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Um Glauber vivido, revolucionado
no êxtase da ressurreição
Pegaram Glauber Rocha pra Cristo? Em todo caso, é o
que parece: nos últimos anos, tantas e tantas vezes
que sua memória foi mencionada, foi geralmente no sentido
de enterrá-lo novamente, fazer o inventário
dos bens e realizar a partilha da herança, cuidando
sempre para que sua lembrança permanecesse ali onde
fosse conveniente, como um bibelô de militância,
pregado em miniatura na parede em defesa de um ideal. Curioso
jogo de memória, neurótico em dois aspectos:
primeiro pelo convívio problemático com a "morte
do pai", e em seguida pela relativa deturpação
de sua trajetória. Que Glauber reter? Seguidamente,
a resposta era a da história oficial, a do Glauber
autor das duas obras-farol do cinema novo, Deus e o Diabo
na Terra do Sol e Terra em Transe. Um pouco como
foi feito da memória de Nelson Rodrigues nos anos 90,
sua imagem ficou restrita a uma certa tipificação
fácil dos clichês mais evidentes, de uma figura
iconoclasta quando não havia ninguém
mais iconômano (obrigado, Gilberto Vasconcelos) ,
um imaginário pret-à-porter que respaldasse
de forma automática um certo ideário nacional-populista
dos caminhos positivos de uma certa geração
intelectual em sua pesquisa sobre a imagem do país
e a "descoberta" dos pobres como se ele não
fosse o primeiro e mais astuto pensador do país a
colocar tudo isso em crise. Visto assim, fica até
impossível entender sua produção seguinte
a esses filmes: não à toa, tanto na tela quanto
na fala Glauber foi constantemente mal compreendido nos anos
seguintes aos 60. Excetuando os louváveis e poderosos
distúrbios que o utilizavam para fazer pensar
Ismail Xavier, Ivana Bentes com a organização
de Cartas ao Mundo, o já mencionado Vasconcelos
, o uso da memória de Glauber mais parecia uma
espécie de estandarte carnavalesco que se levantava
para falar dos lugares comuns da política, da pobreza
e da conscientização (!) no Brasil sem
inconsciente nacional ou estético, sem purgação,
sem tragédia: ou seja, de forma cristalina.
E nossa experiência era a inversa:
a de que havia em sua obra, flagrante e querendo gritar, um
turbilhão a mais de coisas que ainda permaneciam no
terreno do não-dito, um pensamento complexo que resistia
às interpretações simplistas, em suma
um continente com muita terra ainda a explorar. A começar
por seus filmes menos vistos, os de exílio e os seguintes,
principalmente A Idade da Terra. Inúmeras formulações
nesses filmes que obrigavam a uma retomada mais ampla de sua
carreira filmográfica, ensaística (entrevistas
incluídas) e literária que pudesse compreender
o movimento que gerou a obra e o poder que exprime essa obra
sem paralelo na história do cinema. E, para isso, não
há melhor momento que agora: uma série de eventos,
do relançamento de livros às salas de cinema,
dos dvds aos novos documentários, passando pela exibição
dos filmes mais raros na tv a cabo, nos fornecem dados novos
e nos confirmam a importância e a atualidade da obra
de Glauber Rocha.
Longe do exaustivo, esta edição
de Contracampo pretende investigar com mais cuidado alguns
aspectos menos conhecidos/vistos da obra glauberiana. Com
especial atenção a A Idade da Terra
que aqui recebe um dossiê com documentos inéditos
sobre o projeto desde a sua primeira concepção
até o produto final, além de texto e debate
sobre o filme e aos filmes "estrangeiros"
de Glauber Rocha: necessidade subjetivo-geracional de instalar
a pesquisa fazendo o caminho inverso do que nos é herdado.
Não sendo o objetivo fechar a interpretação
e a compreensão de uma obra de arte que, no
limite, é de uma possibilidade infinita de significados
, mas sim ampliá-la, olhamos para muitos lados
em nossa viagem de desbravamento e aqui tentamos dar atenção
ao máximo deles, da chanchada ao futuro do cinema.
O convite está feito. Boa leitura.
(O Dossiê Idade da Terra
contou com o apoio inestimável do Tempo Glauber; agradecimentos
especiais a Paloma Rocha, Lécio Augusto Ramos, Ricardo
Miranda e Joel Pizzini)
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