CAFUNDÓ
Paulo Betti, Brasil, 2005

Estranha e ousada escolha, começar uma carreira de diretor de cinema com um filme de época. A equipe é extensa, a necessidade de controle é muita, figurinos demais, muitos figurantes, reconstituição de locações, etc. Em Cafundó, Paulo Betti cai vítima de sua ambição – que já assolou, em condições semelhantes, o primeiro longa de André Sturm, Sonhos Tropicais – e realiza um filme sem maiores preocupações além de simplesmente narrar (mal) uma história política e socialmente relevante. Claro, a trajetória de vida de João de Camargo parece ser interessantíssima. Mas, o cinema sendo uma arte, o valor deve ser buscado não na relevância do tema mas no ofício da obra, mais no "como" do que no "o quê". E esse "como" revela insuficiências flagrantes.

Filmes de atores que passam à realização, geralmente, costumam ter uma urgência, uma entrega à interpretação, que geralmente compensam a falta de mestria no manejo da câmera e a desigualdade no ritmo e na estrutura.
Mas nada aqui: depois de uma introdutória e algo instigante cena de delírio no centro de São Paulo, entramos, sem eira nem beira, sem tempo suficiente para instalação naquele mundo, na história de um negro que tem visões divinas e se transforma numa espécie de padre ou guru religioso em Sorocaba. Mas da história só temos nacos: ao longo da projeção, sente-se a nítida impressão de um filme que deveria ter por volta de três horas, mas que foi picotado até chegar à duração mais conercial e palatável de 100 minutos. Se a direção deixaria a desejar da mesma forma, a montagem impede completamente o filme de ter ritmo próprio, acavalando uma atrás da outra as situações da vida do protagonista, sem que tenhamos noção da passagem do tempo (excetuadas as toscas soluções de maquiagem) e das viagens dos personagens pelo território (em momentos parece que viajaram ao redor do Brasil, em outros simplesmente cruzaram a fronteira de uma cidade). É como se cada cena só servisse para denotar uma informação específica, e, uma vez dita (geralmente) ou mostrada essa informação, a cena pudesse acabar abruptamente para a seguinte, e assim por diante.

O que vemos na tela em Cafundó se assemelha ao conteúdo dos saquinhos de sopa que vemos em supermercados, com seus ingredientes desidratados: quando abrimos, parecemos ver apenas simulacros de ervilhas, de pedaços de cenoura, de frango. Um esboço. Cabe à água fervente realizar o milagre da recriação, dando corpo ao intragável e fazendo aparecer uma refeição. Se pudermos transplantar a situação para o cinema, a direção e a montagem seriam os equivalentes à água, enchendo de vida, dinamismo e presença uma história que só existe no papel (talvez seja até por isso que o roteirista é também creditado como autor, mesmo que só Paulo Betti seja o diretor). Em Cafundó, só vemos os diálogos filmados, os lugares, os figurantes sendo figurantes (parecem até brechtianos tanta a falta de naturalidade), as ações. Falta água. E água, como todos sabemos, é a fonte da vida.

Ruy Gardnier