No início dos anos 80, chegaram
aos cinemas três versões diferentes para a paixão obsessiva
do soldado Don José pela cigana Carmen, escrita por
Prosper Merimé. Exceção feita a Prénom Carmen,
de Jean-Luc Godard, os filmes de Carlos Saura e de Francesco
Rosi tinham por trás a sombra opressiva da ópera de
Bizet – que se encontra, junto aos afrescos da capela
Sistina de Michelangelo, à Monalisa de Leonardo Da Vinci,
às sinfonias de Beethoven, ao Dom Quixote de Cervantes
e às tragédias de Shakespeare, no seleto panteão das
mais famosas criações artísticas da espécie humana.
Em Carmen na África, surpreendente Urso de Ouro
do último Festival de Berlim, o diretor Mark Dornford-May
e o grupo Dimpho Di Kopane levam a tragédia de Merimé/Bizet
para a periferia miserável e negra da África do Sul,
enfrentando o mesmo problema que em geral assola as
adaptações cinematográficas de óperas: a incapacidade
de transpor a inverossimilhança teatral das ações e
dos sentimentos operísticos para o espaço pretensamente
realista engendrado pela narrativa fílmica.
Carmen na África se inicia com travellings
que descortinam o gueto miserável de Sevilha, em Capetown.
Referência nada sutil à cidade onde se passa a ópera
de Bizet e o romance de Merimé, o subúrbio negro indica
a tentativa de Mark Dornford-May de conectar o naturalismo
do ambiente representado no filme à fantasia romântica
contida nas obras que lhe servem de base. O projeto
de misturar as árias cantadas pelos personagens com
a narrativa dramática convencional (que pretende dar
ao espectador a ilusão de realidade), porém, naufraga
uma vez que, se na ópera a música se apresenta como
a força-motriz que de fato leva os acontecimentos à
frente, no filme as seqüências explicitamente operísticas
apenas diluem a paixão trágica entre Carmen e Dom José,
ao se contraporem e, em conseqüência, soarem forçadas
em relação às demais cenas que integram Carmen na
África. Em outras palavras: enquanto o clássico
de Bizet se torna crível pelo respeito que mantém aos
cânones do meio para o qual foi destinado, a adaptação
de Mark Dornford-May se faz inverossímil na medida em
que sujeita os números musicais aos ditames da estrutura
cinematográfica, transformando aqueles em meros apêndices
desta.
Para o cineasta, também está em jogo o suposto caráter
universal da história criada por Merimé e consagrada
por Bizet, que poderia ser transposta para qualquer
época e para qualquer lugar. O resultado, visto em Carmen
na África, mostra a busca pela fidelidade total
ao enredo, ao mesmo tempo em que se verifica a adequação
da trama ao contexto específico sul-africano. No entanto,
as soluções encontradas por Mark Dornford-May são, mais
das vezes, esdrúxulas: a Carmen que trabalha para a
tabacaria Gipsy, em referência à origem cigana que ela
possui na ópera; o tenor que surge vestido de toureiro
na televisão, pois interpreta no filme o papel que corresponde,
na ópera, ao da terceira ponta do triângulo amoroso
que propicia a tragédia; a praça de touros transformada
em igreja evangélica; o Dom José que, em lugar de soldado
do exército, faz-se membro da polícia. Embora permaneçam
atuais as ingerências a respeito da corrupção policial,
dos abusos de autoridade, da pobreza generalizada das
classes mais baixas e do contrabando como modelo possível
de vida e alimentador da violência dentro da sociedade,
as tentativas de associar os comportamentos dos personagens
a traumas psicológicos advindos do passado do país –
marcado pela política do apartheid – somente
reiteram o empobrecimento da potência emocional existente
na relação entre o ciúme de Don José e o anseio por
liberdade de Carmen.
Carmen na África fica no meio do caminho entre
a ópera e o cinema. Ao respeitar excessivamente Bizet,
Mark Dornford-May acaba por traí-lo, já que trata a
paixão desmedida, que leva os personagens à tragédia,
como mero elemento decorativo da narrativa burocrática
que conduz.
Paulo Ricardo de Almeida
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