Carreiras tem um clima
febril, como uma embolada de idéias e momentos de uma
personagem. E, desde o início, um eixo político se apresenta
bastante claro em Carreiras, a defesa de um cinema
de custos baixos e produção simples. Se isso já era
evidente nos filmes anteriores de Domingos Oliveira,
aqui a questão é explicitada em cartelas – desse modo,
o realizador data e contextualiza as circunstâncias
de sua produção, e a atmosfera do filme contamina-se
por esta questão, dando ao seu enredo um certo sentido
de urgência,
urgência que Domingos Oliveira controla e apresenta
com sua encenação: esse é, dos seus filmes mais recentes,
o mais escancaradamente ficcional na sua parte central,
a história da jornalista Ana Laura. Carreiras
não abandona o tom de realismo exacerbado dos
filmes recentes do realizador, mas de todos é o que
torna mais evidentes as características próprias de
sua personagem protagonista – a Ana Laura de Priscilla
Rozembaum não se confunde com o cotidiano da atriz ou
de Domingos, ao contrário do que sugeriam certos momentos
de seus outros filmes recentes – e Domingos Oliveira
é essencialmente ficcionista, disso não há dúvidas.
Dessa maneira, se o filme esclarece desde o princípio
seu discurso político subjacente, Carreiras encontra
sua força no plano ficcional de construção de uma personagem
– não por acaso, é também o filme mais bonito visualmente
entre os recentes do realizador –
e essa construção revela aquilo que os discursos podem
apoiar mas não podem criar: a personagem encarnada pela
atriz. Entre as muitas referências que costumam ser
feitas ao cinema de Domingos Oliveira (Woody Allen,
Fellini, Truffaut...), uma precisa ser acrescentada
e destacada, a do norte-americano John Cassavetes –
porque é no seu cinema que podemos encontrar um tom de urgência semelhante,
assim como uma criação (feita de ação+improvisação,
realismo exacerbado) tão forte de personagens
por seus atores,
como atua aqui Priscilla Rosembaum, tal qual uma Gena
Rowlands tropical, enfurecida. Sua egóica Ana Laura
faz de Carreiras um filme único, admirável. Egoísta,
ambiciosa, manipuladora, enraivecida, bêbada e cocainômana,
com os cabelos brilhando ao sol da manhã, vai surgindo
com força surpreendente a sua persona.
O que o filme tem de exemplar as cartelas iniciais já
tornaram bastante claro. Carreiras diz e mostra
que a ficção pode ser feita com criatividade e simplicidade,
sem grandes custos, e que isso deve ser estimulado:
portanto, pelo que tem de exemplar, é projeto a ser
seguido. Domingos já disse que está “quinhentos anos
atrasado”. Tão atrasado quanto ele está o cinema, como
se ironiza na comparação feita entre este e o teatro,
no irônico diálogo coletivo inicial em mesa de bar.
Mais atrasado do que Domingos e do que o cinema de modo
geral, não há dúvidas, está o sistema brasileiro atual
de produções caras que Carreiras critica.
Mas, por ser feito com criatividade, como já se disse,
apresentar suas circunstâncias e datar-se não reduz
o que o filme tem de único, ao contrário. Este sentimento
de urgência que contagia a narrativa se alia à força
da sua personagem - daí, mais do que imprescindível,
Carreiras se torna cativante.
Daniel Caetano
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