A arte de testemunhar o óbvio
No meio do cinema de horror, George Romero é uma lenda.
Muito mais do que em relação a qualquer outro cineasta
contemporâneo ligado ao gênero, existe um “mito Romero”,
que não apenas embarca todo um sub-gênero, mas um sem
número de homenagens, remakes e/ou paródias. Há uma
imagem do que seria um filme de George Romero, imagem
está que só foi amplificada nos anos em que o cineasta
permaneceu quase inativo.
À primeira vista, Terra dos Mortos parece se
contentar em preencher adequadamente esta imagem, mas
muita coisa mudou desde o Dia dos Mortos e o
jogo aqui é bem mais complicado. Com o sucesso de filmes
como Extermínio, Resident Evil, e Madrugada
dos Mortos, aquilo que o espectador vê como o “filme
de zumbi” mudou, e a reação de Romero a isso é menos
– como alguns de seus fãs querem – ter feito um filme
“à moda antiga” (podemos dizer que, por uma série de
razões, Terra dos Mortos é um filme híbrido),
e sim um filme profundamente auto-consciente. Se nas
duas seqüências anteriores a A Noite dos Mortos Vivos
feitas por Romero já se partia do principio de tentar
refletir sobre o primeiro filme e dar um sentido à praga
dos zumbis que o cineasta, em sua estréia, não procurou
estabelecer, aqui a auto-consciência é ainda mais ampla.
Assim, se A Noite dos Mortos Vivos é geralmente
visto – de forma bastante discutível, vale dizer – como
um filme sobre a família, O Despertar dos Mortos
é um filme sobre consumismo, e Dia dos Mortos
sobre o militarismo, este Terra dos Mortos se
assume como um filme sobre a indústria do entretenimento,
em que ele próprio esta inserido. Se os inúmeros imitadores
de Romero tornaram os zumbis vilões de filmes de ação
algo banais (apesar do inegável talento de Madrugada
dos Mortos), caberá ao cineasta restituir sua força
política.
Terra dos Mortos logo se revela como dois filmes
complementares. Naquele estrelado por Simon Baker, trata-se
apenas marginalmente de um filme com zumbis: neste filme
sobre humanos somos levados a um cenário de guerra,
disputa de poder e desejo de liberdade onde a relação
entre os três personagens centrais é calcada diretamente
de Uma Aventura na Martinica de Hawks (não por
coincidência um filme feito em época de guerra). No
outro, estrelado por Eugene Clark, somos apresentados
à revolta dos zumbis, completando o ciclo que Romero
desde o segundo filme sugeria de forma mais forte: elevando-se
o zumbi a verdadeiro herói positivo (vale apontar aqui
que em todos os filmes anteriores o herói era feito
por um ator negro, como Clark).
Se há algo que liga estes dois filmes é justamente a
indústria de entretenimento de Fiddler’s Green (o misto
de condomínio de luxo/fortaleza que serve de cenário
para os dois Terra dos Mortos). Algumas das melhores
cenas do filme são justamente as que mediam as duas
tramas, em que vemos zumbis sendo usados como fonte
de diversão. Romero as filma com um claro asco. Numa
delas, em que uma prostituta é jogada numa jaula enquanto
uma multidão faz apostas sobre qual dos dois zumbis
lá dentro irá devorá-la, parece fazer referência direta
aos filmes recentes que a obra do cineasta gerou. Zumbis
nunca são brincadeira nos filmes de George Romero.
O cineasta nunca se encaixou bem nos critérios de cinema
de gênero – com exceção de Comando Assassino
ele nunca realizou um filme baseado num crescendo de
sustos, por exemplo. Se há um horror nos filmes de George
Romero, ele é de uma natureza bem mais contemplativa.
A força dos ataques dos zumbis em seus filmes, sempre
vieram muito mais de sua exuberância visual. Logo, não
surpreende o olhar de desgosto sobre a transformação
de zumbis em peças de montanhas-russas-autômatas imposto
aqui. Mas Romero não é nenhum ingênuo, e sabe que tem
uma responsabilidade sobre isso, que seus próprios filmes
de certo são vistos por este prisma por muitos espectadores.
O que diferencia Terra dos Mortos de outros similares
é a facilidade com que Romero se insere nas próprias
mídias que satiriza.
