Talvez uma das características
mais fascinantes da cultura indiana seja a não-negação
do que lhe é externo e diferente, e conseqüentemente
a incorporação e re-significação de elementos que freqüentemente
operam no processo. O diferente não é uma ameaça, mas
uma fonte de apropriações. Assim sendo, sua relação
com as culturas estrangeiras, especialmente a americana
e a inglesa, pautada por um certo fascínio do “desenvolvimento”,
traz diversos complicadores para as teorias de imperialismo
cultural. Ao mesmo tempo em que o indiano absorve dados
destas culturas com facilidade, ele impõe a sua forma
de levar isto adiante. E por mais que se submeta a uma
“aprovação”, com uma forte necessidade de se sentir
reconhecido, ele se afirma, com uma espécie de “orgulho
pátrio”. Um orgulho afirmativo, que não vem de um conjunto
de características que necessitam serem preservadas
como um monolito, e sim de um sentimento – que o indiano
pode carregar consigo aonde quer que ele vá, no que
quer que ele faça. A sentimentalidade, aliás, é um dado
importante da relação do indiano com o mundo e, não
por acaso, é ela que orienta a vertente popular de seu
cinema.
É neste terreno que Noiva e Preconceito transita.
Dirigido por uma anglo-indiana, o filme se pauta na
estética característica de Bollywood para narrar um
romance envolto em conflitos desta natureza “cultural”
(a noiva e o preconceito). Em sua narrativa calcada
na obviedade, este romance entre Lalita, indiana, e
Darcy, americano, é apontado desde a primeira seqüência.
No entanto, o filme, que se divide também entre as dinâmicas
amorosas das irmãs da protagonista, não nos dá de cara
a certeza de que este casal irá de fato se consumar
como tal. No meio do caminho, diversos qüiproquós e
confusões de conceitos e papéis se dão, deixando entrever
questões acerca de como um povo se quer representado,
e forja sua própria identidade cultural. Apropriando
de fora (da Inglaterra) uma fórmula cinematográfica
bastante característica e tematizando choques culturais,
Chadha dispõe seus personagens de acordo com tipificações
facilmente reconhecíveis, para ir aos poucos embaralhando
algumas atitudes esperadas.
Lalita é a garota indiana esclarecida. Darcy, o americano
conquistador. Balraj, o inglês gentil. Lakhi, irmã mais
nova, a adolescente ocidentalizada e inocente. Maya,
a irmã que sonha com o casamento. A mãe é uma típica
Punjabi falante e expansiva, que quer casar as filhas
a todo custo, de preferência com bons partidos. O pai
é aquele tipo calmo, na dele, que quer o melhor pras
filhas. Kholi é o típico loser nerd que
faz o que pode para parecer bem-sucedido, convertendo-se
em personagem cômico. Kiran, irmã de Balraj, é a mulher
européia emancipada e arrogante. Johnny Wickham, o mochileiro
sedutor e mal-intencionado. Reconhecemos nestes personagens
figuras recorrentes, mas, para além de suas imagens,
o filme trabalha em cima dos posicionamentos e comportamentos
de cada um deles, a partir de seu pressuposto de “encontro
entre culturas”.
Vindos da América, Kholi e Darcy tem imagens redutoras
da Índia. Kholi ama o seu país como um lugar distante,
quase idílico, para passar férias, ideal para entretenimento
e descanso. Seu subdesenvolvimento, porém, nunca fará
dele um espaço para viver. Já Darcy vê a Índia com exotismo,
do alto da sua arrogância capitalista: um lugar pobre,
de tradições arcaicas, mas que talvez possa ser fonte
de lucro. Lalita, originária dali (e heroína do filme,
condutora do nosso olhar), é aquela que irá apresentar
uma imagem nuançada do país, na qual a suposta cultura
“pura”, exótica, que os olhos ocidentais vão buscar
com curiosidade, mescla-se a uma absorção enorme (por
vezes mais do que o desejado) da cultura ocidental.
Nós não chegamos a ver a Índia que esperamos, pois praticamente
todos os personagens se furtam de uma caracterização
corrente (o pai, que não está nem ligando pra casamento,
Lakhi, que é totalmente americanizada, Wickham, o príncipe
mau-caráter, e até Darcy, que não conseguimos enquadrar
facilmente) e os que encarnam esta caracterização, o
fazem em tom de pastiche (a mãe, louca por um casamento
tradicional, Maya, que sonha em encontrar seu homem,
Kholi, indiano que não conhece o seu país).
As tomadas de posição de Lalita – o flerte com Wickham
(que apresenta um interesse “genuíno” e “humilde” pela
cultura local) e a entrega sem culpa à sua doçura (ainda
que seja depois revelada sua “outra face”), o repúdio
ao interesse machista-imperialista que Darcy num primeiro
momento apresenta (“me mostre as tradições”), assim
como o desprezo pela sua arrogância – apontam para a
sua vontade de se instaurar em outro tipo de dinâmica
inter-cultural. A defesa de uma liberdade (da mulher,
do país periférico) é, para ela, o ponto de partida
de qualquer relação mais ampla. E isto, no filme, está
relacionado com sua própria constituição: filme realizado
na Inglaterra que “empresta” sua formatação narrativa
de Bollywood, cinema que de certa forma apregoa este
tipo de mescla como afirmação.
Noiva e Preconceito, no entanto, não é mais o
Bollywood “clássico”. Faz parte, indiretamente, de um
movimento mais recente deste cinema, o da “ocidentalização”.
Mas o que seria formatar este produto para o mercado
estrangeiro se, para se constituir, este cinema modelou-se
a partir deste estrangeiro? Ir ainda mais fundo nesta
incorporação, que reside de certa forma no seio desta
indústria (capaz de misturar gêneros, formas dramáticas,
influências narrativas)? “Incorporar” até um limite
no qual não haveria mais forma nem discursos identificáveis,
pois estes teriam se diluído? Ao fazer um filme “indiano”
fora da Índia seguindo estas tendências, misturando
registros (o pastiche, a sátira, a comédia, o drama,
o romance) e tematizando questões de choque cultural,
Chadha demonstra uma autêntica compreensão dos processos
fascinantes que alimentam o cinema de Bollywood (e que,
por uma retro-alimentação, podem mesmo vir a diluí-lo
por completo como forma identificável e até “vendável”)
e propõe questionamentos sobre representação de imaginários
(nacionais, cinematográficos) como poucas vezes se vê.
Sem com isso escapar da própria encarnação de diversas
destas problemáticas, já que o filme está imerso nesta
esquizofrenia e não se pretende um discurso organizador
deste todo, embora trabalhe com todas estas questões.
Em quesitos formais, porém, é uma pena que Chadha não
consiga dosar apropriadamente o ritmo do filme (especialmente
nas cenas musicais, que carecem muito de dinamismo),
e apareça com uma solução um tanto fácil no final, resolvendo
o futuro dos personagens de forma excessivamente “acertada”
e rápida, para o encaminhamento do filme até ali.
Tatiana Monassa
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