O VIRGEM DE 40 ANOS
Judd Apatow, 40 year-old virgin, EUA, 2005

O Âncora 2

Quando, em uma instalação do departamento de áudio e vídeo de uma loja californiana, o diretor Judd Apatow, em seu filme O Virgem de 40 Anos, cita explicitamente Madrugada dos Mortos, de Zach Snyder, talvez não nos demos conta da real substância dessa imagem na narrativa que estamos acompanhando. Nas TVs de última geração, em bloco e enfileiradas para a venda, dentro do filme de Apatow, as imagens do filme de Snyder desfilam. Reprocessamento atualizado em alta voltagem da obra de George Romero, o filme de Snyder, respeitando as coordenadas desse imaginário matricial, costura um estudo sobre civilização. Dentro de um shopping, o que se desenrola é um estudo anatômico, das formas e da sociologia daquele ambiente, o shopping, em que a perplexidade dos personagens diante da hecatombe que submeteu à danação selvagem a população da Terra evolui para a normalização do cotidiano após a repetição dos dias, mesmo que o ar seja hostil, o forro seja gelado: os pactos institucionais, já que ninguém mais será nem pai nem filho de mais ninguém (com a morte de tantos os elos de sangue acabaram), sofrem uma reengenharia (uma reengenharia possível), por assim dizer. Estamos diante de uma nova forma de viver. Pois é exatamente esse o panorama do filme O Virgem de 40 Anos: falamos sobre civilização, pactos institucionais, seus ambientes e sua reengenharia. Sobre formas de viver. Conviver.

Não é mesmo de se estranhar que Madrugada dos Mortos apareça tão explicitamente aqui: remetendo a uma tradição da mais fina (ou grossa, talvez) comédia americana, o que a informal turma do Frat Pack (Owen e Luke Wilson, Ben Stiller, Vince Vaughn, Will Ferrell e até diretores como Wes Anderson e Todd Phillips) vem fazendo é, por meio de seu reiterativo tema (a amizade organizada e o próprio ato de se conceber filmes e "planos" em uma turma de amigos), pavimentar, primeiro, um inventário de signos e mitos da imagem no audiovisual americano, fazendo caber nesse inventário caráter retrospectivo e reciclagem problematizada; depois, uma observação sobre comportamento e convivência na sociedade que abriga esses mitos. São filmes, pelo menos alguns dos mais importantes deles, que fluem dentro de ambientes de trabalho, investigam comportamentos que se completam, que se alimentam, dentro de um universo demarcado e caracterizado pelos pactos institucionais.

O Virgem de 40 Anos não é contabilizado como obra do Frat Pack, mas se já é possível falar em ramificações dentro do grupo, é possível dizer que a turma desse filme está enredada na parte Will Ferrell da "árvore": o ator principal do filme de Apatow, Steve Carell, e mais um monte de coadjuvantes estiveram, no ano passado, em O Âncora (Carell, então Brick Tamland, era o inacreditável homem do tempo), brilhante mixagem de tons retrô, um paródico e outro estruturante, por muitas vezes plausível como registro. Uma comédia que tinha sua sonda nas entranhas do mundo televisivo americano nos anos 70 e que alinhava, aliás, os mesmos temas e sentidos de O Virgem de 40 Anos. Situava-se, com mais destreza até do que um Rede de Intrigas, de Sidney Lumet, nos escritórios e nos estúdios de um canal. Seu raio perpassava o organismo macho formado pelos camaradas da empresa de comunicação, que, entre um programa e outro, saiam "no recreio" para passear, brigar com outras "gangues" de apresentadores e tomar sorvete. Dividiam suas frustrações e compartilhavam suas idiossincrasias de forma sincera. Outro filme sobre construção de uma convivência, ou antes sobre compartilhar o plano de construção. Sem grandes objetivos. Aliás, com grandes objetivos sim (no caso, o fim da virgindade aqui, que os amigos do tal celibatário consideram uma anomalia), mas não são bem objetivos que importam. Importa é a companhia. Podemos falar numa subgalera de Steve Carell também, que o tem como satélite, portanto.

Aqui, no filme de 2005, temos a história desse rapaz, Andy (Carell, que também escreveu o roteiro), segundo flashbacks traumatizado desde a adolescência e, assim, bloqueado no sexo. É esse personagem a estrutura na qual se baseia a dramaturgia e a tessitura cômica. As melhores piadas e o clima do filme nascem de uma leitura apurada, não exatamente sarcástica, antes de tudo cúmplice, da câmera para a vida desse personagem. De seu quarto, um museu de cera do entretenimento americano, decorado pelo plástico conservado de brinquedos antigos das séries de TV - artigos ainda não tirados das caixas -, ao seu timbre de voz, em seu rosto e em seus costumes, o personagem não parece ser tutelado pela câmera, mas antes orientá-la. Todas as melhores gags e textos contemplam esse círculo de elementos, contemplam uma vida enfim, um universo de pele, pêlos peitorais, imagens congeladas e materializadas nos brinquedos vintage - que dão forma a seu quarto - e seus hábitos caseiros e diários. Um deles é o de andar de bicicleta, com todos os trajes higienistas e atléticos protocolares.

