O Âncora 2
Quando, em uma instalação do departamento de áudio e
vídeo de uma loja californiana, o diretor Judd Apatow,
em seu filme O Virgem de 40 Anos, cita explicitamente
Madrugada
dos Mortos, de Zach Snyder, talvez não nos demos
conta da real substância dessa imagem na narrativa que
estamos acompanhando. Nas TVs de última geração, em
bloco e enfileiradas para a venda, dentro do filme de
Apatow, as imagens do filme de Snyder desfilam. Reprocessamento
atualizado em alta voltagem da obra de George Romero,
o filme de Snyder, respeitando as coordenadas desse
imaginário matricial, costura um estudo sobre civilização.
Dentro de um shopping, o que se desenrola é um estudo
anatômico, das formas e da sociologia daquele ambiente,
o shopping, em que a perplexidade dos personagens diante
da hecatombe que submeteu à danação selvagem a população
da Terra evolui para a normalização do cotidiano após
a repetição dos dias, mesmo que o ar seja hostil, o
forro seja gelado: os pactos institucionais, já que
ninguém mais será nem pai nem filho de mais ninguém
(com a morte de tantos os elos de sangue acabaram),
sofrem uma reengenharia (uma reengenharia possível),
por assim dizer. Estamos diante de uma nova forma de
viver. Pois é exatamente esse o panorama do filme O
Virgem de 40 Anos: falamos sobre civilização, pactos
institucionais, seus ambientes e sua reengenharia. Sobre
formas de viver. Conviver.
Não é mesmo de se estranhar que Madrugada dos Mortos
apareça tão explicitamente aqui: remetendo a uma tradição
da mais fina (ou grossa, talvez) comédia americana,
o que a informal turma do Frat Pack (Owen e Luke Wilson,
Ben Stiller, Vince Vaughn, Will Ferrell e até diretores
como Wes Anderson e Todd Phillips) vem fazendo é, por
meio de seu reiterativo tema (a amizade organizada e
o próprio ato de se conceber filmes e "planos"
em uma turma de amigos), pavimentar, primeiro, um inventário
de signos e mitos da imagem no audiovisual americano,
fazendo caber nesse inventário caráter retrospectivo
e reciclagem problematizada; depois, uma observação
sobre comportamento e convivência na sociedade que abriga
esses mitos. São filmes, pelo menos alguns dos mais
importantes deles, que fluem dentro de ambientes de
trabalho, investigam comportamentos que se completam,
que se alimentam, dentro de um universo demarcado e
caracterizado pelos pactos institucionais.
O Virgem de 40 Anos não é contabilizado como
obra do Frat Pack, mas se já é possível falar em ramificações
dentro do grupo, é possível dizer que a turma desse
filme está enredada na parte Will Ferrell da "árvore":
o ator principal do filme de Apatow, Steve Carell, e
mais um monte de coadjuvantes estiveram, no ano passado,
em O
Âncora (Carell, então Brick Tamland, era o inacreditável
homem do tempo), brilhante mixagem de tons retrô,
um paródico e outro estruturante, por muitas vezes plausível
como registro. Uma comédia que tinha sua sonda nas entranhas
do mundo televisivo americano nos anos 70 e que alinhava,
aliás, os mesmos temas e sentidos de O Virgem de
40 Anos. Situava-se, com mais destreza até do que
um Rede
de Intrigas, de Sidney Lumet, nos escritórios
e nos estúdios de um canal. Seu raio perpassava o organismo
macho formado pelos camaradas da empresa de comunicação,
que, entre um programa e outro, saiam "no recreio"
para passear, brigar com outras "gangues"
de apresentadores e tomar sorvete. Dividiam suas frustrações
e compartilhavam suas idiossincrasias de forma sincera.
Outro filme sobre construção de uma convivência, ou
antes sobre compartilhar o plano de construção. Sem
grandes objetivos. Aliás, com grandes objetivos sim
(no caso, o fim da virgindade aqui, que os amigos do
tal celibatário consideram uma anomalia), mas não são
bem objetivos que importam. Importa é a companhia. Podemos
falar numa subgalera de Steve Carell também, que o tem
como satélite, portanto.
Aqui, no filme de 2005, temos a história desse rapaz,
Andy (Carell, que também escreveu o roteiro), segundo
flashbacks traumatizado desde a adolescência
e, assim, bloqueado no sexo. É esse personagem a estrutura
na qual se baseia a dramaturgia e a tessitura cômica.
As melhores piadas e o clima do filme nascem de uma
leitura apurada, não exatamente sarcástica, antes de
tudo cúmplice, da câmera para a vida desse personagem.
De seu quarto, um museu de cera do entretenimento americano,
decorado pelo plástico conservado de brinquedos antigos
das séries de TV - artigos ainda não tirados das caixas
-, ao seu timbre de voz, em seu rosto e em seus costumes,
o personagem não parece ser tutelado pela câmera, mas
antes orientá-la. Todas as melhores gags e textos
contemplam esse círculo de elementos, contemplam uma
vida enfim, um universo de pele, pêlos peitorais, imagens
congeladas e materializadas nos brinquedos vintage
- que dão forma a seu quarto - e seus hábitos caseiros
e diários. Um deles é o de andar de bicicleta, com todos
os trajes higienistas e atléticos protocolares.
