O acesso aos filmes de Jim Jarmusch
raramente se dá pelo enredo ou por personagens. É preciso,
antes, aderir a signos. Em seu primeiro longa-metragem,
Permanent Vacation, despontava um maneirismo
menos de atletismo de câmera e mais de estases gráficas
em que a estilização dizia respeito a gestos, poses
e referências (ao cinema clássico, às séries de tv,
à arte pop): o plano-seqüência fixo que mostrava um
rapaz neo-bebop acordando no terraço de um prédio,
com o Empire State Building ao fundo, tinha a tarefa
de minimizar a um único enquadramento e um único intervalo
entre cortes a dupla assimilação de Andy Warhol (Sleep
e Empire). Estranhos no Paraíso, o filme
posterior, trazia também personagens que perfaziam o
ciclo ambíguo do novo mercado de imagens: consumir imagens
até se tornar uma delas. Vinte anos e sete longas depois,
vem Flores Partidas, o filme em que Jarmusch
mais aprisiona seu universo em formas e personagens
cimentados, paralisados justamente na sua tendência
de movimento. Um falso road movie – se por road
movie se entende um filme que traz ao cinema a sensação
de movimento e passagem, Flores Partidas está
mais para o estatuário de uma América que antes de chegar
à tela já é imagem. Don Johnston (Bill Murray) faz o
passeio por um museu de cera da sociedade americana:
o que interessa a Jarmusch é um mapeamento dos EUA a
partir de tipos que se encontra tanto viajando de carro
quanto assistindo à televisão – mas que requerem um
olhar diferenciado, atento a detalhes.
Os primeiros minutos de Flores Partidas mostram
Bill Murray parado no centro da sua sala de estar, com
a tv ou o som ligados, como se estivesse petrificado
pelo tédio. Após ser deixado por Sherry (Julie Delpy),
que reclama estar sendo tratada como a amante de um
homem que nem casado é, ele recebe uma carta em que,
com letras vermelhas digitadas à máquina num papel rosa,
alguém lhe informa a existência de um filho que nunca
chegou a conhecer. Seu vizinho Winston, imigrante africano
que aprende na internet os macetes das histórias de
detetives (cultura do folhetim policial que em Daunbailó
Roberto Benigni dizia ter aprendido no cinema), começa
a convencê-lo a ir atrás desse filho, ou de seja lá
qual for a verdade sobre essa carta. Operário que precisa
“bater o cartão” e sustentar seus filhos, portanto sem
tempo para se aventurar, Winston se embriaga no infinito
de conexões e atalhos da internet, enquanto Don, que
enriqueceu com a informática, nem computador possui.
Exatamente o tipo de paradoxo que Jarmusch ama: a cultura
que fascina muito mais o estrangeiro do que o seu próprio
inventor. Winston vive seus dias de ficcionista ao planejar
(mapas, endereços, logística, dicas de comportamento,
tudo por conta dele) e acompanhar à distância a viagem
à procura das ex-namoradas de Don.
A odisséia de um pai ao encontro do filho já aparece
como uma sobrecarga de simbolismo que desperta todo
tipo de receio, mas Jarmusch sabe perfeitamente construir
uma dramaticidade cenográfica, uma narrativa puramente
espacial, e é exatamente isso o que pauta grande parte
das cenas de Flores Partidas. A estrutura resultante
se aproxima de uma sucessão de episódios/esquetes separados
por hiatos narrativos ao som da música “de estrada”
gravada por Winston. O trabalho de Bill Murray não se
situa nem abaixo nem acima do esperado, algo como uma
interpretação em “temperatura ambiente”: seu corpo em
desacordo total com os lugares e as pessoas que visita
(a distância é tamanha que chega a ser inverossímil
um relacionamento passado entre ele e aquelas mulheres),
a inação como premissa para uma dramaturgia dos pequenos
gestos e reações faciais, a exposição ao patético, o
constante clima de “saco cheio”. Às vezes falta ao personagem
de Murray em Flores Partidas o que de certa forma
já faltava em A Vida Marinha com Steve Zissou e
dava a força de Encontros e Desencontros: um
sentimento de diluição no espaço que ultrapasse a simples
fetichização do ator. Mas nada que impeça que a genialidade
de Bill Murray aflore.
É mesmo na falta do que fazer que Don aceita essa busca.
