"A cor da França é o cinza".
As palavras de Mitterrand orientam Guédiguian ao longo
de uma jornada de observação de uma vida levada no interstício
entre o público e o privado. Uma vida que já se vai.
Que se esvai aos poucos no tempo de planos de longas
conversas e de um afeto que se desenvolve num ritmo
de trocas imperceptíveis. Um afeto que também abarca
a imagem de Guédiguian, que, fruto de uma câmera sempre
perfeitamente posicionada, registra em quadros precisos
diversas tonalidades possíveis de cinza de relações
humanas.
Mitterrand é o idoso doente que contempla sua própria
finitude com uma lucidez materialista. Personalidade
histórica eminente, ele faz de seu livro de memórias,
uma perspectivização da participação direta de um homem
em um destino coletivo, determinado por aquilo que entendemos
como organizador supremo de nossa vida social: a "política".
Objeto maior de convergência de posicionamentos ativos
em relação a esse "destino", que todos, em suas próprias
vidas, terminam por dividir com seus companheiros de
tempo e de espaço.
A "arte engajada" de Guédiguian está nesta compreensão
de que não há existência autônoma, da mesma forma com
que todo "todo" é determinado pelos gestos de seres
mergulhados num cotidiano de pensamento, sentimentos
e práticas. Sua detida observação de um mesmo conjunto
básico de atores e de um mesmo lugar (Marselha), ao
longo de inúmeros filmes, testemunha essa afinidade
por pequenas economias, na tentativa de traçar uma linha
à esquerda de que se teria a princípio como posicionamento
político (especialmente aquele derivado das lições marxistas).
Uma linha mais próxima do coração.
Antoine narra o filme (ou seria o livro?) como se fossem
suas próprias memórias. E são de fato. As memórias de
sua curiosa relação com uma figura mítica e icônica,
cujo nome em muito transcende sua vida diária, já engatada
numa contagem regressiva (para o fim do mandato e de
sua relevância histórica como homem público e para o
fim de sua vida como corpo pulsante). As preocupações
que ocupam o presidente envolto em reminiscências de
poemas e reflexões filosóficas são com a crescente debilidade
do seu corpo e com sua acomodação post-mortem.
Os esclarecimentos sobre o passado, nebuloso por natureza,
cujas motivações podem se tornar quase insondáveis,
são para o trabalho criativo de historiadores-arqueólogos,
capazes de olhar para a História como um objeto distante
da experiência, feito de fatos e intenções claros, sustentáculos
de argumentações coerentes e postulados fechados.
Passeando no Champs de Mars, o presidente está certo
de já estar evaporando, tornando-se transparente para
os olhares de todos distantes dele, todos aqueles com
quem ele não troca palavras e que ele um dia amou de
forma indireta e difusa – nas palavras de seus pronunciamentos
à nação e na sua dedicação à construção de um bom caminho
para o país que determinou sua existência –, mas que
hoje só são capazes de dispensar-lhe desprezo, reprovação
e julgamentos de toda sorte. Quando a moça se aproxima
dele e o agradece por "tudo", vemos na face do fabuloso
Michel Bouquet (?) iluminar-se o espírito daquele homem
em luta para que sua participação no percurso do mundo
não se obscure diante dos seus olhos. Ele não saberia
dizer o que seria este "tudo" a que a moça se refere,
mas tenta de uma maneira ou de outra mapeá-lo para Antoine,
delineá-lo a partir de um enquadramento subjetivo, pensado
de uma distância mais ou menos calculada, talvez como
forma de não perder de vista o encaminhamento do "fim".
Presença forte e inconteste para Antoine, Mitterrand
torna-se um amigo inconfesso, que reconhece nele talvez
o único à sua volta que saiba ouvi-lo. O carinho um
tanto velado expresso em conversas quase triviais, que
atravessam e unem duas pessoas distantes socialmente
e de gerações distintas, transborda para além da relação
dos dois: para a vida pessoal de Antoine, para os monumentos,
obras de arte, objetos e para a natureza, criando um
amplo espaço de reflexão. Pois nesta interseção está
também o próprio momento que atravessamos no mundo.
Afinal, a nova lógica instalada matou por certo o que
restava de uma esquerda caduca que se recusava a se
pensar dentro de uma dinâmica. Condenado por
ser uma figura que transitou da direita para a esquerda
(e que acabou provando a viabilidade de um regime esquerdista
em diálogo franco e direto com o capitalismo), Mitterrand
entende a si mesmo como uma peça fundamental, não apenas
na história da França, como do mundo. Percebe que para
manter isto vivo de alguma forma, é preciso estabelecer
uma relação viva com alguém capaz de enriquecer o "relato"
com uma visão pessoal, um envolvimento profundo e um
apego emotivo, alguém sem contato direto com todo um
universo de memórias mais ou menos compartilhadas por
incontáveis mentes. A força de prosseguir sem se deixar
paralisar ou bloquear por qualquer tipo de dor ou tristeza,
que, entre outros ensinamentos de homem vivido, Mitterrand
transmite a Antoine é como o cuidado eu Guédiguian dispensa
a seus personagens e a seu público: repleta de um afeto
envolvente que encontra pouso num conjunto extenso (e
intenso) de imagens. Bela declaração de amor à França,
às Histórias dos homens e ao cinema como mediador privilegiado,
O Último Mitterrand não saberia existir sem a
cuidadosa palheta de cores, o brilhantismo dos atores
e a atitude da câmera atenta que Guédiguian maneja de
forma impecável.
Tatiana Monassa
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