A
chegada do trem na estação
Mais ou menos no mesmo momento, os dois maiores inventores
do cinema nos anos 90 fizeram filmes dedicados e inspirados
pelo cinema de Yasujiro Ozu, em homenagem ao centenário
de seu nascimento. Mas tanto Five, de Abbas Kiarostami,
quanto Café Lumière, de Hou Hsiao-hsien,
têm a ver menos com uma tentativa de transposição
e atualização para a tela do universo
de Ozu do que com a idéia de uma aprendizagem,
de um encontro decisivo com um cinema que propõe
muito claramente suas metas. Resultado: em ambos os
casos, temos filmes que se aparentam muito pouco com
a obra do realizador de Era uma Vez em Tóquio,
ms que ao mesmo tempo parecem imbuídos de um
élan, de uma profunda inspiração,
de uma serenidade de observação que pertencem
profundamente à monumental contribuição
de Ozu ao cinema. Como em Five, a menção
a Ozu em Café Lumière surge não
como prestação de contas a um cineasta,
mas como um combustível que faz com que o cineasta
faça progredir e renovar sua própria carreira.
Tanto o filme de Kiarostami quanto o de Hou Hsiao-hsien,
dois cineastas com a mesma envergadura que seu mestre,
só dizem respeito a eles próprios, e a
mais ninguém. Ainda assim, é mais de reconstrução
do que continuidade da obra que se trata. Se Ozu permite
a Kiarostami liberar-se dos diálogos e da figura
humana para centrar-se na passagem do tempo e na filmagem
de animais e objetos da natureza, algo semelhante se
dá com Hou Hsiao-hsien. Se algo aparece como
tributo ao cinema de Ozu em Café Lumière,
não é tanto a filmagem de cenas da vida
cotidiana com os personagens falando sobre suas decisões
e comendo. É algo que se passa muito mais por
uma discrição específica em registrar
as mudanças luminosas de cada plano, de conceber
os leves movimentos de câmera (marca registrada
do grande trabalho de Lee Ping-bin, mais uma vez) e
os movimentos dos próprios personagens dentro
e fora do plano. Se há algo que difere Café
Lumière dos trabalhos anteriores de Hou,
é isso: se Millenium Mambo, Flores
de Xangai e Adeus ao Sul nos preparavam surpresas
acachapantes a cada plano (num acender de lâmpada,
num abrir de janela, num virtuoso plano seqüência),
neste filme vemos uma série de microacontecimentos
discretos, uma luz que refrata levemente num vidro,
uma televisão que altera a cor o rosto do pai,
mas tudo em discrição, nada que vá
perturbar a composição.
Dir-se-ia que Café Lumière é
ao mesmo tempo o mais sensível e o mais cerebral
dos filmes de Hou Hsiao-hsien. De todos, é possivelmente
o mais entregue às improvisações
dos atores, à glorificação dos
pequenos gestos da vida cotidiana, à possível
postulação de que a verdadeira arte nada
mais é do que registrar a vida em seus mais corriqueiros
momentos. Mas, ao mesmo tempo (e é isso que faz
de Café Lumière uma obra-prima
e de Hou Hsiao-hsien um dos maiores, senão o
maior realizador contemporâneo), também
ele sugere um tipo de fruição puramente
intelectual, derivada de um equilíbrio de composição
de plano dos mais arriscados e complexos (vários
planos chamando atenção para partes inesperadas
do quadro, ou para reconfigurações: caso
da paisagem em que vários trilhos de trens são
vistos, e no limite inferior da tela vemos um trem que
sai de um túnel). Além, naturalmente,
de um questionamento dos mais conceituais: o que é
dramático, como reconhecer a linha que separa
o contável do não-contável? A pergunta
é equacionada em forma de plano: quando sai da
estação, a jovem Yoko (dramatizada, protagonista)
caminha para longe da câmera, e rapidamente não
temos mais acesso aos seus movimentos, mas ao ir e vir
das incontáveis pessoas (não-dramatizáveis,
nem figurantes) que tomam diariamente o trem.
Um mínimo de fio narrativo: uma jovem escritora
volta para Tóquio, diz para a família
que está grávida de um taiwanês
mas que não vai se casar com ele, pesquisa sobre
um compositor de Taiwan que viveu há 60, 70 anos
no Japão, conhece um rapaz que grava os sons
dos trens e se apaixona por ele. Mas essa sinopse, que
poderia muito bem ser a de um filme que Ozu faria hoje
se estivesse vivo (a mudança dos valores, a passagem
da mulher de filha para mãe, como outrora de
solteira para casada), não tem exatamente um
aproveitamento narrativo. Antes, ela é um pretexto
para filmar o que realmente importa a Hou: no nível
tangível, material, como as pessoas se vestem,
como andam, como comem, como dialogam; no nível
cerebral, como é possível extrair a luz
mais notável e incomum (mas nada exibicionista),
como criar planos máximos em que só se
mostra o mínimo (diversos planos dos personagens
inteiramente de costas para a câmera), como criar
a composição de câmera de equilíbrio
mais ousado no cinema. Café Lumière,
por sua aparente simplicidade e economia de signos,
poderia remeter os mais incautos à música
new age. mas é uma comparação falsa:
Hou não está disposto a acalmar os sentimentos
e a amansar os ânimos, e tampouco a fazer da tela
um recipiente de beleza plácida em que se pode
navegar tranqüilamente. Ao contrário: para
se capturar a beleza de Café Lumière
é preciso estar atento às mínimas
mudanças no registro luminoso, aos mínimos
gestos ou não-gestos (a forma como a não-fala
do pai de Yoko significa, a forma como o último
plano de Yoko e Hajime diz tudo pela disposição
dos corpos), à meticulosa composição
do quadro, à maneira como a câmera se move.
