Já
se falava por aqui, em ocasião do dossiê sobre a obra
de John Landis (Contracampo nº 70), que a nata – ou
seria melhor dizer a escória? – da nova turma da comédia
americana correspondia a uma lista de atores, muito
mais do que diretores. Will Ferrell, Vince Vaughn, Ben
Stiller, Luke e Owen Wilson compõem a Frat Pack, a galera
assim batizada após o filme Dias Incríveis, em
que três amigos (interpretados por Will, Vince e Luke)
resolvem resgatar o que havia de melhor na vida de estudantes
universitários e – gesto nostálgico que retoma o espírito
anárquico-hedonista de Clube dos Cafajestes –
montar uma fraternidade dedicada às melhores festas
do campus. Assim se confirmava uma proposta de estupidez
coletiva que transforma a performance do ator em espaço
de exterioridade pura, uma incessante experimentação
sobre as modulações e as capacidades físicas do corpo.
A Frat Pack é como um Actors Studio às avessas: no lugar
da densidade psicológica e da encarnação radical do
personagem, entram atores cuja consistência é feita
só de afetos e músculos. Nada de jogos secretos, atuação
interior ou sutilezas da alma: as vibrações do corpo
são os únicos códigos que lhes interessam. A comédia
que eles têm a oferecer é física, e sua política, portanto,
é do corpo. (Não é verdade que a grande maioria das
experiências de criação coletiva na história do cinema
rendeu alguma forma particular de política?)
E que corpo é esse mesmo? Novamente: os atores-personagens
de Penetras Bons de Bico são estruturas arcaicas,
apenas movimento e afecção. À atração da pele, eles
respondem com a intensidade de um golpe profundo. Trata-se
de um mundo de paixão à primeira vista (Owen e a personagem
de Rachel McAdams, a filha mais velha do político vivido
por Christopher Walken, em vias de se tornar candidato
à presidência da república) ou de paixão que se desenvolve
a partir de uma extraordinária correspondência carnal
(Vince e a ninfeta ruiva, irmã da musa comportada de
Owen). O coração disputa um espaço muito estreito com
o baixo ventre, o que explica em grande medida o aspecto
de filme que muda de pele através da montagem – o iô-iô
narrativo que vai da excentricidade burlesca à comédia
romântica e volta. Seguindo a mesma mistura de tonalidades,
não há hierarquia conjugando a cena de Vince Vaughn
berrando com a boca cheia de bolo abaixo ou acima de
um comentário político à la Meet the Fockers (Entrando
Numa Fria Maior Ainda, o grande filme sobre as últimas
eleições norte-americanas).
Há alguma coisa de culminante em Penetras Bons de
Bico, como se o filme fizesse o relatório dos projetos
anteriores mas já apresentasse também os novos rumos
do grupo. Retornam a esse filme, por exemplo, a adolescência
prolongada (a rotina de invadir casamentos como uma
afirmação, em meio a esse ritual de consolidação da
fase adulta, de imaturidade consciente), a ojeriza à
arrogância de um certo tipo de jovem-adulto “bem sucedido”
(o namorado almofadinha de Rachel, muito parecido com
um dos antagonistas de Dias Incríveis ou mesmo
o personagem de Owen Wilson em Entrando numa Fria),
a crônica circense sobre a competitividade contemporânea
(a cena do futebol americano, uma miniatura otimizada
de Com a Bola Toda), a alopração gestual de Will
Ferrell (mais ainda do que em O Âncora e Dias
Incríveis) e, por fim, o elogio da amizade. Etapa
legítima dentro desse processo, que inclui a despudorada
hibridação de alguns subgêneros de comédia, em Penetras
Bons de Bico se assiste também ao desmembramento
de enredos convencionais – fazia tempo que o moralismo
do date movie tradicional não se via tão problematizado,
sem com isso prejudicar a função romântica do filme.
É admirável a maneira encontrada por Penetras Bons
de Bico para colocar em um traçado nítido toda a
perda de rédeas que tenderia a uma ficção disfuncional.
A mise en scène do filme é um triunfo da limpidez
e da visibilidade da ação – nada mais justo, já que
as grandes assinaturas em jogo são de atores. O enquadramento
se presta a uma representação crítica do espaço (comentários
de câmera que fazem da icônica geografia de Washington
D.C. uma paisagem inédita), mas sua maior tarefa é um
constante estudo comparativo sobre os corpos dos personagens
principais na relação deles entre si, com os outros
e com o espaço. Daí a importância de um plano tão passageiro
como aquele de Owen Wilson dançando ao lado de uma criancinha.
Auxiliado por David Dobkin (que dirigira Owen ao lado
de Jackie Chan em Bater ou Correr em Londres),
o trio Wilson-Vaughn-Ferrell parece ter encontrado aqui
o protótipo de um filme-corpo.
Existe um tronco, ou seja, dois amigos-quase-irmãos
especialistas em penetrar em festas de casamento e roubar
a cena (um saber-fazer tencionado pela provisória ausência
estruturante do mito-guru Chazz), e ao longo do filme
vão se acrescentando as próteses narrativas (e o romance
a sério pode até ser previsível, mas a seqüência do
funeral a que Owen comparece ao lado de Chazz não é
nem de longe), até completar um organismo simples, avantajado
e coeso (as suturas são perfeitas). Como conseqüência,
a reação do espectador não pode se dar senão através
de exteriorizações do corpo: gargalhadas sonoras, socos
no ar, aplausos na primeira aparição de Chazz (Will
Ferrell em contraluz, de roupão, logo após trepar com
mais uma “vítima”: retardado e gênio ao mesmo tempo,
o próprio diabo-santo – uma entrada de ator e uma presença
em cena como há muito não se via). Esse é um filme que
equivale a uma atividade física, pois o prazer e a liberdade
experimentados pelos atores nos contagiam de tal forma
que passamos a maior parte do tempo agitados, vibrantes,
com uma vontade imensa de levantar da cadeira e se movimentar.
E o que mais poderia se achar no meio do filme além
de um conteúdo genuinamente romântico, emotivo, passional?
No meio do corpo, um coração, é claro: todo cafajeste
se apaixona um dia. Para além da genialidade de Will
Ferrell em cena, a importância de seu personagem Chazz
é justamente permitir que o filme demarque a tensão
entre uma ode ao desprendimento e à calhordagem – que
constitui sua primeira parte e depois transita para
a comédia de equívocos do fim-de-semana na casa de Christopher
Walken – e a conclusão sobre a importância de correr
atrás dos “sentimentos verdadeiros”, chegando na reconciliação
final (dos casais, dos melhores amigos e, principalmente,
do filme com seu mote inicial).
Para quem enxerga em Penetras Bons de Bico algo
muito próximo da primeira obra-prima dessa turminha,
o passo seguinte é inevitável: a adesão a este filme
consolida a conivência com uma política da idiotia que
veio na hora certa. Estamos muito distantes aqui da
pseudolibertinagem e da escatologia disfarçada em piada
de salão de American Pie e seus cônjuges, assim
como das referências caricatas que os irmãos Coen observam
do alto de sua torre de marfim: a Frat Pack nos devolve
o prazer de um humor e de um sentimentalismo que proporcionam
tanto o êxtase amoral da comédia louca quanto o vôo
cego dos melhores atos de romantismo. No universo desses
homens vazios de racionalidade e plenos de afetividade,
só há poesia se houver estupidez. Ainda bem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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