O sexo é um mistério, ou uma negação, então todos os traços de uma maturidade oficial, convencional (tirar carteira), parecem ter sido sufocados, retardados, pelo menos os que pontuam sua vida íntima. Nesse sentido, a imagem suga e se beneficia agudamente da presença de Carell em quadro, ele que numa química de doçura e patetismo, exagerando às vezes na performance, sem parecer exagerar, torna, com maestria, meio hipnoticamente, todos os gestos, todas as palavras, catalisadoras da encenação. O talento de Carell é exuberante. Mostrou isso em O Âncora, ratificou em 2005 em O Virgem de 40 Anos e em A Feiticeira, todos filmes que vêm guindando-no à condição de um dos dínamos da comédia americana de sua geração. Se o filme resvala numa infantilização do humor dentro dos domínios da escatologia e da sensualidade, é porque parece reproduzir uma visão infantilista, particular do universo de Andy.

O que poderia se revelar uma comédia em que os elementos de cena todos convergem para o sexo, revela-se mais ou menos como o contrário: todas as questões do sexo convergem para o restante dos elementos. A arquitetura envidraçada, eletro-eletrônica e seccionada em que o virgem atua como supervisor lembra de fato o exílio no templo mercantil dos personagens encastelados de Madrugada dos Mortos, mas o espectro do filme não se manifesta em apenas uma frente, a profissional. Quer dizer, nessa principalmente. Nos deslocamentos cotidianos do personagem de Carell, caberá à câmera se interar em uma cadeia de relacionamentos, tanto profissionais quanto familiares. No trabalho, a relação com os colegas é, embora amistosa acima de tudo, fria e barrada em uma certa couraça social.

Situação modificada desde a descoberta da virgindade: instaurada, coletivamente, estará a caça do evento perfeito para que o rapaz de inicie. Será travada a partir daí uma relação de progressivo intercâmbio e convivência, conjugando bares, programas de índio e tardes ociosas de videogame caseiro. A área profissional - sempre flagrada via olhares que extraem do banal e da repetição o hilariante -, terreno em que uniformes, jargões de recursos humanos e linguagem de vendas se multiplicam em meio aos silêncios e até aos leros camaradas sobre a vida pessoal de cada um, sofre uma extensão. É dilatada para todo lugar, se transforma em um circuito, não menos lúdico, de brodagem e visita a estabelecimentos urbanos; ao prédio de Andy nos horários de intervalo, mais ou menos como no regime escolar de todos nós, na recepção de colegas, ainda uniformizados, nas horas livres.

Esse universo, o da loja, de pessoas pitorescas e "normais", DVDs dos Doobie Brothers tocando ininterruptamente, salas autorizadas, crachás e gravatas ganha vida pela ronda diarista da câmera, mas os territórios estrangeiros de convívio social para além dele ganham também. Pois é nesse trânsito, dos mais nítidos visualmente (Apatow se encarrega disso), entre a formalidade e o lazer, atividade e descanso, que um elo, uma comunidade de hábitos e buscas comuns, ordinárias, se cria. Entre os colegas. Na esfera das relações sentimentais familiares, a outra além da das relações profissionais, o mesmo: Andy engrena um namoro, casto, uma vez que sua dificuldade perdurará, mas que proporcionará uma relação domiciliar complexa e enriquecedora. Nela, descobrirá uma namorada que se revelará companheira e afetuosa e uma enteada com a qual terá de recorrer a estratégias da lógica que conhece. Uma lógica representada nas artimanhas e particularidades de uma certa mitologia da dinâmica de grupo, uma certa pedagogia de treinamento social e do trabalho moderno, utilitária no normatismo meio frio, meio selvagem, de uma loja. Com truques aparentemente decorrentes desse aprendizado praticista na loja, consegue contornar habilmente o embate delicado que se prefigura com a menina aborrecente.

Assim, o filme consegue criar humor na rotina íntima repleta de totens da durabilidade da infância de Andy, mas consegue estabelecer um olhar multifacetado, que torna nosso caminho aqui mais gratificante, menos simples. O filme não estigmatiza o personagem: ele teve de se tornar adulto, se adaptar e experimentar. E o fez, em não poucas instâncias da vida, embora em outras tantas tenha mantido os laços com uma infância remota. A verdade é que esse ator não deixa de ser ou se expressar como adulto producente, mas seu acervo infantil, santuário lúdico, este entre outros exemplos sorvidos pela imagem com grande clareza, cria um antagonismo ressonante. A capacitação que o filme mostra é a de, mesmo com tanta clareza na abordagem da vida de Andy, não dar conta por inteiro, não fechar esse personagem.