O sexo é um mistério, ou uma negação, então todos os
traços de uma maturidade oficial, convencional (tirar
carteira), parecem ter sido sufocados, retardados, pelo
menos os que pontuam sua vida íntima. Nesse sentido,
a imagem suga e se beneficia agudamente da presença
de Carell em quadro, ele que numa química de doçura
e patetismo, exagerando às vezes na performance, sem
parecer exagerar, torna, com maestria, meio hipnoticamente,
todos os gestos, todas as palavras, catalisadoras da
encenação. O talento de Carell é exuberante. Mostrou
isso em O Âncora, ratificou em 2005 em O Virgem
de 40 Anos e em A Feiticeira, todos filmes
que vêm guindando-no à condição de um dos dínamos da
comédia americana de sua geração. Se o filme resvala
numa infantilização do humor dentro dos domínios da
escatologia e da sensualidade, é porque parece reproduzir
uma visão infantilista, particular do universo de Andy.
O que poderia se revelar uma comédia em que os elementos
de cena todos convergem para o sexo, revela-se mais
ou menos como o contrário: todas as questões do sexo
convergem para o restante dos elementos. A arquitetura
envidraçada, eletro-eletrônica e seccionada em que o
virgem atua como supervisor lembra de fato o exílio
no templo mercantil dos personagens encastelados de
Madrugada dos Mortos, mas o espectro do filme
não se manifesta em apenas uma frente, a profissional.
Quer dizer, nessa principalmente. Nos deslocamentos
cotidianos do personagem de Carell, caberá à câmera
se interar em uma cadeia de relacionamentos, tanto profissionais
quanto familiares. No trabalho, a relação com os colegas
é, embora amistosa acima de tudo, fria e barrada em
uma certa couraça social.
Situação modificada desde a descoberta da virgindade:
instaurada, coletivamente, estará a caça do evento perfeito
para que o rapaz de inicie. Será travada a partir daí
uma relação de progressivo intercâmbio e convivência,
conjugando bares, programas de índio e tardes ociosas
de videogame caseiro. A área profissional - sempre flagrada
via olhares que extraem do banal e da repetição o hilariante
-, terreno em que uniformes, jargões de recursos humanos
e linguagem de vendas se multiplicam em meio aos silêncios
e até aos leros camaradas sobre a vida pessoal de cada
um, sofre uma extensão. É dilatada para todo lugar,
se transforma em um circuito, não menos lúdico, de brodagem
e visita a estabelecimentos urbanos; ao prédio de Andy
nos horários de intervalo, mais ou menos como no regime
escolar de todos nós, na recepção de colegas,
ainda uniformizados, nas horas livres.
Esse universo, o da loja, de pessoas pitorescas e "normais",
DVDs dos Doobie Brothers tocando ininterruptamente,
salas autorizadas, crachás e gravatas ganha vida pela
ronda diarista da câmera, mas os territórios estrangeiros
de convívio social para além dele ganham também. Pois
é nesse trânsito, dos mais nítidos visualmente (Apatow
se encarrega disso), entre a formalidade e o lazer,
atividade e descanso, que um elo, uma comunidade de
hábitos e buscas comuns, ordinárias, se cria. Entre
os colegas. Na esfera das relações sentimentais familiares,
a outra além da das relações profissionais, o mesmo:
Andy engrena um namoro, casto, uma vez que sua dificuldade
perdurará, mas que proporcionará uma relação domiciliar
complexa e enriquecedora. Nela, descobrirá uma namorada
que se revelará companheira e afetuosa e uma enteada
com a qual terá de recorrer a estratégias da lógica
que conhece. Uma lógica representada nas artimanhas
e particularidades de uma certa mitologia da dinâmica
de grupo, uma certa pedagogia de treinamento social
e do trabalho moderno, utilitária no normatismo meio
frio, meio selvagem, de uma loja. Com truques aparentemente
decorrentes desse aprendizado praticista na loja, consegue
contornar habilmente o embate delicado que se prefigura
com a menina aborrecente.
Assim, o filme consegue criar humor na rotina íntima
repleta de totens da durabilidade da infância de Andy,
mas consegue estabelecer um olhar multifacetado, que
torna nosso caminho aqui mais gratificante, menos simples.
O filme não estigmatiza o personagem: ele teve de se
tornar adulto, se adaptar e experimentar. E o fez, em
não poucas instâncias da vida, embora em outras tantas
tenha mantido os laços com uma infância remota. A verdade
é que esse ator não deixa de ser ou se expressar como
adulto producente, mas seu acervo infantil, santuário
lúdico, este entre outros exemplos sorvidos pela imagem
com grande clareza, cria um antagonismo ressonante.
A capacitação que o filme mostra é a de, mesmo com tanta
clareza na abordagem da vida de Andy, não dar conta
por inteiro, não fechar esse personagem.
