Desejo e Obsessão não
é a história de canibais, de estranhos
viciados em carne humana, como vende a publicidade atual
em torno do filme. Como todo outro filme de Claire Denis,
é um filme sobre a carne e seus impulsos mais
irracionais, seja a criminalidade serial (Noites
Sem Dormir), seja o racalcamento homossexual (Bom
Trabalho). É um filme feito com a câmera,
coisa que não se pode dizer da maioria do cinema
feito atualmente. Isso não quer dizer que seja
um filme sem narrativa, mas a narrativa certamente sofre
mudanças que podem incomodar um espectador intransigente
e mais acostumado a filmes de Russell Crowe que eleja
Woody Allen como o limite máximo de experimentação
formal permitida. Só que Claire Denis vai além.
Desejo e Obsessão é um filme à
flor da pele, ao mesmo tempo delicado (como a bela música
dos Tindersticks que abre e fecha o filme) e selvagem,
onde se fala muito pouco, se age muito pouco, mas quando
se fala ou se age, é de uma vez por todas.
Começamos o filme numa estrada. Béatrice
Dalle à beira dela, tentando atrair motoristas
de caminhão. Ato sempre antes da explicação,
alguns momentos depois ela está comendo carne
humana. Um homem vem procurá-la. Somos transportados
para um avião que se dirige a Paris. Vincent
Gallo vai ao banheiro. Ele e sua esposa estão
em caminho da lua-de-mel em Paris, mas há visivelmente
algo errado com ele. O sentimento geral que o filme
traz é de mal-estar. Não o mal-estar deplorável
e supostamente malicioso de um Seven ou Hannibal,
mas a impressão que esse mal-estar nos engloba
e nos observa, que essa possível doença
que permeia o filme não está tão
distante de nós. De fato, ela pode estar ao lado,
ou mesmo em nós.
Desejo e Obsessão é uma ficção
científica. No plano da história, ela
incorpora todas as características do gênero,
mas o tratamento que a narrativa impõe é
outro. Próximo dos relatos de doença de
um William Burroughs com quem Claire Denis partilha
as fixações pelo corpo masculino, pelo
sêmen, pela pele, pela doença mental e
física... , o filme tenta reconstituir
um acontecimento fatídico, um momento no passado
em que os personagens do filme se separaram por motivos
de traição (tanto conjugal quanto científica).
Esse acontecimento rendeu não só o esfacelamento
de uma relação, mas o nascimento de uma
terrível doença cronenberguiana
que garante a seu hospedeiro uma avassaladora
fome sexual e uma decorrente vontade de mastigar
literalmente seu parceiro na relação.
Fragmentário, o roteiro só permite que
o espectador entenda todos os lances aos poucos, e mesmo
assim alguns não completamente. Desejo e Obsessão não é um thriller de suspense,
como poderia fazer crer. Claire Denis conduz o filme
como um drama, como a busca pessoal de um homem, que
ama profundamente sua esposa, para livrar-se de uma
doença que pode colocá-la em risco (logo
no início do filme, uma mordida no braço
dela já revela o perigo).
Claire Denis faz com Desejo e Obsessão
um filme menos abstrato do que Bom Trabalho,
mas ainda assim um atordoante filme sobre os corpos,
seus limites e seus desejos, e tem momentos de plasticidade
incrível. O que torna Desejo e Obsessão
tão complicado para certos espectadores é
que não há refluxo moral: a história
é guiada por Vincent Gallo, um dos canibais.
A identificação deverá ser feita
em cima dele, sem escapatória. O espectador fica
fora de casa, ao abrigo da tempestade por vir. As belas
e inocentes mulheres do filme (Trissia Vessey, Aurore
Clément, duas beldades filmadas generosamente
por Denis) de certa forma aceitarão o jogo dos
desejos: uma sucumbirá ao canibal e pagará
por isso, a outra aceitará o que o futuro lhe
destina... Desejo e Obsessão é
um filme sobre corpos, e dedica a eles alguns dos momentos
mais belos vistos no cinema recente. Seja na cama, sendo
delicada e apaixonadamente tocados, ou ensangüentados
e destruídos, são eles a mola mestra do
filme, o ponto onde tudo começa e acaba. O corpo
é o lugar onde não há limites entre
homem e animal, e é justamente essa faceta
o que é um homem encarado como o animal que é?
que mais interessa ao cinema de Denis. Um filme
perturbador, não pela estranheza dos canibais,
mas pela naturalidade de nós mesmos, animais.
Ruy Gardnier
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