CACHÉ
Michael Haneke, Caché, França/Áustria/Alemanha/Itália, 2005

'da beleza das imagens que não se encerram'

Não são muitos os cineastas tão profundamente interessados quanto Michael Haneke é no efeito que as imagens produzidas pelo mundo exercem no humano. No seu corpo, mas em sua engenharia de vida, social e comportamental, também. Advertência: não se enganar, pertence ao mundo seu próprio cinema: o cinema de Haneke. De modo que não é novidade que Haneke desnuda e promove, em seus filmes, para quem quiser ver, os processos de gestação das imagens. Câmeras, vídeos, aparelhos de reprodução: todos são ativados como combustíveis e problematizados dentro do quadro, da tela.

Esse laboratório de imagens surge para discutir a sociedade, mas também as reações do homem na frente da câmera e atrás da tela, mais ou menos como se a nos dizer que a relação entre essas instâncias é inevitável. Ou, antes, é simplesmente crucial. Não há crise possível de uma sem as outras: a câmera, nós, o nosso mundo e o dos personagens. Seu destino é a eterna crise, crise ao infinito. Caché, com Haneke tendo consciência de que o diálogo entre imagem, sociedade e humano é tão violento quanto complexo e dialético, é a exacerbação de todos esses traços da obra do realizador austríaco.

Do trivial partimos, o enredo: a família de Georges Laurent (Daniel Auteuil), apresentador de um talk-show cultural na TV francesa, se vê atormentada por uma correspondência audiovisual. Recebe, em seu ninho doméstico harmonioso, fitas cujas imagens, em longos planos fixos ou de deslocamento ininterrupto em planos seqüência, vigiam sua casa ou visitam lugares relacionados à  infância de Laurent.
Ponto: as fitas, e o pesadelo que delas decorre, têm a ver com essa infância. Não uma infância brutal, mas de egoísmo e, talvez, sadismo, como muitas outras. Mas o que sabem as crianças? Um problema: egoísmo e sadismo de Georges contra, ou em relação a, um argelino, filho de subalternos de sua casa rural. Argelino. Poderia, aliás, ser qualquer criança, um primo por exemplo. Mas, também sabemos que as crianças sabem o que são normas e subordinação: aprendem, se por ensino direto ou observação não importa, quem são os empregados e qual é sua distância, ainda que respeito e mesmo reverência ocorra em dois sentidos, do funcionário para o patrão e vice-versa. Esse pacote de vídeos promoverá a desordenação das vigas do lar de Laurent e gerará uma cadeia de situações em que o controle é perdido. A história pessoal, inundada pela história política e mesmo bélica, a história de todos nós  portanto, encontrará outro rito que se locomove entre o institucional, o que todos assinam, e o afetivamente íntimo: o do casamento. Esse mote é suficiente para Haneke montar um circuito de fabulação de imagens e, conseqüentemente, de questionamento sobre sua validade. Nesse circuito, somos nós e os personagens não tanto as vítimas, mas os condutores, pois parte de nossa percepção a direção e a carga que essas imagens terão.

Uma imagem é a da TV. Como o público francês reage às imagens da TV? E como ele reage à sua própria auto-imagem, a do povo da luz e da vanguarda da mentalidade, se o espelho é midiatizado, em última instância regido por uma planificação de mercado? Na empresa de comunicação em que Laurent trabalha, a luminosidade cultural é quase uma questão cênica. É a própria ambientação, a essência da construção dos programas. Estão lá, alinhados, nomes celebres, escritores, discutindo literatura e outras coisas, belas, mas práticas em um sentido industrial. É uma imagem ilusória ou verdadeira, a da luz? O fato é que entre uma tarde e outra, Laurent monta o programa, realçando ou dissolvendo pontos, enfim, dando o sentido mais pragmático possível, e, ninguém duvidará, incrementando a embalagem iluminada daquele mundo francês filmado e propagado. O brilho cultural e de lucidez na sociedade francesa é um fato, mas é um fato, em última instância, fabulado.

Assim, outra imagem fundamental no filme ocorre na rua, por onde transitam os cidadãos desse mundo francês. Laurent, saindo da emissora pela calçada, atravessa distraidamente a rua, no que é surpreendido por um homem a mil em sua bicicleta. Situação ríspida, filmagem seca, em que o tempo conduz totalmente o plano: Laurent, ameaçador, enerva-se e grita com o homem, com vontade, com muita vontade. O homem é negro, e quase se revolta com a arrogância assustada de Laurent. É arrogância? Ele tinha seus motivos, a revolta é efêmera tanto quanto é justa. O fato é que Laurent grita pois gritaria com qualquer um, afinal sentiu-se ameaçado. Ou, seria mais correto: grita com mais vigor pois realmente acha que um atropelamento é um absurdo, mas, inseminada nele está a noção de que se quem estiver na garupa for um imigrante africano, tanto pior, por que haveria uma distância, como no caso do argelino da infância, incontornável. Pode ser, aliás, ficamos com essa porque estamos acostumados ao bombardeamento de signos das lógicas políticas, pode ser a mais conservadora ou ético-liberal. O mal-estar de classes, não importa quais, é tão mais sombrio e determinante do atual estado de coisas quanto sofisticado, mas onde está a verdade se Haneke filma o ato, sua própria forma, o seu volume e sua densidade? Daí que há em Caché, nada é certo. Somos levados a renovar crença no que acreditamos, no que aprendemos no modelamento dia-a-dia da pedagogia e dos signos políticos, mas somos, se olharmos profundamente para cada cena, compelidos a esquecer de tudo isso, para nos concentrar no físico, no que, afinal, existe, a única verdade.