A motivação é indiferente: a origem de um movimento,
assim como seu ponto de chegada, nunca teve muito peso
no cinema de Jarmusch, e Flores Partidas tenta
uma nova versão da indolência narrativa de outros filmes
dele. A paternidade é apenas uma ferramenta de frouxidão
psicológica. A questão da família não se põe mais, e
tudo que se aproxima desse assunto vem carregado de
ligações defeituosas: a viúva carente (Sharon Stone,
como sempre extraordinária) e sua filha Lolita, que
aparece pelada na frente de Don; o casal que vive numa
casa que parece um aquário kitsch, dividindo
o mesmo negócio e sem possuir filhos; o pandemônio caipira
em que todos são sensíveis a qualquer elemento externo,
reagindo com histeria e violência (onde Bill Murray
leva o soco que o faz passar o resto do filme com um
esparadrapo no supercílio). Somente Winston, o estrangeiro,
apresenta uma família solidamente constituída – os protótipos
familiares americanos caem na caricatura fácil.
Também não há mais relevância na questão do verdadeiro
e do falso: a carta não precisa ser autêntica, a jornada
não precisa levar a algum lugar, pois o que se está
pondo à prova nada mais é que a simples existência de
Don Johnston (ser ou não ser, mas sem se questionar
o como). A figura difusa é ele mesmo, não o filho supostamente
concebido muitos anos antes. Tudo se resume a uma necessidade
de semelhança – curiosamente a premissa lacaniana para
a construção da identidade (o “estágio do espelho” etc
e tal; teoria ainda recorrente quando Jarmusch começava
a fazer cinema). A única pessoa com quem Don se comunica
sem ruídos é um estrangeiro, faltam-lhe semelhantes.
Basta que Don aviste um rapaz com um casaco parecido
com o seu para começar a ligar os fatos e tentar achar
nele seu possível filho. Logo depois, um outro rapaz
passa de carro e não apenas seu casaco, mas também o
rosto é muito parecido. A cura da falência existencial
de Don não estava na ilusão de descendência, portanto,
e sim na procura de um sentimento de familiaridade com
o mundo à sua volta. O filme não deixa de ser um atestado
de impasse diante das novas imagens – que podem ou não
acarretar narrativas em crise. O último plano é um giro
de 360º da câmera em torno de Bill Murray, terminando
parado no seu rosto imutável: o limite da velocidade
de conexão é o próprio vazio.
Jarmusch recoloca aqui os elementos de sempre – não
por acaso os elementos que o aproximam de Wenders e
o tornam um estrangeiro dentro de casa –, com o detalhe
de que entre o esteta talentoso (Estranhos no Paraíso,
Daunbailó, Dead Man, Ghost Dog)
e o narrador derrisório (Trem Mistério, Noite
Sobre a Terra, Flores Partidas) se acha a
fronteira que define o triunfo ou o fracasso de seu
cinema. Mas o tal elo pai-filho, ainda que fantasmático,
praticamente impõe um desenvolvimento afetivo do material
filmado. É onde entra a ligeira mudança: por trás de
toda ironia e de toda amarração conceitual, Flores
Partidas esconde uma propulsão que Jarmusch quase
nunca deixava aflorar (embora em Ghost Dog já
se pronunciasse), e que consiste numa vontade de fazer
o filme chegar ao espectador por caminhos menos intelectuais
do que emotivos. A aproximação ao filme é concentrada
num universo cultural não tão fechado. O que equivale
a dizer que Jarmusch fez seu filme menos indie
e mais “universal”.
Mudança que não salva Flores Partidas de ser
excessivamente cauteloso na administração dos temas
e das proposições formais. O melhor do filme está mesmo
em alguns momentos de comédia inteligente com Bill Murray
inspirado. Ghost Dog e Dead Man – este
ainda sendo o grande filme de Jarmusch depois de Permanent
Vacation e Estranhos no Paraíso – aprofundavam
as preocupações temáticas, mas experimentavam novas
formas, enquanto Flores Partidas completa ao
lado de Sobre Café e Cigarros uma revisão de
obra um tanto emparedada em si mesma. Ou talvez essa
seja a forma coerente à visão de um mundo que, fazendo
jus ao momento “filosófico” de Don, desconhece o passado,
está anestesiado ao futuro e vive a inflação do presente.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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