PENETRAS BONS DE BICO
David Dobkin, Wedding crashers, EUA, 2005

Já se falava por aqui, em ocasião do dossiê sobre a obra de John Landis (Contracampo nº 70), que a nata – ou seria melhor dizer a escória? – da nova turma da comédia americana correspondia a uma lista de atores, muito mais do que diretores. Will Ferrell, Vince Vaughn, Ben Stiller, Luke e Owen Wilson compõem a Frat Pack, a galera assim batizada após o filme Dias Incríveis, em que três amigos (interpretados por Will, Vince e Luke) resolvem resgatar o que havia de melhor na vida de estudantes universitários e – gesto nostálgico que retoma o espírito anárquico-hedonista de Clube dos Cafajestes – montar uma fraternidade dedicada às melhores festas do campus. Assim se confirmava uma proposta de estupidez coletiva que transforma a performance do ator em espaço de exterioridade pura, uma incessante experimentação sobre as modulações e as capacidades físicas do corpo. A Frat Pack é como um Actors Studio às avessas: no lugar da densidade psicológica e da encarnação radical do personagem, entram atores cuja consistência é feita só de afetos e músculos. Nada de jogos secretos, atuação interior ou sutilezas da alma: as vibrações do corpo são os únicos códigos que lhes interessam. A comédia que eles têm a oferecer é física, e sua política, portanto, é do corpo. (Não é verdade que a grande maioria das experiências de criação coletiva na história do cinema rendeu alguma forma particular de política?)

E que corpo é esse mesmo? Novamente: os atores-personagens de Penetras Bons de Bico são estruturas arcaicas, apenas movimento e afecção. À atração da pele, eles respondem com a intensidade de um golpe profundo. Trata-se de um mundo de paixão à primeira vista (Owen e a personagem de Rachel McAdams, a filha mais velha do político vivido por Christopher Walken, em vias de se tornar candidato à presidência da república) ou de paixão que se desenvolve a partir de uma extraordinária correspondência carnal (Vince e a ninfeta ruiva, irmã da musa comportada de Owen). O coração disputa um espaço muito estreito com o baixo ventre, o que explica em grande medida o aspecto de filme que muda de pele através da montagem – o iô-iô narrativo que vai da excentricidade burlesca à comédia romântica e volta. Seguindo a mesma mistura de tonalidades, não há hierarquia conjugando a cena de Vince Vaughn berrando com a boca cheia de bolo abaixo ou acima de um comentário político à la Meet the Fockers (Entrando Numa Fria Maior Ainda, o grande filme sobre as últimas eleições norte-americanas).

Há alguma coisa de culminante em Penetras Bons de Bico, como se o filme fizesse o relatório dos projetos anteriores mas já apresentasse também os novos rumos do grupo. Retornam a esse filme, por exemplo, a adolescência prolongada (a rotina de invadir casamentos como uma afirmação, em meio a esse ritual de consolidação da fase adulta, de imaturidade consciente), a ojeriza à arrogância de um certo tipo de jovem-adulto “bem sucedido” (o namorado almofadinha de Rachel, muito parecido com um dos antagonistas de Dias Incríveis ou mesmo o personagem de Owen Wilson em Entrando numa Fria), a crônica circense sobre a competitividade contemporânea (a cena do futebol americano, uma miniatura otimizada de Com a Bola Toda), a alopração gestual de Will Ferrell (mais ainda do que em O Âncora e Dias Incríveis) e, por fim, o elogio da amizade. Etapa legítima dentro desse processo, que inclui a despudorada hibridação de alguns subgêneros de comédia, em Penetras Bons de Bico se assiste também ao desmembramento de enredos convencionais – fazia tempo que o moralismo do date movie tradicional não se via tão problematizado, sem com isso prejudicar a função romântica do filme.

É admirável a maneira encontrada por Penetras Bons de Bico para colocar em um traçado nítido toda a perda de rédeas que tenderia a uma ficção disfuncional. A mise en scène do filme é um triunfo da limpidez e da visibilidade da ação – nada mais justo, já que as grandes assinaturas em jogo são de atores. O enquadramento se presta a uma representação crítica do espaço (comentários de câmera que fazem da icônica geografia de Washington D.C. uma paisagem inédita), mas sua maior tarefa é um constante estudo comparativo sobre os corpos dos personagens principais na relação deles entre si, com os outros e com o espaço. Daí a importância de um plano tão passageiro como aquele de Owen Wilson dançando ao lado de uma criancinha. Auxiliado por David Dobkin (que dirigira Owen ao lado de Jackie Chan em Bater ou Correr em Londres), o trio Wilson-Vaughn-Ferrell parece ter encontrado aqui o protótipo de um filme-corpo.

Existe um tronco, ou seja, dois amigos-quase-irmãos especialistas em penetrar em festas de casamento e roubar a cena (um saber-fazer tencionado pela provisória ausência estruturante do mito-guru Chazz), e ao longo do filme vão se acrescentando as próteses narrativas (e o romance a sério pode até ser previsível, mas a seqüência do funeral a que Owen comparece ao lado de Chazz não é nem de longe), até completar um organismo simples, avantajado e coeso (as suturas são perfeitas). Como conseqüência, a reação do espectador não pode se dar senão através de exteriorizações do corpo: gargalhadas sonoras, socos no ar, aplausos na primeira aparição de Chazz (Will Ferrell em contraluz, de roupão, logo após trepar com mais uma “vítima”: retardado e gênio ao mesmo tempo, o próprio diabo-santo – uma entrada de ator e uma presença em cena como há muito não se via). Esse é um filme que equivale a uma atividade física, pois o prazer e a liberdade experimentados pelos atores nos contagiam de tal forma que passamos a maior parte do tempo agitados, vibrantes, com uma vontade imensa de levantar da cadeira e se movimentar.

E o que mais poderia se achar no meio do filme além de um conteúdo genuinamente romântico, emotivo, passional? No meio do corpo, um coração, é claro: todo cafajeste se apaixona um dia. Para além da genialidade de Will Ferrell em cena, a importância de seu personagem Chazz é justamente permitir que o filme demarque a tensão entre uma ode ao desprendimento e à calhordagem – que constitui sua primeira parte e depois transita para a comédia de equívocos do fim-de-semana na casa de Christopher Walken – e a conclusão sobre a importância de correr atrás dos “sentimentos verdadeiros”, chegando na reconciliação final (dos casais, dos melhores amigos e, principalmente, do filme com seu mote inicial).

Para quem enxerga em Penetras Bons de Bico algo muito próximo da primeira obra-prima dessa turminha, o passo seguinte é inevitável: a adesão a este filme consolida a conivência com uma política da idiotia que veio na hora certa. Estamos muito distantes aqui da pseudolibertinagem e da escatologia disfarçada em piada de salão de American Pie e seus cônjuges, assim como das referências caricatas que os irmãos Coen observam do alto de sua torre de marfim: a Frat Pack nos devolve o prazer de um humor e de um sentimentalismo que proporcionam tanto o êxtase amoral da comédia louca quanto o vôo cego dos melhores atos de romantismo. No universo desses homens vazios de racionalidade e plenos de afetividade, só há poesia se houver estupidez. Ainda bem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.