'da beleza das imagens que não se encerram'
Não são muitos os cineastas tão profundamente interessados
quanto Michael Haneke é no efeito que as imagens produzidas
pelo mundo exercem no humano. No seu corpo, mas em sua
engenharia de vida, social e comportamental, também.
Advertência: não se enganar, pertence ao mundo seu próprio
cinema: o cinema de Haneke. De modo que não é novidade
que Haneke desnuda e promove, em seus filmes, para quem
quiser ver, os processos de gestação das imagens. Câmeras,
vídeos, aparelhos de reprodução: todos são ativados
como combustíveis e problematizados dentro do quadro,
da tela.
Esse
laboratório de imagens surge para discutir a sociedade,
mas também as reações do homem na frente da câmera e
atrás da tela, mais ou menos como se a nos dizer que a
relação entre essas instâncias é inevitável. Ou,
antes, é simplesmente crucial. Não há crise possível
de uma sem as outras: a câmera, nós, o nosso mundo e
o dos personagens. Seu destino é a eterna crise, crise
ao infinito. Caché, com Haneke tendo consciência
de que o diálogo entre imagem, sociedade e humano é
tão violento quanto complexo e dialético, é a exacerbação
de todos esses traços da obra do realizador austríaco.
Do trivial partimos, o enredo: a família de Georges
Laurent (Daniel Auteuil), apresentador de um talk-show
cultural na TV francesa, se vê atormentada por uma correspondência
audiovisual. Recebe, em seu ninho doméstico harmonioso,
fitas cujas imagens, em longos planos fixos ou de deslocamento
ininterrupto em planos seqüência, vigiam sua casa ou
visitam lugares relacionados à infância de Laurent. Ponto:
as fitas, e o pesadelo que delas decorre, têm a
ver com essa infância. Não uma infância brutal, mas de egoísmo e, talvez,
sadismo, como muitas outras. Mas o que sabem as crianças?
Um problema: egoísmo e sadismo de Georges contra, ou
em relação a, um argelino, filho de subalternos de sua
casa rural. Argelino. Poderia, aliás, ser qualquer criança,
um primo por exemplo. Mas, também sabemos que as crianças
sabem o que são normas e subordinação: aprendem, se
por ensino direto ou observação não importa, quem são
os empregados e qual é sua distância, ainda que respeito
e mesmo reverência ocorra em dois sentidos, do funcionário
para o patrão e vice-versa. Esse pacote de vídeos promoverá
a desordenação das vigas do lar de Laurent e gerará
uma cadeia de situações em que o controle é perdido.
A história pessoal, inundada pela história política
e mesmo bélica, a história de todos nós portanto, encontrará outro rito que se locomove
entre o institucional, o que todos assinam, e o afetivamente
íntimo: o do casamento. Esse mote é suficiente para
Haneke montar um circuito de fabulação de imagens e,
conseqüentemente, de questionamento sobre sua validade.
Nesse circuito, somos nós e os personagens não tanto
as vítimas, mas os condutores, pois parte de nossa percepção
a direção e a carga que essas imagens terão.
Uma imagem é a da TV. Como o público francês reage às
imagens da TV? E como ele reage à sua própria auto-imagem,
a do povo da luz e da vanguarda da mentalidade, se o
espelho é midiatizado, em última instância regido por
uma planificação de mercado? Na empresa de comunicação
em que Laurent trabalha, a luminosidade cultural é quase
uma questão cênica. É a própria ambientação, a essência
da construção dos programas. Estão lá, alinhados, nomes
celebres, escritores, discutindo literatura e outras
coisas, belas, mas práticas em um sentido industrial.
É uma imagem ilusória ou verdadeira, a da luz? O fato
é que entre uma tarde e outra, Laurent monta o programa,
realçando ou dissolvendo pontos, enfim, dando o sentido
mais pragmático possível, e, ninguém duvidará, incrementando
a embalagem iluminada daquele mundo francês filmado
e propagado. O brilho cultural e de lucidez na sociedade
francesa é um fato, mas é um fato, em última instância,
fabulado.
Assim, outra imagem fundamental no filme ocorre na rua,
por onde transitam os cidadãos desse mundo francês.
Laurent, saindo da emissora pela calçada, atravessa
distraidamente a rua, no que é surpreendido por um homem
a mil em sua bicicleta. Situação ríspida, filmagem seca,
em que o tempo conduz totalmente o plano: Laurent, ameaçador,
enerva-se e grita com o homem, com vontade, com muita
vontade. O homem é negro, e quase se revolta com a arrogância
assustada de Laurent. É arrogância? Ele tinha seus motivos,
a revolta é efêmera tanto quanto é justa. O fato é que
Laurent grita pois gritaria com qualquer um, afinal
sentiu-se ameaçado. Ou, seria mais correto: grita com
mais vigor pois realmente acha que um atropelamento
é um absurdo, mas, inseminada nele está a noção de que
se quem estiver na garupa for um imigrante africano,
tanto pior, por que haveria uma distância, como no caso
do argelino da infância, incontornável. Pode ser, aliás,
ficamos com essa porque estamos acostumados ao bombardeamento
de signos das lógicas políticas, pode ser a mais conservadora
ou ético-liberal. O mal-estar de classes, não importa
quais, é tão mais sombrio e determinante do atual estado
de coisas quanto sofisticado, mas onde está a verdade
se Haneke filma o ato, sua própria forma, o seu volume
e sua densidade? Daí que há em Caché, nada é
certo. Somos levados a renovar crença no que acreditamos,
no que aprendemos no modelamento dia-a-dia da pedagogia
e dos signos políticos, mas somos, se olharmos profundamente
para cada cena, compelidos a esquecer de tudo isso,
para nos concentrar no físico, no que, afinal, existe,
a única verdade.