Uma das melhores passagens de Terra dos Mortos
é um comercial de Fiddler’s Green: à primeira vista
uma peça de sátira verhoeveniana, até que a ficha
cai e o espectador se pergunta “porque diabos Fiddler’s
Green precisa fazer um comercial, se ninguém mais vende
o mesmo produto?” Bem, com concorrência ou sem, é preciso
assegurar o consumidor que não há nada melhor que Fiddler’s
Green. Satirizar publicidade é facil, mas poucos cineastas
seriam capazes de expandir esta sátira para este tipo
de sacada. Para isso, é preciso um ponto de vista, que
é exatamente o que diferencia Terra dos Mortos
dos filmes dos imitadores do seu autor. Claro que a
Universal gastou mais com a divulgação de Terra dos
Mortos do que Romero realizando os três filmes anteriores,
o que nos leva a um dos outros elementos que tornam
o filme um objeto novo na filmografia do cineasta: se
tratar do seu primeiro filme para um grande estúdio.
Há um inevitável elemento de compromisso envolvido nessa
operação e diz muito sobre a grandeza de Romero que,
ao invés de escondê-lo, ele o coloque em primeiro plano.
Daí, muitas das escolhas de Romero como a dupla trama,
a ambivalência sobre a indústria cultural, as citações
explicitas aos seus outros filmes (o mito do cineasta
era a principal peça de marketing) e mesmo muitas das
opções formais. Terra dos Mortos é muito mais
um filme de ação com elementos de horror do que os filmes
anteriores, é também mais limpo em sua encenação e convencional
no andamento da trama. De certa forma, portanto, George
Romero está aqui flertando diretamente com o cinema
comercial americano em 2005. Em outros tempos, uma personagem
como a de Dennis Hopper receberia um fim bem mais visceral
do que o que Romero lhe reserva aqui. Em troca, o cineasta
ganha as vantagens de trabalhar com um orçamento mais
folgado: a direção de arte tem uma riqueza maior que
nos filmes anteriores, e desde Cavaleiros de Aço,
ele não contava com atores tão eficazes. A abertura
do filme já é direta sobre o tom do filme: o logo da
Universal dos anos 30 seguido por créditos que documentam
a ascensão dos zumbis. O universo de Romero foi mitificado
e absorvido pelas grandes corporações, mas algo na montagem
já parece indicar que há rupturas onde o cineasta pode
trabalhar.
Se estamos num filme de compromisso, cabe ao cineasta
explorá-lo, e não é a toa que Simon Baker interpreta
um mercenário que tenta equilibrar como pode os interesses
do patrão com aquilo que acredita. É o profissionalismo
bem intencionado dele que impregna a mise-en-scène
de Romero. Terra dos Mortos é o filme mais hawksiano
do cineasta, um filme marcado por um profundo pragmatismo.
Se em Despertar dos Mortos estávamos diante de
uma encenação marcada pelo carnavalesco, e em Dias
dos Mortos, éramos apresentados à caverna ulmeriana,
o tom aqui é, antes de mais nada, profissional. A beleza
de Terra dos Mortos tem muito a ver com a forma
como as imagens de Romero são precisas, como o filme
simplesmente faz o serviço e passa para a sequência
seguinte. Perde-se algo nessa conversão de Romero ao
pragmatismo (conversão essa, que o cineasta claramente
enxerga como única forma de realizar um filme relevante,
que chegue aos espectadores no mundo cão do cinema americano
contemporâneo), mas ganha-se algo também. John Ford
é indiscutivelmente mais poético que Hawks, assim como
Resnais é mais obviamente exuberante que Chabrol, mas
uma cinefilia verdadeiramente plural aprende a abraçar
todos eles, logo é preciso também aceitar Terra dos
Mortos como o grande filme que é. Sua secura é parte
da sua estratégia de ataque contra o próprio aparato
que o sustenta. Seu grande ato de contrabando é justamente
nos lembrar do óbvio que por vezes fica turvo no cinemão
de gênero.
A radicalidade de Romero reside em testemunhar aquilo
que até um zumbi deveria perceber ser inaceitável, mas
que parece nos passar despercebido. O que há de mais
perspicaz e critico na filosofia do cineasta desde meados
dos anos 70 é seu reconhecimento de que o verdadeiro
horror contemporâneo reside na forma como o encaramos
como o estado natural das coisas. Todo o trabalho visual
do cineasta, aqui, existe em função de nos apontar para
além dos seus próprios fogos de artifício. George Romero
é tanto o mercenário que tenta se equilibrar dentro
das regras do jogo da industria, quanto o líder revolucionário
que vem lhe fazer uma visita para pôr fogo em tudo.
E Terra dos Mortos é o grande faroeste crepuscular
pós-apocaliptico que ele nos prometia desde 1968.
Filipe Furtado
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