O ÚLTIMO MITTERRAND
Robert Guédiguian, Le promeneur du Champ de Mars, França, 2004

"A cor da França é o cinza". As palavras de Mitterrand orientam Guédiguian ao longo de uma jornada de observação de uma vida levada no interstício entre o público e o privado. Uma vida que já se vai. Que se esvai aos poucos no tempo de planos de longas conversas e de um afeto que se desenvolve num ritmo de trocas imperceptíveis. Um afeto que também abarca a imagem de Guédiguian, que, fruto de uma câmera sempre perfeitamente posicionada, registra em quadros precisos diversas tonalidades possíveis de cinza de relações humanas.

Mitterrand é o idoso doente que contempla sua própria finitude com uma lucidez materialista. Personalidade histórica eminente, ele faz de seu livro de memórias, uma perspectivização da participação direta de um homem em um destino coletivo, determinado por aquilo que entendemos como organizador supremo de nossa vida social: a "política". Objeto maior de convergência de posicionamentos ativos em relação a esse "destino", que todos, em suas próprias vidas, terminam por dividir com seus companheiros de tempo e de espaço.

A "arte engajada" de Guédiguian está nesta compreensão de que não há existência autônoma, da mesma forma com que todo "todo" é determinado pelos gestos de seres mergulhados num cotidiano de pensamento, sentimentos e práticas. Sua detida observação de um mesmo conjunto básico de atores e de um mesmo lugar (Marselha), ao longo de inúmeros filmes, testemunha essa afinidade por pequenas economias, na tentativa de traçar uma linha à esquerda de que se teria a princípio como posicionamento político (especialmente aquele derivado das lições marxistas). Uma linha mais próxima do coração.

Antoine narra o filme (ou seria o livro?) como se fossem suas próprias memórias. E são de fato. As memórias de sua curiosa relação com uma figura mítica e icônica, cujo nome em muito transcende sua vida diária, já engatada numa contagem regressiva (para o fim do mandato e de sua relevância histórica como homem público e para o fim de sua vida como corpo pulsante). As preocupações que ocupam o presidente envolto em reminiscências de poemas e reflexões filosóficas são com a crescente debilidade do seu corpo e com sua acomodação post-mortem. Os esclarecimentos sobre o passado, nebuloso por natureza, cujas motivações podem se tornar quase insondáveis, são para o trabalho criativo de historiadores-arqueólogos, capazes de olhar para a História como um objeto distante da experiência, feito de fatos e intenções claros, sustentáculos de argumentações coerentes e postulados fechados.

Passeando no Champs de Mars, o presidente está certo de já estar evaporando, tornando-se transparente para os olhares de todos distantes dele, todos aqueles com quem ele não troca palavras e que ele um dia amou de forma indireta e difusa – nas palavras de seus pronunciamentos à nação e na sua dedicação à construção de um bom caminho para o país que determinou sua existência –, mas que hoje só são capazes de dispensar-lhe desprezo, reprovação e julgamentos de toda sorte. Quando a moça se aproxima dele e o agradece por "tudo", vemos na face do fabuloso Michel Bouquet (?) iluminar-se o espírito daquele homem em luta para que sua participação no percurso do mundo não se obscure diante dos seus olhos. Ele não saberia dizer o que seria este "tudo" a que a moça se refere, mas tenta de uma maneira ou de outra mapeá-lo para Antoine, delineá-lo a partir de um enquadramento subjetivo, pensado de uma distância mais ou menos calculada, talvez como forma de não perder de vista o encaminhamento do "fim".

Presença forte e inconteste para Antoine, Mitterrand torna-se um amigo inconfesso, que reconhece nele talvez o único à sua volta que saiba ouvi-lo. O carinho um tanto velado expresso em conversas quase triviais, que atravessam e unem duas pessoas distantes socialmente e de gerações distintas, transborda para além da relação dos dois: para a vida pessoal de Antoine, para os monumentos, obras de arte, objetos e para a natureza, criando um amplo espaço de reflexão. Pois nesta interseção está também o próprio momento que atravessamos no mundo. Afinal, a nova lógica instalada matou por certo o que restava de uma esquerda caduca que se recusava a se pensar dentro de uma dinâmica. Condenado por ser uma figura que transitou da direita para a esquerda (e que acabou provando a viabilidade de um regime esquerdista em diálogo franco e direto com o capitalismo), Mitterrand entende a si mesmo como uma peça fundamental, não apenas na história da França, como do mundo. Percebe que para manter isto vivo de alguma forma, é preciso estabelecer uma relação viva com alguém capaz de enriquecer o "relato" com uma visão pessoal, um envolvimento profundo e um apego emotivo, alguém sem contato direto com todo um universo de memórias mais ou menos compartilhadas por incontáveis mentes. A força de prosseguir sem se deixar paralisar ou bloquear por qualquer tipo de dor ou tristeza, que, entre outros ensinamentos de homem vivido, Mitterrand transmite a Antoine é como o cuidado eu Guédiguian dispensa a seus personagens e a seu público: repleta de um afeto envolvente que encontra pouso num conjunto extenso (e intenso) de imagens. Bela declaração de amor à França, às Histórias dos homens e ao cinema como mediador privilegiado, O Último Mitterrand não saberia existir sem a cuidadosa palheta de cores, o brilhantismo dos atores e a atitude da câmera atenta que Guédiguian maneja de forma impecável.

Tatiana Monassa