Jece Valadão e operários em A Idade da Terra de Glauber Rocha
Os filmes de Blake Edwards (foto), Huckabees – A Vida É uma Comédia, de David O. Russel e os lançamentos do mês em DVD.
leia mais

Clique aqui para receber o informativo mensal com as atualizações de Contracampo.
leia mais

 
 


 
     

Um Glauber vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição

Pegaram Glauber Rocha pra Cristo? Em todo caso, é o que parece: nos últimos anos, tantas e tantas vezes que sua memória foi mencionada, foi geralmente no sentido de enterrá-lo novamente, fazer o inventário dos bens e realizar a partilha da herança, cuidando sempre para que sua lembrança permanecesse ali onde fosse conveniente, como um bibelô de militância, pregado em miniatura na parede em defesa de um ideal. Curioso jogo de memória, neurótico em dois aspectos: primeiro pelo convívio problemático com a "morte do pai", e em seguida pela relativa deturpação de sua trajetória. Que Glauber reter? Seguidamente, a resposta era a da história oficial, a do Glauber autor das duas obras-farol do cinema novo, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe. Um pouco como foi feito da memória de Nelson Rodrigues nos anos 90, sua imagem ficou restrita a uma certa tipificação fácil dos clichês mais evidentes, de uma figura iconoclasta – quando não havia ninguém mais iconômano (obrigado, Gilberto Vasconcelos) –, um imaginário pret-à-porter que respaldasse de forma automática um certo ideário nacional-populista dos caminhos positivos de uma certa geração intelectual em sua pesquisa sobre a imagem do país e a "descoberta" dos pobres – como se ele não fosse o primeiro e mais astuto pensador do país a colocar tudo isso em crise. Visto assim, fica até impossível entender sua produção seguinte a esses filmes: não à toa, tanto na tela quanto na fala Glauber foi constantemente mal compreendido nos anos seguintes aos 60. Excetuando os louváveis e poderosos distúrbios que o utilizavam para fazer pensar – Ismail Xavier, Ivana Bentes com a organização de Cartas ao Mundo, o já mencionado Vasconcelos –, o uso da memória de Glauber mais parecia uma espécie de estandarte carnavalesco que se levantava para falar dos lugares comuns da política, da pobreza e da conscientização (!) no Brasil – sem inconsciente nacional ou estético, sem purgação, sem tragédia: ou seja, de forma cristalina.

E nossa experiência era a inversa: a de que havia em sua obra, flagrante e querendo gritar, um turbilhão a mais de coisas que ainda permaneciam no terreno do não-dito, um pensamento complexo que resistia às interpretações simplistas, em suma um continente com muita terra ainda a explorar. A começar por seus filmes menos vistos, os de exílio e os seguintes, principalmente A Idade da Terra. Inúmeras formulações nesses filmes que obrigavam a uma retomada mais ampla de sua carreira filmográfica, ensaística (entrevistas incluídas) e literária que pudesse compreender o movimento que gerou a obra e o poder que exprime essa obra sem paralelo na história do cinema. E, para isso, não há melhor momento que agora: uma série de eventos, do relançamento de livros às salas de cinema, dos dvds aos novos documentários, passando pela exibição dos filmes mais raros na tv a cabo, nos fornecem dados novos e nos confirmam a importância e a atualidade da obra de Glauber Rocha.

Longe do exaustivo, esta edição de Contracampo pretende investigar com mais cuidado alguns aspectos menos conhecidos/vistos da obra glauberiana. Com especial atenção a A Idade da Terra – que aqui recebe um dossiê com documentos inéditos sobre o projeto desde a sua primeira concepção até o produto final, além de texto e debate sobre o filme – e aos filmes "estrangeiros" de Glauber Rocha: necessidade subjetivo-geracional de instalar a pesquisa fazendo o caminho inverso do que nos é herdado. Não sendo o objetivo fechar a interpretação e a compreensão de uma obra de arte – que, no limite, é de uma possibilidade infinita de significados –, mas sim ampliá-la, olhamos para muitos lados em nossa viagem de desbravamento e aqui tentamos dar atenção ao máximo deles, da chanchada ao futuro do cinema. O convite está feito. Boa leitura.

(O Dossiê Idade da Terra contou com o apoio inestimável do Tempo Glauber; agradecimentos especiais a Paloma Rocha, Lécio Augusto Ramos, Ricardo Miranda e Joel Pizzini)

     
  Ruy Gardnier