2046
Wong Kar-wai, 2046, Hong Kong, 2004

Canção de amor da era espacial

Su Li-zhen (Maggie Cheung) não mora mais aqui. Mas Chow Mo-wan (Tony Leung) pensa nela todos os dias. Ao final de Days of Being Wild, de 1991, filme que abriu a trilogia concluída por 2046, havia a promessa de um encontro entre eles dois, uma promessa que se manifestava somente num estrato imaginário que cabia ao espectador desejar a partir dos últimos planos (Maggie Cheung sozinha, Tony Leung se arrumando para sair). Na dinâmica de destinos que se entrecruzam ao longo do filme, aquilo só poderia significar mais uma relação (fugidia, complexa) a caminho, relação que ficava para a ordem abstrata da montagem e da vontade do espectador de cinema (eles se encontrão, portanto se apaixonarão). Amor à Flor da Pele, retomando o fio da meada somente dez anos depois (o insucesso comercial de Days of Being Wild não permitiu que a continuação viesse logo a seguir), de fato mostra como eles se encontram, mas o filme é a distensão melancólica e inebriante de uma paixão represada. Segredo confiado às ruínas de Angkor. Agora, em 2046, Chow nos confessa: “Por um momento eu a tive, mas a deixei escapar”.

O filme que Wong Kar-wai levou séculos para terminar, remexendo no produto final mesmo após sua première em Cannes e suscitando a piada fácil de que só ficaria pronto em 2046, parte da mesma relação de nostalgia e incerteza que já lhe rendera uma reinvenção bastante pessoal dos anos 60. O número do título é o ano que marca o fim do prazo concedido para que Hong Kong, até pouco tempo colônia britânica, se adapte ao regime político da China continental. “Hong Kong não se pertence”, já disse Serge Daney quando esteve lá em 1980. Mas 2046 é também um quarto de hotel, ou ainda um lugar aonde as pessoas vão para recuperar memórias perdidas – ao menos é como consta no melodrama sci-fi que Chow escreve e Wong encena, sobre um personagem japonês que se apaixona por uma andróide que, acometida por sentimentos humanos, manifesta reações de efeito retardado (se ela sentir vontade de chorar, por exemplo, só no dia seguinte as lágrimas correrão). Esse retardamento de reação é igualmente de Chow, que não encontra o ajuste de tempo dos seus sentimentos – a exemplo do envolvimento dele com a filha do proprietário do hotel em que mora, interpretada por Faye Wong (que faz também a andróide da fábula lovesick). Assim como as histórias que Chow inventa se confundem com suas experiências, o filme mistura seus registros e referências e faz uma mise en âbyme da própria obra de Wong. O clima futurista que perpassa a estética de néon das cenas no trem, mas que está também presente no hotel, tem sua raiz em Days of Being Wild. Ao primeiro contato, o filme que abriu a trilogia está longe de ser uma ficção científica, mas o que ele possui, de fato, é um céu de ficção científica, a década de 60 parecendo recriada por uma inteligência artificial que a observa de longe, de 1991 ou de 2046 mesmo; uma máquina do tempo passional.

O quarto de Chow, em 2046, é a concretização perfeita de um lugar em que a intimidade é experimentada no seu extremo, mas sofre sempre de uma exaustão precoce. A relação de Chow com Bai Ling (Zhang Ziyi, mais linda e desejável do que nunca) é surpreendente, pois mostra um pouco mais de um estágio da relação íntima geralmente pulado por Wong. Acostumado a ir da fase de amadurecimento e de ápice do desejo direto para um momento em que a proximidade dos corpos é diretamente proporcional à vontade de se repelirem – corpos exauridos pelo próprio prazer que se proporcionavam, e pela convivência que extrapola o ato sexual –, o resto ficando condenado às elipses, aqui ele dá a chance de Chow e Bai compartilharem momentos a sós ainda sem o sentimento de que o desejo está se esvaindo (o que depois acaba acontecendo). Esse espaço fechado, onde se manifesta a intimidade e o afeto provisório, é expandido em sua própria exigüidade pelas camadas cenográficas e pelo cinemascope: espelhos, janelas, divisórias, luzes e cortinas abrem a visibilidade do espaço para além de seus limites sensíveis.

2046 leva ainda mais longe o sensualismo, as imbricações narrativas e o pregueamento temporal dos outros dois filmes: a partir de um certo momento, tudo pode ser intercambiável – personagens, situações, épocas. Alcançando uma sintonia fina entre a disjunção de Days of Being Wild e a estabilidade elegante de Amor à Flor da Pele, o filme não transmite a mesma iminência de ruptura (impressão de que tudo vai desmoronar a qualquer momento que, cada vez mais, se mostra essencial à obra de Wong) ou a sensação de vertigem de um Felizes Juntos. É antes uma experiência que nos reconforta na sua aparente ausência de rumo: o livre escoamento de imagens (carregadas que estejam de amores perdidos, nostalgia, precipícios) se converte em porto seguro, garantia de existência através da imaginação e da memória. 2046 nutre uma fascinação primitiva que diz respeito a simplesmente estar diante de imagens.

E onde estão as imagens do filme? Em 2046, em 2004, na década de 60, em qualquer época. Essas imagens ocupam o espaço atemporal da publicidade e dos painéis eletrônicos – aquele espaço lúdico em que toda memória individual ao mesmo tempo se enxerga e se dilui. Wong é possivelmente o cineasta que melhor aglutina esse imaginário: seu cinema é uma poética de fugas e retornos que se dão sobre o paisagismo abstrato criado pela vastidão da cultura visual contemporânea. Em 2046, aprofundando uma tendência de filmes como Felizes Juntos e Anjos Caídos, o que a memória privilegiada do nitrato de prata retém dos personagens é tão-somente o modo particular de fumar um cigarro ou fazer uma refeição – as câmeras lentas têm o impulso de libertar os personagens da narrativa e entregá-los à pura iconicidade. 2046 coloca Wong diante do grande contraponto dos estetas do fluxo: reter uma imagem, viabilizar um retorno, amortecer a queda. A promessa da memória recuperada é o oposto do vinho do esquecimento de Ashes of Time (um vinho que apagava todas as lembranças e permitia um recomeço do zero absoluto). O pássaro que voa a vida inteira e só pára quando morre, a que Leslie Cheung se comparava em Days of Being Wild, agora se entristece com a ausência de um pouso. Mas restam as imagens captadas durante o vôo. Happy end?

Luiz Carlos Oliveira Jr.