BLOOD AND BONES
Yaichi Sai, Blood and bones, Japão, 2004

Kim Shun-pei, personagem de Beat Takeshi (Kitano) em Blood and Bones, é um imigrante coreano que aporta à paisagem industrial de Osaka nos anos 20. O início mostra um rosto deslumbrado diante da “terra à vista”, e quando ao final do filme é revelado o contracampo dessa expressão, voltando à cena do navio e mostrando o conglomerado de chaminés sob o céu cinzento a que os imigrantes se dirigem, toda a trajetória de Kim, que havíamos acabado de acompanhar, parece condensada nessa montagem intelectual (na qual Kitano, quando diretor, coincidentemente é um mestre): Kim construiria seu patrimônio a golpes de marreta sob uma redoma de chumbo, um céu que asfixia a comunidade dentro da comunidade (o micro-cosmo coreano enclausurado em Osaka). Um corpo que desconhece outra forma de reagir ao entorno que não a violência, um tubo reator que distribui sua energia através de socos, pauladas e pontapés. No sexo, no trabalho ou na briga, suas atividades físicas são alimentadas pela mesma agressividade. A violência como forma de vida, como processo de trabalho, impulso anti-estratégico de sobrevivência e isolamento social. O mundo se volta contra Kim (ou o oposto), à medida que o corpo envelhece e a energia se esvai.

Ao montar suas fábricas de pasta de atum e de lingüiça, submetendo a mulher, os filhos e os empregados a um trabalho rigoroso e ingrato, mal remunerado, sem hora extra nem qualquer gratificação pessoal (antítese radical em relação ao empreendedor romântico do sonho americano, invalidando as falsas semelhanças que o filme pode levantar na primeira metade), Kim se torna um subconjunto do imperialismo, o tirano dentro da comunidade já tiranizada. Os coreanos, se já assombrados pelos japoneses, têm em Kim uma instransponível muralha de músculos e hormônios. O que faz dele um ser temível e intimidador? A força física, nada mais. Trazer a amante para dentro de casa e impô-la silenciosamente à família: a lei do forte é assim, e quem contestar – como o filho yakuza que chega com sua mulher para não durar mais que dez minutos na tela – tem sua cabeça afundada num tonel de restos de atum, para depois ser expulso do vilarejo. O filme de Yoichi Sai não estaria confrontando aquele vilarejo de coreanos ao próprio recalcamento de sua impotência diante de toda prática imperialista (japonesa ou mesmo interna à comunidade)?

O grande personagem é evidentemente Kim, mas a narração em off que conduz o filme é de seu filho. Vemos Kim bater em todo mundo, marcar com carvão em brasa o rosto de um empregado que se volta contra o regime de trabalho dobrado, violentar a esposa, comer uma carne achada no lixo e cheia de larvas: Blood and Bones se estrutura sob o ponto de vista do oprimido e enojado. Sem exagerar nos predicativos, a mise en scène de Sai consegue se colocar sempre um passo atrás, tanto do épico quanto do comedido. As brigas, como a seqüência extraordinária em que Kim e o filho revoltado quebram a casa inteira antes de se embolarem no meio da rua, correspondem a um registro seco, de planos lacônicos em que a montagem só intervém quando decididamente: o corte preciso que potencializa a violência de um corpo sendo jogado porta afora, o raccord de movimento que opera agressões na estrutura de ligação entre os planos. O grafismo não é a meta principal de Sai: sua violência é prioritariamente física e moral, para ser sentida na crueza da ação. Relato justo, em se tratando de um corpo-fábrica agindo mecanicamente sobre as peças que lhe dizem respeito. Ao erguer um império distante de toda forma de inteligência, Kim obriga Sai a – diante das cenas de maior furor – enfraquecer a função significante (a linguagem) para sublinhar o instinto, que não pede escritura, mas simplesmente captação de intensidade. O corolário é tremendamente simples: o corpo social é mantido em tensão permanente com o elemento não domesticável, não apaziguado. Apenas dois estados de espírito para Kim, dois pontos distintos da escala Richter – repouso ou luta. Mas se ele pára de lutar, logo percebe que é o equivalente a estar morto, e volta ao ringue.      

De maneira um tanto idiossincrática, Kim se opõe ao cotidiano taciturno daquela população coreana. Ele cresce na ausência de outra força para se equilibrar com a sua, e definha porque sua energia vai sendo abalada pela idade – um enfraquecimento interno, de motor que enferruja, e não uma avaria por combate. O funcionamento da narrativa fica dependente da animalidade de Kim, repelido na mesma proporção da centralidade de seu papel social no universo do filme. Toda submissão se torna natural, incontestável à exceção de uns raros momentos de explosão revoltosa. O percurso acavalado de Blood and Bones é tão-somente acompanhar – e muitas vezes se perder no caminho – o efeito do tempo a incidir sobre uma rocha robusta. O estertor final de Kim, afundado em uma cama fria do inverno norte-coreano (morte ou hibernação?), é um golpe de ar de quem tenta resistir à natureza frágil do corpo moribundo. Perecer, inevitavelmente, mas sem aquiescer à fraqueza. Kim se despede como um trator que dá um último tranco quando seu motor “morre”. A diáspora coreana recebe de Kim seu voto instintivo de desaprovação: ele volta com todo o dinheiro acumulado e morre ao lado da indiferença do filho mais novo, que foi carregado à força quando era pequeno.

Adaptação do romance Chi no Hone, de Yang Sogiru, Blood and Bones não traz perfumarias comuns em filmes histórico-biográficos. O sexo aqui é um encontro – não raro violento – de carnes, filmado com ar documental. O protagonista é um homem cujo gesto de maior generosidade no filme é matar sufocada a ex-amante, para acabar com a vida semivegetativa por conta das seqüelas após um tumor no cérebro. Antes havia sido mostrado seu único momento de carinho, dando banho nela: a ambigüidade que acompanha Kim jamais permite uma redução psicológica – porque estamos no primado do instinto e do território, do sangue que move o homem. Até as artérias se congelarem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.