Acolá
é aqui
1970, acolá. Jean-Luc Godard e Jean-Pierra Gorin,
cineastas militantes do Grupo Dziga Vertov, vão
à Palestina filmar os feddayin (literalmente,
"aqueles que se sacrificam"), membros
da guerrilha palestina, a pedido dos próprios
guerrilheiros. No mesmo ano, eles são dizimados
por Hussein, e o filme, que se chamaria Até
a Vitória (Jusqu'à la victoire),
ficou incompleto. 1974, aqui. Jean-Luc Godard e Anne-Marie
Miéville pegam as imagens do filme incompleto
e tratam de retrabalhá-las. Mas o objetivo não
é reconstituir aquilo que o filme seria, mas,
através dos documentos que restam/resistem, problematizar
o fracasso do projeto. Não o projeto do filme,
especificamente, mas outro tipo de questionamento. O
escopo é maior: observar o que deu errado em
todo o projeto de montar um grupo de cinema revolucionário,
o que se escondia no inconsciente desses realizadores
que iam à Tchecoslováquia, à Inglaterra,
aos Estados Unidos, à Itália (embora Lutas
na Itália tenha sido filmado todo na França)
e também à Palestina, para tentar entender
o que era o processo revolucionário, embora a
revolução tanto buscada dizia respeito
somente à França e ao panorama instalado
pelos acontecimentos de Maio de 68.
Aqui e Acolá é um filme inteiramente
assombrado pela morte. Como se todos os desejos de revolução,
como se toda a dramatização do processo
revolucionário, diante da fria evidência
da morte dos feddayin filmados ("quase todos os
atores estão mortos", diz uma das legendas
do filme), transformasse automaticamente em gesto obsceno
a ânsia desses realizadores militantes em criar
imagens de revolução, em construir e articular
imagens para falar de revolução quando
na verdade sua posição de fazedores de
imagens era distinta, como foi distinto também
o percurso de cada um: uns viveram, outros morreram.
Não é tanto uma questão do direito
de filmar certas coisas, mas sobretudo a de questionar-se
sobre o desejo de filmar algo que não se entende
completamente (e não conseguir montar depois,
quando se volta ao país natal). O filme, então,
depois das imagens filmadas na Jordânia, o acolá,
desloca-se para o aqui, na pele de uma família
francesa. "Pobre idiota revolucionário",
enuncia o off de Godard quando aparece a figura do pai.
Mas esse pauvre idiot não é ninguém
além dele mesmo, jovem cineasta revolucionário
buscando imagens da revolução e crendo
que basta colocar certos lemas na tela acolá
que eles se concretizarão aqui: "a vontade
do povo", "a luta armada", "o trabalho
político", "a luta prolongada",
"até a vitória".
Entre o aqui e o acolá, há uma distância.
E como fazer, segundo as palavras tantas vezes repetidas
em outros filmes a partir de A Chinesa, "a
análise concreta de uma situação
concreta", se tudo que nós temos do acolá
são imagens mediatizadas? É então
que, pela primeira vez no cinema de Godard, começa-se
a proceder uma observação sobre a distância
entre as imagens (de jornais, de televisão, de
fotografias, do cinema) e a situação concreta.
É um filme de crise, e o próprio andamento
do filme se constrói sobre o fim de um projeto
e a impossibilidade de sobrepor um outro projeto ao
anterior. O que fazer, então? Mostrar o que se
tem, reduzir a tese à estatura de esboço,
fazer do filme uma espécie de agenda, de quadro
de anotações. Submeter a voz off aos
balbucios da indefinição, repetir indefinidamente
"o povo", prolongar a expressão "a
luta prolooooongada", fazer da narração
a voz da dúvida lá onde geralmente está
a voz da certeza.
É a partir desse momento que o cinema de Godard
passa, mais do que tudo, a ser um cinema sobre a recepção
das imagens, na base de um "re": retomar as
imagens, ou "repensar nisso: aqui e acolá",
conforme nos diz uma cartela que aparece repetidas vezes.
É como se, ironicamente, por um momento, a análise
concreta de uma situação concreta tenha
sido apenas um pretexto para justificar um afã
revolucionário ali onde ele não poderia
acontecer, e o próprio cineasta tivesse feito
a mesma confusão que Ulisses e Miquelângelo,
personagens de Tempo de Guerra, fizeram quando
acharam que tinham comprado as maravilhas do mundo quando
na verdade só tinham as suas fotografias. Uma
vez que não se tem as maravilhas da compreensão,
o jeito é partir das imagens: elencar os personagens
(Golda Meir, Kissinger, o povo palestino), associar
atrocidades (o massacre palestino por Israel com o massacre
judeu pelos nazistas), analisar as imagens próprias
para tentar ver nela o que deu errado (a distância
entre o líder e seus liderados, a pose da menina
que lê o poema), e principalmente reanalisar o
fato de ter ido acolá filmado aquelas imagens.
As falas finais do filme, enquanto na imagem vemos os
palestinos reunidos discutindo sobre a missão
que eles sabem que é suicida: "Nós
quisemos gritar 'vitória' rápido demais,
e além do mais, no lugar deles", diz Godard;
ao que Anne-Marie Miéville responde: "Se
vocês queriam fazer a revolução
no lugar deles, é talvez porque naquela época
não tínhamos verdadeiramente a vontade
de de fazer a revolução ali onde estávamos,
mas onde não estávamos". Ao final,
uma retomada do começo: "Em 1970, esse filme
se chamava Vitória; em 1975, esse filme
se chama Aqui e Acolá. Os outros, é
o acolá de nosso aqui". O que reter disso
tudo? Menos a confissão sincera do fracasso de
um projeto do que uma recolocação da pergunta,
menos a constatação de uma crise do que
a exposição das tripas e a tentativa de
aproveitá-las com suas características
próprias. "Un film en train de se faire",
um filme em vias de se fazer, era uma das cartelas de
A Chinesa, mas a expressão cabe muito
mais a Aqui e Acolá. O que fazer depois
do fim de nossos sonhos revolucionários? Aprender
a olhar, aprender a ouvir, obervar o que faz esse objeto
novo, o vídeo, apreender como funciona a experiência
da televisão, ver como se constitui a família
francesa, o trabalho, a relação entre
os sexos, etc. Mas, acima de tudo, prestar atenção
redobrada no que querem dizer as imagens.
Ruy Gardnier
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