Marcos é uma figura rechonchuda,
dono de poucas expressões faciais e olhar amortecido.
A cidade grande a seu redor passa por ele como quem
o atropela. Marcos é o personagem-corpo deste segundo
longa-metragem de Carlos Reygadas, diretor do aplaudido
Japón. Durante duas horas de projeção, seguimos
Marcos e sua peregrinação movida pela culpa e na busca
de uma redenção, em uma Cidade do México caótica.
Pinceladas de alegorias e metáforas do mal-estar social
mexicano são amarradas a um novelo de planos-sequência
e câmeras na mão divagantes que nunca se definem entre
o olhar para a parte sensível e os sintomas de um todo
dormente. Batalha no Céu aparece como mais um
representante do fetiche do plano e da dor latente –
levadas com mãos pesadas por um diretor que antes de
cultivar personagens, cultiva reféns. Em um horizonte
de generalidades estéticas, surtos de radicalismo e
vigor podem aparecer como bananas aos olhos mais esfomeados.
Reygadas sabe disso. Leu as cartilhas – todas. E se
lançou a um cinema onde os virtuosismos intraplanos
podem até mesmo saber emular maravilhas, mas não vão
além de carregar seu filme até a falência trêmula dos
verborrágicos.
Em momento algum, Batalha no Céu sabe se definir
entre um desenho dramatúrgico de uma tragédia clássica
ou a imagem sintoma das alegorias existenciais. Tomar
o drama pessoal de Marcos como porta de entrada para
elucubrações sócio-paisagísticas é de uma crueldade
ímpar, e Reygadas leva isso adiante às últimas consequências.
As relações das personagens, assim, não conseguem ganhar
nem a verdade parcial de seus afetos nem a verdade possível
de um discurso macroscópico. Reygadas planta seus personagens
como quem desenha muletas psicológicas para um desfile
de planos em uma semana de moda, se apoiando sobre a
figura pouca expressiva do não-ator Marcos como forma
de dar sustentabilidade a um discurso unilateral do
desespero. A câmera de Reygadas discorre e explora –
não sente. Não se abisma nem suspende. Quer poder ter
discurso antes de ter afeto. Antes de se afetar. Submete
seus personagens, mas não os encontra. Os atropela mais.
E mais cruelmente do que todo o universo de dores contidas
que ele parece querer descobrir, desvelar, tocar.
Ser um maestro de climas macroscópicos e encontrar os
gestos de seus personagens a um só tempo não é tarefa
das mais fáceis – Reygadas foi só mais um a se perder
no labirinto que de alguma forma se gerou dentro de
um certo cinema “de arte” contemporâneo e seu ideal
da desdramatização da vida como fórmula de resistência
ao melodrama mais banal.
Com essa vontade culpada de narrar e o maneirismo da
apatia nas mãos, Reygadas não faz mais do que um filme
genérico, ecoado de influências nobres, mas sem a delicadeza
indispensável de carregar consigo uma intuição verdadeira
mais do que uma certeza. Seu Marcos imóvel mijando nas
calças não é mais que um truque do choque-fácil, pontuado
no momento certo de uma narrativa sem rumo, mas que
sonhava ter um (e porque querer ter um?). A moleca de
classe média trepando com o motorista é da natureza
das metáforas-abrigo mofadas das fissuras sociais e
dos dias sem idéias de um cineasta tentando significar
mais do que consegue sentir.
Cinema de tabuada. Cinema de arte para o circo, Batalha
no Céu é uma coleção de possibilidades de beleza
minadas por sua acumulação de efeitos especiais. Fogos
de artifício e piruetas que se tornam monótonas, ainda
que filmadas com senso de ritmo e uma calorosa tensão
nas imagens. Pois se existem no filme momentos de algum
brilho, de vontade de cinema e de invenção ácida, não
sobrevivem os mesmos a seus próprios excessos de articulação.
A seu fluxo pomposo. Uma pompa que esfria a imagem e
a transforma em trampolim para o exercício de discurso
de um filme afogado em querer ser grande. E não há nada
mais monótono do que um filme sustentado por propósitos.
Um cinema proposital que tenta chocar a cada plano,
que tenta dominar cada fotograma como uma medalha de
honra ao mérito no peito. Reygadas aparece aqui esgotado
já em seu segundo longa, afirmando os tiques de arte-de-decalque
que Japón já trazia, mas bem diluídos.
Porque o olhar não se doma por rédeas programadas, mas
sim se impregna por distração, por brechas, por faíscas.
E Reygadas não nos deixa distrair, divagar. Nem a nós,
nem a seus corpos-personagens. Sonha o diretor em controlar
a “sua” imagem como a um dedo em riste. E perde a batalha
por olhar demais as próprias mãos.
Felipe Bragança
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