pela capacidade de pôr às claras aquilo que tentava ser empurrado para baixo do tapete. É filme que não só afirma suas próprias qualidades, como ao fazê-lo revela aos outros suas insuficiências. Isso se dá, acima de tudo, por uma aposta tocante do filme nas possibilidades da ficção cinematográfica, da fabulação. A história de Johann e Ranulpho, espécie de buddy movie pelas estradas do sertão, comove exatamente pelo fato de seu registro apostar tão fortemente na verdade daquela construção ficcional. “Verdade” entendida aqui nem como verossimilhança, nem como “naturalismo”, e sim pelo sentido que realmente importa numa fabulação: a crença do próprio narrador (o cineasta) naquilo que nos narra. O filme acredita, o tempo todo, na verdade daqueles dois homens e no trajeto deles, e por isso mesmo nos faz aceitar o seu relato desde cedo.

No entanto, isso apenas parcialmente explica o encanto e a estranheza do filme no cenário brasileiro atual. O outro pólo que completa sua singularidade é o de centrar esta sua aposta na sua própria ficção no seu domínio da linguagem cinematográfica. Equivale dizer que nós só acreditamos no que assistimos ali com tanta força, porque é o cinema de Marcelo Gomes que faz isso conosco. Cinema, aspirinas e urubus tem a qualidade rara do domínio técnico da linguagem que não chama a atenção para si, mas sim que está lá a serviço do que se narra. Assim é sua fotografia, sua montagem, sua direção de arte e figurinos: precisos e até virtuosos, mas nunca auto-conscientes disso, porque servem aos personagens, ao filme. Sem esta resolução em imagens e sons, poderia ser apenas mais uma bela “história filmada”. Com ela, ele é um filme – nem mais nem menos.

E é a partir destas características que afirmamos que trata-se de uma obra única e quase inaugurante no cinema brasileiro atual. Ele não nos conquista pela criatividade e a excelência do seu roteiro (pensamos em Jorge Furtado ou Guel Arraes), embora seu roteiro seja muito bom. Ele não deseja nos impressionar com um magistral tour de force de atuação (pensemos no Lázaro Ramos de Madame Satã), embora seus atores estejam precisos. Ele não deseja apresentar uma tese sobre o espaço do sertão que retrata, nem sobre a época em que se passa (como vários filmes "regionais" ou "históricos"), embora se insira cuidadosamente no espaço e tempo. E, se houve filmes ficcionais mais “poderosos” feitos aqui recentemente (citemos Madame Satã, citemos O Invasor), estes eram sempre filmes que nos arrebatavam pelo seu domínio do cinema como força de produção de sentido a partir da linguagem, exemplares típicos dos “grandes filmes”.

Pois Cinema, aspirinas e urubus não almeja ser o “grande filme”, e é justamente por isso que se torna um: pela calma certeza sobre o seu relato e sobre o poder (quase esquecido no Brasil) do simples contar uma história pelo cinema. Em sua mistura precisa de preocupações narrativa e de personagens com o apuro técnico-conceitual (que em nada soa esquizofrênica), ele faz uma ponte entre um cinema popular possível e um instrumental mais caro de um “cinema de arte”. Ao fazer isso nos lembra do óbvio (como muitas vezes se precisa fazer no Brasil): que as fronteiras entre estes dois modelos nunca precisaram ou deveriam ser delimitadas numa separação de espaços que guetificam os filmes entre este ou aquele lado. “Cinema popular de arte”, ou “cinema de arte popular”, como queiram, Cinema, aspirinas e urubus veio para confundir o que nunca devia ser claro.

Ao fazer isso, o filme de Marcelo Gomes nos esclarece também de onde vinha um certo discurso recente sobre a superioridade de um determinado cinema argentino atual sobre o cinema brasileiro. Ao contrário da interpretação mais corrente, de que o cinema argentino refletiria mais a realidade de lá do que o nosso a daqui (que simplesmente não se sustenta porque o cinema brasileiro tem sim falado bastante sobre o Brasil de hoje em vários tipos de enfoque), o que podemos ver com clareza é que o cinema de uma Lucrecia Martel, de um Pablo Trapero, cria um sentido de urgência pelo simples fato de atrelarem um olhar cuidadoso sobre a realidade na frente de suas câmeras com a capacidade de não se colocar acima desta realidade. Olham-na de frente, se irmanam a seus personagens, deixam que suas câmeras tentem retirar deles uma “verdade do relato”, nem impondo a eles um “sentido” totalizante, nem tratando-os como simples títeres. Crê-se tanto no universo ficcional audiovisual que não sobra ao espectador opção que não a de fazer o mesmo. E é este mesmo movimento que faz o filme de Marcelo Gomes – com sucesso comparável ao dos acima citados.

Se Cinema, aspirinas e urubus não é um filme perfeito (há momentos no meio de sua narrativa onde um certo esgarçamento se faz sentir, há pequenas cenas que funcionam menos do que outras, etc), isso apenas o torna mais útil no seu efeito, porque poderia ser o caso de se pensar que era uma avis rara inatingível de conjunção de talentos, uma daquelas “obras únicas”. Mas ainda bem que não: na impressionante segurança que exibe em seu filme de estréia, Marcelo Gomes nos lembra que o cinema não precisa ser uma questão de gênio, e sim uma questão simples de como olhar para o mundo. É na generosidade deste olhar, e na crença no seu dispositivo ao fazê-lo, que o filme (sem nem de longe ambicionar fazê-lo) eleva a barra de exigência com o nosso cinema ficcional para onde nunca devia ter saído. É uma simples questão de respeito ao cinema e ao espectador.

Eduardo Valente