Kim Shun-pei, personagem de
Beat Takeshi (Kitano) em Blood and Bones, é um
imigrante coreano que aporta à paisagem industrial de
Osaka nos anos 20. O início mostra um rosto deslumbrado
diante da “terra à vista”, e quando ao final do filme
é revelado o contracampo dessa expressão, voltando à
cena do navio e mostrando o conglomerado de chaminés
sob o céu cinzento a que os imigrantes se dirigem, toda
a trajetória de Kim, que havíamos acabado de acompanhar,
parece condensada nessa montagem intelectual (na qual
Kitano, quando diretor, coincidentemente é um mestre):
Kim construiria seu patrimônio a golpes de marreta sob
uma redoma de chumbo, um céu que asfixia a comunidade
dentro da comunidade (o micro-cosmo coreano enclausurado
em Osaka). Um corpo que desconhece outra forma de reagir
ao entorno que não a violência, um tubo reator que distribui
sua energia através de socos, pauladas e pontapés. No
sexo, no trabalho ou na briga, suas atividades físicas
são alimentadas pela mesma agressividade. A violência
como forma de vida, como processo de trabalho, impulso
anti-estratégico de sobrevivência e isolamento social.
O mundo se volta contra Kim (ou o oposto), à medida
que o corpo envelhece e a energia se esvai.
Ao montar suas fábricas de pasta de atum e de lingüiça,
submetendo a mulher, os filhos e os empregados a um
trabalho rigoroso e ingrato, mal remunerado, sem hora
extra nem qualquer gratificação pessoal (antítese radical
em relação ao empreendedor romântico do sonho americano,
invalidando as falsas semelhanças que o filme pode levantar
na primeira metade), Kim se torna um subconjunto do
imperialismo, o tirano dentro da comunidade já tiranizada.
Os coreanos, se já assombrados pelos japoneses, têm
em Kim uma instransponível muralha de músculos e hormônios.
O que faz dele um ser temível e intimidador? A força
física, nada mais. Trazer a amante para dentro de casa
e impô-la silenciosamente à família: a lei do forte
é assim, e quem contestar – como o filho yakuza
que chega com sua mulher para não durar mais que dez
minutos na tela – tem sua cabeça afundada num tonel
de restos de atum, para depois ser expulso do vilarejo.
O filme de Yoichi Sai não estaria confrontando aquele
vilarejo de coreanos ao próprio recalcamento de sua
impotência diante de toda prática imperialista (japonesa
ou mesmo interna à comunidade)?
O grande personagem é evidentemente Kim, mas a narração
em off que conduz o filme é de seu filho. Vemos
Kim bater em todo mundo, marcar com carvão em brasa
o rosto de um empregado que se volta contra o regime
de trabalho dobrado, violentar a esposa, comer uma carne
achada no lixo e cheia de larvas: Blood and Bones
se estrutura sob o ponto de vista do oprimido e
enojado. Sem exagerar nos predicativos, a mise en
scène de Sai consegue se colocar sempre um passo
atrás, tanto do épico quanto do comedido. As brigas,
como a seqüência extraordinária em que Kim e o filho
revoltado quebram a casa inteira antes de se embolarem
no meio da rua, correspondem a um registro seco, de
planos lacônicos em que a montagem só intervém quando
decididamente: o corte preciso que potencializa a violência
de um corpo sendo jogado porta afora, o raccord de
movimento que opera agressões na estrutura de ligação
entre os planos. O grafismo não é a meta principal de
Sai: sua violência é prioritariamente física e moral,
para ser sentida na crueza da ação. Relato justo, em
se tratando de um corpo-fábrica agindo mecanicamente
sobre as peças que lhe dizem respeito. Ao erguer um
império distante de toda forma de inteligência, Kim
obriga Sai a – diante das cenas de maior furor – enfraquecer
a função significante (a linguagem) para sublinhar o
instinto, que não pede escritura, mas simplesmente captação
de intensidade. O corolário é tremendamente simples:
o corpo social é mantido em tensão permanente com o
elemento não domesticável, não apaziguado. Apenas dois
estados de espírito para Kim, dois pontos distintos
da escala Richter – repouso ou luta. Mas se ele pára
de lutar, logo percebe que é o equivalente a estar morto,
e volta ao ringue.
De maneira um tanto idiossincrática, Kim se opõe ao
cotidiano taciturno daquela população coreana. Ele cresce
na ausência de outra força para se equilibrar com a
sua, e definha porque sua energia vai sendo abalada
pela idade – um enfraquecimento interno, de motor que
enferruja, e não uma avaria por combate. O funcionamento
da narrativa fica dependente da animalidade de Kim,
repelido na mesma proporção da centralidade de seu papel
social no universo do filme. Toda submissão se torna
natural, incontestável à exceção de uns raros momentos
de explosão revoltosa. O percurso acavalado de Blood
and Bones é tão-somente acompanhar – e muitas vezes
se perder no caminho – o efeito do tempo a incidir sobre
uma rocha robusta. O estertor final de Kim, afundado
em uma cama fria do inverno norte-coreano (morte ou
hibernação?), é um golpe de ar de quem tenta resistir
à natureza frágil do corpo moribundo. Perecer, inevitavelmente,
mas sem aquiescer à fraqueza. Kim se despede como um
trator que dá um último tranco quando seu motor “morre”.
A diáspora coreana recebe de Kim seu voto instintivo
de desaprovação: ele volta com todo o dinheiro acumulado
e morre ao lado da indiferença do filho mais novo, que
foi carregado à força quando era pequeno.
Adaptação do romance Chi no Hone, de Yang Sogiru,
Blood and Bones não traz perfumarias comuns em
filmes histórico-biográficos. O sexo aqui é um encontro
– não raro violento – de carnes, filmado com ar documental.
O protagonista é um homem cujo gesto de maior generosidade
no filme é matar sufocada a ex-amante, para acabar com
a vida semivegetativa por conta das seqüelas após um
tumor no cérebro. Antes havia sido mostrado seu único
momento de carinho, dando banho nela: a ambigüidade
que acompanha Kim jamais permite uma redução psicológica
– porque estamos no primado do instinto e do território,
do sangue que move o homem. Até as artérias se congelarem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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