Nessa onda de flutuação entre atmosferas familiares
e profissionais, o filme não faz menos do que desenhar,
simetricamente, a evolução, a reengenharia e a firmação
de pactos de convivência. Ele acaba se caracterizando
como esse próprio desenho. Sendo aguçado o olhar para
uma paisagem de figuras e contatos humanos de uma cidade
como L.A em 2005, Apatow (outro participante do crew
de O Âncora, como produtor) também consegue preciso
exame de uma dinâmica comportamental e de uma manada
de gente estranha e em branda vertigem emocional que
povoa os bunkers coloridos da noite da cidade.
O filme coloca em foco uma linha de rostos e crises
de agora: a patricinha solitária que, bêbada, desmancha-se
para Andy, antes de, em um carro desgovernado dirigido
por ela, vomitar pedaços de comida e toda sua mágoa
com o ex-namorado que, talvez não tendo outra coisa
a fazer, a fez de idiota; ou os encontros em rodízio,
nas tardes em salões plurais nos quais cada participante
porta um crachá registrando seu nome. De mesa em mesa,
as pessoas vão se conhecendo, e realmente essa seqüência
em particular irriga várias piadas. Tal mundo com suas
criaturas é percorrido com destreza e senso de atualidade,
num passo em que o filme, seu registro, parece se misturar
com essa geografia. Um senso de atualidade, bom dizer,
diferente de um certo atualismo. Algo mais típico da
publicidade ou de projetos cinematográficos que freqüentam
a mesa de um Michael Winterbottom ou de uma produtora
com esse tipo de vocação, como a brasileira O2.
O final de O Virgem de 40 Anos, previsível, em
que se configura a primeira transa do shyboy
com a namorada, agora esposa, que o compreendeu e o
abraçou, será geralmente associado a um esquema disciplinado
de retidão institucional e moral de revestimento religioso.
Casaram-se e, ela, mais experiente, foi a tutora na
lua-de-mel. Leitura talvez um pouco acelerada demais
em relação ao que o filme apresenta, de fato uma cama
em lua de mel e um papai-e-mamãe cortado e ameno graficamente.
O que fica claro nesse enlace é a idéia que se instala
durante as duas horas e torna essa narrativa não uma
peça sobre o desabrochar de um homem primitivo sexualmente,
nem sobre o apaziguamento da união estatutária do casamento,
mas sobre como a vida se altera e se transfigura, como
se ordena, se forma e reforma no cotidiano por meio
de um conjunto de atitudes e de uma modelagem do bem-estar,
de acordo com a capacidade das pessoas para isso.
É, mais do que tudo, uma obra realizada em torno da
idéia de que os pactos institucionais, os de trabalho
e principalmente os domésticos, servem de modo diferente
para cada um ser feliz. Cada qual molda e administra,
valida ou invalida esses pactos à sua moda. O sentido
da pasmaceira e permanência matrimonial conforta o personagem,
e está sim associado ao sexo. Também proporciona desvencilhamento
do retardamento juvenil, para daí Andy desfrutar de
outro tipo de pacto de trabalho e por ele transitar
de modo tão cotidiano e medíocre - na acepção mais fiel
ao significado real dessa palavra - quanto antes. Movimento,
porém, que acaba por gerar um outro tipo de reengenharia,
um passo à frente dentro dos claros limites do personagem:
o personagem de Carell vende os brinquedos em exposição
particular para inaugurar um negócio próprio de equipamentos
audiovisuais. Sua freqüencia com as instituições é essa,
direta, não mais do que plana. Delas, ele depende, e
a conscientização desse arranjo que torna o filme sempre
honesto em sua caligrafia.
Ou seja, cada pessoa sintoniza-se e exige coisas diferentes
das instituições e de seu espectro para se sentir em
paz, para acobertar para si seus monstros se assim for
preciso. Cada um leva a sua vida, a vida que pode, é
mais ou menos esse o recado e o objetivo, conquistado,
de toda a encenação. O enredo, não por ingenuidade,
jamais debaterá a provável homossexualidade reprimida
por trás ou através do subdesenvolvimento afetivo e
libidinoso de Andy, pois o que está em jogo é, acima
de tudo, o ajuste desse personagem diante do mundo externo
e de seus núcleos de convivência; o que Andy fará, entre
sua equipe de colegas, junto com sua namorada (aliás,
interpretada com categoria por Catherine Keener), diante
daquilo que ele vê, diante daquilo que consegue enxergar
e pode domar. Uma existência simples, afinal, de barreiras
internas (dissolvidas as possíveis, apenas) de alguém
com suas dificuldades de avaliação sobre si mesmo e
sem nenhuma pretensão de transcendência maior do que
a mais pragmática. O que vale é, de novo, as companhias
e as prosaicas descobertas, que patrocinarão uma existência
prosaica, sem abalos. Se o filme arma não um julgamento,
mas um consórcio com esse personagem, olhando até onde
ele pode olhar, mede-se aí sua grandeza. É o que ocorre,
sem dúvidas. No sistema de cotações desta revista, aqui
teríamos um caso, feliz, de "vá ver assim que puder".
São aquelas duas estrelas mais de dignidade e interesse
do que de frustração.
Cláudio Szynkier
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