Nessa onda de flutuação entre atmosferas familiares e profissionais, o filme não faz menos do que desenhar, simetricamente, a evolução, a reengenharia e a firmação de pactos de convivência. Ele acaba se caracterizando como esse próprio desenho. Sendo aguçado o olhar para uma paisagem de figuras e contatos humanos de uma cidade como L.A em 2005, Apatow (outro participante do crew de O Âncora, como produtor) também consegue preciso exame de uma dinâmica comportamental e de uma manada de gente estranha e em branda vertigem emocional que povoa os bunkers coloridos da noite da cidade. O filme coloca em foco uma linha de rostos e crises de agora: a patricinha solitária que, bêbada, desmancha-se para Andy, antes de, em um carro desgovernado dirigido por ela, vomitar pedaços de comida e toda sua mágoa com o ex-namorado que, talvez não tendo outra coisa a fazer, a fez de idiota; ou os encontros em rodízio, nas tardes em salões plurais nos quais cada participante porta um crachá registrando seu nome. De mesa em mesa, as pessoas vão se conhecendo, e realmente essa seqüência em particular irriga várias piadas. Tal mundo com suas criaturas é percorrido com destreza e senso de atualidade, num passo em que o filme, seu registro, parece se misturar com essa geografia. Um senso de atualidade, bom dizer, diferente de um certo atualismo. Algo mais típico da publicidade ou de projetos cinematográficos que freqüentam a mesa de um Michael Winterbottom ou de uma produtora com esse tipo de vocação, como a brasileira O2.

O final de O Virgem de 40 Anos, previsível, em que se configura a primeira transa do shyboy com a namorada, agora esposa, que o compreendeu e o abraçou, será geralmente associado a um esquema disciplinado de retidão institucional e moral de revestimento religioso. Casaram-se e, ela, mais experiente, foi a tutora na lua-de-mel. Leitura talvez um pouco acelerada demais em relação ao que o filme apresenta, de fato uma cama em lua de mel e um papai-e-mamãe cortado e ameno graficamente. O que fica claro nesse enlace é a idéia que se instala durante as duas horas e torna essa narrativa não uma peça sobre o desabrochar de um homem primitivo sexualmente, nem sobre o apaziguamento da união estatutária do casamento, mas sobre como a vida se altera e se transfigura, como se ordena, se forma e reforma no cotidiano por meio de um conjunto de atitudes e de uma modelagem do bem-estar, de acordo com a capacidade das pessoas para isso.

É, mais do que tudo, uma obra realizada em torno da idéia de que os pactos institucionais, os de trabalho e principalmente os domésticos, servem de modo diferente para cada um ser feliz. Cada qual molda e administra, valida ou invalida esses pactos à sua moda. O sentido da pasmaceira e permanência matrimonial conforta o personagem, e está sim associado ao sexo. Também proporciona desvencilhamento do retardamento juvenil, para daí Andy desfrutar de outro tipo de pacto de trabalho e por ele transitar de modo tão cotidiano e medíocre - na acepção mais fiel ao significado real dessa palavra - quanto antes. Movimento, porém, que acaba por gerar um outro tipo de reengenharia, um passo à frente dentro dos claros limites do personagem: o personagem de Carell vende os brinquedos em exposição particular para inaugurar um negócio próprio de equipamentos audiovisuais. Sua freqüencia com as instituições é essa, direta, não mais do que plana. Delas, ele depende, e a conscientização desse arranjo que torna o filme sempre honesto em sua caligrafia.

Ou seja, cada pessoa sintoniza-se e exige coisas diferentes das instituições e de seu espectro para se sentir em paz, para acobertar para si seus monstros se assim for preciso. Cada um leva a sua vida, a vida que pode, é mais ou menos esse o recado e o objetivo, conquistado, de toda a encenação. O enredo, não por ingenuidade, jamais debaterá a provável homossexualidade reprimida por trás ou através do subdesenvolvimento afetivo e libidinoso de Andy, pois o que está em jogo é, acima de tudo, o ajuste desse personagem diante do mundo externo e de seus núcleos de convivência; o que Andy fará, entre sua equipe de colegas, junto com sua namorada (aliás, interpretada com categoria por Catherine Keener), diante daquilo que ele vê, diante daquilo que consegue enxergar e pode domar. Uma existência simples, afinal, de barreiras internas (dissolvidas as possíveis, apenas) de alguém com suas dificuldades de avaliação sobre si mesmo e sem nenhuma pretensão de transcendência maior do que a mais pragmática. O que vale é, de novo, as companhias e as prosaicas descobertas, que patrocinarão uma existência prosaica, sem abalos. Se o filme arma não um julgamento, mas um consórcio com esse personagem, olhando até onde ele pode olhar, mede-se aí sua grandeza. É o que ocorre, sem dúvidas. No sistema de cotações desta revista, aqui teríamos um caso, feliz, de "vá ver assim que puder". São aquelas duas estrelas mais de dignidade e interesse do que de frustração.

Cláudio Szynkier