Outra imagem é a dos vídeos enviados à residência dos
Laurent. O plano fixo frontal para a fachada da casa
estende-se por minutos, até sermos surpreendidos por
um ruído visual de rebobinar. Rewind. Alguém está voltando
a fita, não aterrissamos no filme ainda, todos pensarão.
É uma imagem do filme, Caché? Não, não é. São
as imagens da vida real, banal, de um personagem, mas
um personagem da vida ficcional. Quer dizer, então,
combinamos: fazem sim parte do filme. Outra imagem ainda
é o próprio Caché, uma imagem geral. Haneke está
falando da França ou de um homem? Ou, corrigindo, é
impossível separar as imagens desse homem e da França.
Ou não é. Temos, por exemplo, seu emprego na televisão.
Temos também os vídeos e a sua culpa. E temos, nesse
nível do filme como imagem geral, nós e nossa reação
diante dessa culpa. Nós acima de tudo. Somos levados
a crer que a questão toda passa pelo neocolonialismo,
ele também. Passa pela erosão política e social, pelo
desgaste da iluminação cuja versão andróide está na
TV de Laurent e, obviamente, pela falência consorciada
e espacializada, cheia de minas e cercas imaginadas,
do que os europeus têm como sociedade. Mas o que é história
ou humano é pouco claro. E é difícil descontaminar uma
da outra: é nessa eterna batalha, nessa espiralação
de uma coisa em confluência e em choque com a outra,
que opera Haneke em sua mise en scène dos registros
e das sensações registráveis.
Haneke nos coloca dentro da angústia de Laurent, o que
é um mérito quase geométrico, com "dentro"
e "colocar" exercendo aqui certa figuratividade,
alguma concretude. Quando Laurent, morbidamente agoniado
após um incidente dentro apartamento parisiense que
a câmera oculta registrava nos vídeos secretos, deita-se
na sua própria cama, em seu quarto escuro possivelmente
protegido do fim da tarde ou da própria noite, enfim,
fechado, deitamos junto. Esse silencioso e lúgubre "estar",
encasulado, não é concebido por efeito de expressão.
Está aqui pois trata-se de um quarto em que estamos,
após uma situação que pertence a nós. Mas pertence a
nós pois, em nossa lucidez liberal consternada, ou em
nossa crosta de proteção conservadora em relação ao
caos, somos culpabilizados (a assumimos ou somos chamados
à culpa) tanto quanto Laurent da podridão de uma arquitetura
sociológica. Talvez não, pertence a nós simplesmente
por que é necessário não sabermos se aquilo tudo diz
respeito a uma história ou a uma vida. Aliás, quando
Laurent se deita, está esperando por um pesadelo. Por
uma lembrança. Nós, por uma consequência direta, uma
ameaça física, naquela cenário. O que surgirá? Ele sabe
que terá um pesadelo, nós pressentimos que algo destruidor
acontecerá no quarto. Estamos por um fio. Nessa hora,
a imagem de sonho, ou flashback, não importa pois é
de qualquer jeito um sonho pesado, fantásmico e terrivelmente
real, entra em colapso com a imagem que está em curso
no próprio filme, essa que nos deixa prevenidos de tanta
aflição, que é de severa calma. A imagem do quarto sai,
seguimos na do sonho. O que é produzido desse colapso
é o diálogo entre o nosso medo e o do personagem, coisa
que não se encerra porque o que é primordial nesse filme
é exatamente sua capacidade de nunca se encerrar.
Assim, o que é espetáculo no cinema de Haneke não é
bem sua mise en scène da gravidade: tudo parece
pesar no quadro, cada som cru de utensílios inclusive.
Espetacular é essa sua anormal capacidade dialética,
raríssima e "fadada" à instauração infinita
dos princípios que dialogam, que aqui neste Caché
atinge um auge. Uma capacidade da qual de certa forma
abdica para gerar a mise en scène da gravidade. O que
está dentro das cenas transpira esse teor dialético,
já a cena em si, em sua concepção, não é dialética:
no quadro, a montagem parametrada por Haneke existe
para evidenciar que não há montagem, que não há ilusão.
Afinal ele cria as cenas no quadro para nos colocar
a par. A par do que está acontecendo, essa sua habilidade
mais depurada e visível, a indução àquilo que está em
curso no momento, no minuto. O que está acontecendo
geralmente é grave, de fato, embora gravidade tenha
a ver mais com o conceito físico. Mas, quer dizer, abdica
da capacidade dialética? Pois o fato é que nunca estamos
e ninguém está realmente a par de nada diante da câmera
de Haneke. Em última instância, é também por isso que
as texturas e peles dos registros dos vídeos endereçados
aos Laurent e da imagem do próprio filme são idênticas.
Não há separação: os personagens têm o vídeo assim como
temos Caché: Haneke é o autor das fitas, muito
para promover, dar partida, a esse movimento dialético
espiralado e infinito. É ele o autor do "sonho"
final de Laurent, que é nosso e do personagem e cuja
angulação é a mesma da dos vídeos anônimos. Estamos
na mesma dos personagens: não sendo manipulados, mas
antes colocados em contato com verdades não-verdadeiras,
com pulsões e informações que são indomesticáveis não
tanto por serem violentas, mas por nunca se resolverem
de forma permanente e segura. Belíssimo filme.
Claudio Szynkier
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