Se há uma comparação musical possível,
é com um grupo como o Autechre, dupla eletrônica
das batidas complexas que demandam muita atenção
para encontrar alguma ordem no aparente caos rítmico.
Exigindo tamanha atenção aos detalhes
para que o efeito se faça, é natural que
se predique a Café Lumière o adjetivo
de hipnótico. E, como toda experiência
desse tipo, é uma questão de adesão
total ou frustração não
será dessa vez que o cinema de Hou conquistará
a unanimidade do público brasileiro. Mas é
um poder hipnótico bastante estranho, e muito
diferente de Flores de Xangai: aqui, não
é com a sugestão do ópio e do enclausuramento
nas casas de prostituição chinesas do
começo do século XX, mas com o próprio
mundo corrente, da Tóquio de hoje, a melodia
dos veículos passando, a harmonia das pessoas
nas ruas e nas estações de trem. A embriaguez
aqui é com a própria imanência do
mundo, com essa forma de "pintar" com a luz
da câmera por cima de uma fotografia do mundo,
à maneira dos pintores hiper-realistas. Assim,
à primeira pesquisa pela vida e obra do compositor
Jiang Wen-Ye se sobrepõe a pesquisa de
Hajime, que grava os sons do presente, simplesmente
registra o que está imediatamente ao seu redor.
Como nos hipnotizar com nossas próprias vidas?
Como criar maravilhamento a partir de nossas vivências
mais comuns? Hou Hsiao-hsien responde da maneira que
sabe, e é uma resposta preciosa: articulando
os elementos mais banais e criando a partir deles um
ritmo preciso, pintando com a câmera uma luz que
geralmente não percebemos, criando com a bruma
uma sensação que é incomum no cinema
(tão fascinado com a iluminação
que às vezes pouco se dá conta do verdadeiro
poder da luz), dramatizando aquilo que se acreditou
ser o oposto do drama: o simples transcorrer da vida,
aqui metamorfoseado em verdadeiro transbordamento do
instante e das oportunidades que o instante cria para
que surja beleza a partir dele.
O que é Café Lumière, então?
O documentário, uma ficção? Nenhum,
e ambos. Um mistério? Certamente. Um mistério
como há raros equivalentes no cinema. Raro até
para o cinema de Hou Hsiao-hsien: ao contrário
de certos realizadores que insistem apenas em repetir
os mesmos temas e procedimentos que os transformaram
em autores (hoje: Reygadas, Tsai Ming-liang, Dardennes),
Hou se reinventa completamente, faz seu filme mais decupado
em uns 15 anos (plano seqüência como opção,
não como muleta), renova sua temática
adicionando novos elementos, apura e simplifica sua
relação com o motor de seu cinema, a luz.
Então daí que vem o título, o nome
do café que nunca aparece no filme? Seria a luz
uma "casa" em que devemos nos sentir bem,
tomarmos uma xícara, conversarmos com pessoas
de que gostamos? Para Hou, certamente: depois de filmar
todas etapas de um dia, da noite ao meio-dia à
aurora, em Adeus ao Sul; depois de filmar as
luzes artificiais dos bordéis chineses em Flores
de Xangai e as luzes de boates da Taiwan contemporânea
em Milleinium Mambo, Hou apruma-se, xícara
à mão, e conversa, em roupas de mago,
com a luz do dia. Ou então Lumière, não
a luz, mas o inventor do cinema, é o verdadeiro
homenageado, e não Ozu. Em Café Lumière,
Hou Hsiao-hsien parece nos dizer que toda a progressão
cronológica do cinema, sua transformação
em ficção, sua complexidade crescente
de produção, de roteiros, de histórias,
de star system, equipe de filmagem, que tudo
isso só serviu para obscurecer a virtude principal
da máquina cinematográfica, esse dispositivo
maravilhoso que serve para simplesmente registrar a
passagem dos seres humanos pela vida. Mais pintor do
que "diretor", Louis Lumière filmou
refeições (O Café-da-manhã
do Bebê), pessoas em movimento (Saída
dos Operários das Fábricas Lumière),
bombeiros, jogos de cartas, barcos, trens, enfim o movimento
das pessoas e das coisas. Passando por Ozu, que filmava
as ruas em diagonais nos intervalos de seqüência
e as casas em verticais e horizontais como forma de
questionar a estática e a dinâmica do tempo
social, Hou Hsiao-hsien faz em Café Lumière
uma dupla celebração de propostas
de cinema, e comprova que todo o cinema ainda cabe na
simples chegada de um trem na estação.
Ruy Gardnier
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