A MÁQUINA
João Falcão, Brasil, 2005

A Máquina tem sido saudado por alguns como um positivo passo do produtor Diler Trindade em direção a um entretenimento popular de qualidade (posicionando o filme em oposição aos trabalhos do produtor com Xuxa, Angélica ou o padre Marcelo). No entanto, me parece bem mais perto da verdade olhar para A Máquina como um sinal de uma “dilertrindadização” do cinema popular brasileiro. Os motivos para esta afirmativa sobram no filme, marcado por uma impressionante falta de ritmo: em momentos, corre-se muito com a história, em outros ela se arrasta sem motivo aparente. De fato, a sua realização claudicante faz com que várias opções narrativas nunca funcionem. Por exemplo, é impossível sua estrutura multi-temporal funcionar se todas as cenas passadas no futuro são encenadas de maneira tão francamente mal resolvida (basta que se faça um exercício simples: repare-se nos planos todos de reação dos personagens que ouvem a história contada por Paulo Autran – incrivelmente desconectados do que se conta). Ou ainda que sua antecipação de um determinado clímax simplesmente não cause efeito nenhum pela filmagem confusa, feia, truncada, do referido desfecho.

Chama a atenção ainda, e desde bem cedo no filme, um preocupante desleixo visual. Preocupante, entre outras coisas, porque o filme tem a grife fotográfica de Walter Carvalho por trás de si, e o que constatamos é que no conflito de grifes (Waltinho versus Diler) parece que a renomada filmagem-relâmpago do produtor levou a melhor sobre os cuidados (algumas vezes excessivos) do fotógrafo-marco do cinema brasileiro atual. Tanto nas suas opções conceituais maiores (como a filmagem inteira em estúdios da cidade de Nordestina, o que, nem pelos efeitos de luz conseguidos, se justifica na estrutura narrativa do filme – e o resultado é pálido perto da ousadia que vimos, por exemplo, na série de TV Hoje é dia de Maria), como na realização pequena mesmo (as imagens em vídeo do começo e do clímax do filme, as cenas no Rio de Janeiro), o filme parece muito, muito desleixado.

Já havíamos detectado no último filme de Jorge Furtado (cineasta que sempre disse, para quem quisesse ouvir, que não gosta tanto de filmar quanto de escrever) muitos dos mesmos defeitos notados em A Máquina, ainda que aquele não fosse um filme de Diler Trindade. Percebemos agora que, claramente no que se refere a um dito cinema popular de qualidade, temos um cineasta de fato (Guel Arraes), e de resto alguns talentos sem muita paciência com a elaboração da sua linguagem no cinema. No filme de João Falcão a comparação com Arraes fica muito mais desigual (e impossível de evitar) ainda, porque de fato há vários possíveis pontos de contato do filme com Lisbela e o Prisioneiro – e em todos eles, o filme de Arraes leva vantagem, desde a estrutura narrativa, o ritmo, as soluções visuais, até chegar mesmo no que ainda é o forte de Falcão (ou Furtado), a escritura do roteiro. Neste há incongruências fortes demais que passam menos pela questão da verossimilhança do que da simples falta de coerência interna.

De fato, todos os pontos positivos que restam em A Máquina (e há alguns, seria mentiroso dizer o contrário – geralmente nas cenas “pequenas”, íntimas) vêm das áreas onde o primado da linguagem não é a cinematográfica: seja o trabalho de atores (com destaque para Paulo Autran, a pequena participação de Wagner Moura, e alguns papéis menores, como a mãe do protagonista), que é em essência a alma do teatro; seja o texto escrito, com suas peculiaridades linguísticas e a eventual poesia do prosaico, que já poderiam vir do livro que deu origem à peça, que deu origem ao filme. Difícil é defender qualquer ponto onde esta multi-obra tenha sido acrescida de sentido ou de permanência nesta sua mais recente passagem de meios, pois o fato é que, no cinema, A Máquina não engrena. Pode até fazer sucesso, porque sabemos que cuidado e talento cinematográfico não obrigatoriamente estão relacionados com as bilheterias (e Diler sabe bem disso). Mas não representa passo nenhum adiante na linguagem popular do cinema brasileiro atual.

Eduardo Valente