Outra imagem é a dos vídeos enviados à residência dos Laurent. O plano fixo frontal para a fachada da casa estende-se por minutos, até sermos surpreendidos por um ruído visual de rebobinar. Rewind. Alguém está voltando a fita, não aterrissamos no filme ainda, todos pensarão. É uma imagem do filme, Caché? Não, não é. São as imagens da vida real, banal, de um personagem, mas um personagem da vida ficcional. Quer dizer, então, combinamos: fazem sim parte do filme. Outra imagem ainda é o próprio Caché, uma imagem geral. Haneke está falando da França ou de um homem? Ou, corrigindo, é impossível separar as imagens desse homem e da França. Ou não é. Temos, por exemplo, seu emprego na televisão. Temos também os vídeos e a sua culpa. E temos, nesse nível do filme como imagem geral, nós e nossa reação diante dessa culpa. Nós acima de tudo. Somos levados a crer que a questão toda passa pelo neocolonialismo, ele também. Passa pela erosão política e social, pelo desgaste da iluminação cuja versão andróide está na TV de Laurent e, obviamente, pela falência consorciada e espacializada, cheia de minas e cercas imaginadas, do que os europeus têm como sociedade. Mas o que é história ou humano é pouco claro. E é difícil descontaminar uma da outra: é nessa eterna batalha, nessa espiralação de uma coisa em confluência e em choque com a outra, que opera Haneke em sua mise en scène dos registros e das sensações registráveis.

Haneke nos coloca dentro da angústia de Laurent, o que é um mérito quase geométrico, com "dentro" e "colocar" exercendo aqui certa figuratividade, alguma concretude. Quando Laurent, morbidamente agoniado após um incidente dentro apartamento parisiense que a câmera oculta registrava nos vídeos secretos, deita-se na sua própria cama, em seu quarto escuro possivelmente protegido do fim da tarde ou da própria noite, enfim, fechado, deitamos junto. Esse silencioso e lúgubre "estar", encasulado, não é concebido por efeito de expressão. Está aqui pois trata-se de um quarto em que estamos, após uma situação que pertence a nós. Mas pertence a nós pois, em nossa lucidez liberal consternada, ou em nossa crosta de proteção conservadora em relação ao caos, somos culpabilizados (a assumimos ou somos chamados à culpa) tanto quanto Laurent da podridão de uma arquitetura sociológica. Talvez não, pertence a nós simplesmente por que é necessário não sabermos se aquilo tudo diz respeito a uma história ou a uma vida. Aliás, quando Laurent se deita, está esperando por um pesadelo. Por uma lembrança. Nós, por uma consequência direta, uma ameaça física, naquela cenário. O que surgirá? Ele sabe que terá um pesadelo, nós pressentimos que algo destruidor acontecerá no quarto. Estamos por um fio. Nessa hora, a imagem de sonho, ou flashback, não importa pois é de qualquer jeito um sonho pesado, fantásmico e terrivelmente real, entra em colapso com a imagem que está em curso no próprio filme, essa que nos deixa prevenidos de tanta aflição, que é de severa calma. A imagem do quarto sai, seguimos na do sonho. O que é produzido desse colapso é o diálogo entre o nosso medo e o do personagem, coisa que não se encerra porque o que é primordial nesse filme é exatamente sua capacidade de nunca se encerrar.

Assim, o que é espetáculo no cinema de Haneke não é bem sua mise en scène da gravidade: tudo parece pesar no quadro, cada som cru de utensílios inclusive. Espetacular é essa sua anormal capacidade dialética, raríssima e "fadada" à instauração infinita dos princípios que dialogam, que aqui neste Caché atinge um auge. Uma capacidade da qual de certa forma abdica para gerar a mise en scène da gravidade. O que está dentro das cenas transpira esse teor dialético, já a cena em si, em sua concepção, não é dialética: no quadro, a montagem parametrada por Haneke existe para evidenciar que não há montagem, que não há ilusão. Afinal ele cria as cenas no quadro para nos colocar a par. A par do que está acontecendo, essa sua habilidade mais depurada e visível, a indução àquilo que está em curso no momento, no minuto. O que está acontecendo geralmente é grave, de fato, embora gravidade tenha a ver mais com o conceito físico. Mas, quer dizer, abdica da capacidade dialética? Pois o fato é que nunca estamos e ninguém está realmente a par de nada diante da câmera de Haneke. Em última instância, é também por isso que as texturas e peles dos registros dos vídeos endereçados aos Laurent e da imagem do próprio filme são idênticas. Não há separação: os personagens têm o vídeo assim como temos Caché: Haneke é o autor das fitas, muito para promover, dar partida, a esse movimento dialético espiralado e infinito. É ele o autor do "sonho" final de Laurent, que é nosso e do personagem e cuja angulação é a mesma da dos vídeos anônimos. Estamos na mesma dos personagens: não sendo manipulados, mas antes colocados em contato com verdades não-verdadeiras, com pulsões e informações que são indomesticáveis não tanto por serem violentas, mas por nunca se resolverem de forma permanente e segura. Belíssimo filme
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Claudio Szynkier