Canção de amor da era espacial
Su Li-zhen (Maggie Cheung) não mora mais aqui. Mas Chow
Mo-wan (Tony Leung) pensa nela todos os dias. Ao final
de Days of Being Wild, de 1991, filme que abriu
a trilogia concluída por 2046, havia a promessa
de um encontro entre eles dois, uma promessa que se
manifestava somente num estrato imaginário que cabia
ao espectador desejar a partir dos últimos planos (Maggie
Cheung sozinha, Tony Leung se arrumando para sair).
Na dinâmica de destinos que se entrecruzam ao longo
do filme, aquilo só poderia significar mais uma relação
(fugidia, complexa) a caminho, relação que ficava para
a ordem abstrata da montagem e da vontade do espectador
de cinema (eles se encontrão, portanto se apaixonarão).
Amor à Flor da Pele, retomando o fio da meada
somente dez anos depois (o insucesso comercial de Days
of Being Wild não permitiu que a continuação viesse
logo a seguir), de fato mostra como eles se encontram,
mas o filme é a distensão melancólica e inebriante de
uma paixão represada. Segredo confiado às ruínas de
Angkor. Agora, em 2046, Chow nos confessa: “Por
um momento eu a tive, mas a deixei escapar”.
O filme que Wong Kar-wai levou séculos para terminar,
remexendo no produto final mesmo após sua première
em Cannes e suscitando a piada fácil de que só ficaria
pronto em 2046, parte da mesma relação de nostalgia
e incerteza que já lhe rendera uma reinvenção bastante
pessoal dos anos 60. O número do título é o ano que
marca o fim do prazo concedido para que Hong Kong, até
pouco tempo colônia britânica, se adapte ao regime político
da China continental. “Hong Kong não se pertence”, já
disse Serge Daney quando esteve lá em 1980. Mas 2046
é também um quarto de hotel, ou ainda um lugar aonde
as pessoas vão para recuperar memórias perdidas – ao
menos é como consta no melodrama sci-fi que Chow
escreve e Wong encena, sobre um personagem japonês que
se apaixona por uma andróide que, acometida por sentimentos
humanos, manifesta reações de efeito retardado (se ela
sentir vontade de chorar, por exemplo, só no dia seguinte
as lágrimas correrão). Esse retardamento de reação é
igualmente de Chow, que não encontra o ajuste de tempo
dos seus sentimentos – a exemplo do envolvimento dele
com a filha do proprietário do hotel em que mora, interpretada
por Faye Wong (que faz também a andróide da fábula lovesick).
Assim como as histórias que Chow inventa se confundem
com suas experiências, o filme mistura seus registros
e referências e faz uma mise en âbyme da própria
obra de Wong. O clima futurista que perpassa a estética
de néon das cenas no trem, mas que está também presente
no hotel, tem sua raiz em Days of Being Wild.
Ao primeiro contato, o filme que abriu a trilogia está
longe de ser uma ficção científica, mas o que ele possui,
de fato, é um céu de ficção científica, a década de
60 parecendo recriada por uma inteligência artificial
que a observa de longe, de 1991 ou de 2046 mesmo; uma
máquina do tempo passional.
O quarto de Chow, em 2046, é a concretização
perfeita de um lugar em que a intimidade é experimentada
no seu extremo, mas sofre sempre de uma exaustão precoce.
A relação de Chow com Bai Ling (Zhang Ziyi, mais linda
e desejável do que nunca) é surpreendente, pois mostra
um pouco mais de um estágio da relação íntima geralmente
pulado por Wong. Acostumado a ir da fase de amadurecimento
e de ápice do desejo direto para um momento em que a
proximidade dos corpos é diretamente proporcional à
vontade de se repelirem – corpos exauridos pelo próprio
prazer que se proporcionavam, e pela convivência que
extrapola o ato sexual –, o resto ficando condenado
às elipses, aqui ele dá a chance de Chow e Bai compartilharem
momentos a sós ainda sem o sentimento de que o desejo
está se esvaindo (o que depois acaba acontecendo). Esse
espaço fechado, onde se manifesta a intimidade e o afeto
provisório, é expandido em sua própria exigüidade pelas
camadas cenográficas e pelo cinemascope: espelhos, janelas,
divisórias, luzes e cortinas abrem a visibilidade do
espaço para além de seus limites sensíveis.
2046 leva ainda mais longe o sensualismo, as
imbricações narrativas e o pregueamento temporal dos
outros dois filmes: a partir de um certo momento, tudo
pode ser intercambiável – personagens, situações, épocas.
Alcançando uma sintonia fina entre a disjunção de Days
of Being Wild e a estabilidade elegante de Amor
à Flor da Pele, o filme não transmite a mesma iminência
de ruptura (impressão de que tudo vai desmoronar a qualquer
momento que, cada vez mais, se mostra essencial à obra
de Wong) ou a sensação de vertigem de um Felizes
Juntos. É antes uma experiência que nos reconforta
na sua aparente ausência de rumo: o livre escoamento
de imagens (carregadas que estejam de amores perdidos,
nostalgia, precipícios) se converte em porto seguro,
garantia de existência através da imaginação e da memória.
2046 nutre uma fascinação primitiva que diz respeito
a simplesmente estar diante de imagens.
E onde estão as imagens do filme? Em 2046, em 2004,
na década de 60, em qualquer época. Essas imagens ocupam
o espaço atemporal da publicidade e dos painéis eletrônicos
– aquele espaço lúdico em que toda memória individual
ao mesmo tempo se enxerga e se dilui. Wong é possivelmente
o cineasta que melhor aglutina esse imaginário: seu
cinema é uma poética de fugas e retornos que se dão
sobre o paisagismo abstrato criado pela vastidão da
cultura visual contemporânea. Em 2046, aprofundando
uma tendência de filmes como Felizes Juntos e
Anjos Caídos, o que a memória privilegiada do
nitrato de prata retém dos personagens é tão-somente
o modo particular de fumar um cigarro ou fazer uma refeição
– as câmeras lentas têm o impulso de libertar os personagens
da narrativa e entregá-los à pura iconicidade. 2046
coloca Wong diante do grande contraponto dos estetas
do fluxo: reter uma imagem, viabilizar um retorno, amortecer
a queda. A promessa da memória recuperada é o oposto
do vinho do esquecimento de Ashes of Time (um
vinho que apagava todas as lembranças e permitia um
recomeço do zero absoluto). O pássaro que voa a vida
inteira e só pára quando morre, a que Leslie Cheung
se comparava em Days of Being Wild, agora se
entristece com a ausência de um pouso. Mas restam as
imagens captadas durante o vôo. Happy end?
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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