Rigor e contenção
são talvez as palavras mais adequadas para se caracterizar
São Bernardo, filme dirigido por Leon Hirszman
em 1972. Elas também se aplicam com justeza à obra de
Graciliano Ramos, em especial ao romance homônimo que
deu origem ao filme. Tal identificação estética entre
livro e filme faz de São Bernardo um dos exemplos
mais felizes de uma adaptação literária no cinema brasileiro.
No entanto, não é preciso apoiarmo-nos no texto escrito
para percebermos que o filme de Leon Hirzsman, em seu
rigor e em sua contenção, acrescenta uma nota distoante
ao conjunto dos títulos produzidos na época -
e isto é o que faz de São Bernardo, para além
de uma feliz adaptação, uma verdadeira obra-prima.
Filme de uma unidade estilística
exemplar, São Bernardo estrutura-se como um
drama ao mesmo tempo psicológico e político: não há
fronteiras, mas adensamento de um no outro e de um pelo
outro. O drama de Paulo Honório, que de guia de cego
torna-se latifundiário, criando para si um feudo hostil
a qualquer tipo de transformação da ordem social, não
se constitui como simples resultado mecânico de engrenagens
econômicas, nem como mera ebulição de fantasmas particulares.
O drama de Paulo Honório nasce justamente do imbricamento
de duas perspectivas de análise e de construção dramática,
isto é, da observação de dois processos simultâneos
(formação da riqueza; deformação da personalidade).
Esta operação, presente no romance de Graciliano Ramos,
encontra no cinema - e no rigor formal de um
realizador como Leon Hirszman - um campo privilegiado de
exposição.
Paulo Honório, vivido por Othon
Bastos, está quase sempre em cena. É ele quem domina
e concentra a narrativa, não só com sua presença física
mas também com sua voz over, recurso clássico que remete
à narração em primeira pessoa mas que, em São Bernardo,
reforça um certo distanciamento na relação do filme
com o espectador, servindo ao mesmo tempo como um campo
de proteção à censura ideológica da época, em chave
semelhante à Os Inconfidentes (Joaquim Pedro
de Andrade, 1972), que narra a Inconfidência Mineira
a partir dos Autos da Devassa e dos versos de Cecília
Meirelles. A voz over, em São Bernardo, não
é uma abertura para “conhecermos” intimamente o protagonista;
ao contrário, ela serve para identificarmos a distância
com a qual este protagonista será visto por nós espectadores,
evidenciando, por parte de Leon Hirszman, a disposição
em não ceder a uma comunicação imediata entre o filme
e o público. De qualquer forma, a voz e o corpo de Paulo
Honório ocupam e centralizam a quase totalidade do filme.
A partir da segunda metade de
São Bernardo, surge outra personagem que irá
desestabilizar esta centralidade de Paulo Honório. Trata-se
da professora Madalena (Isabel Ribeiro), com quem o
latifundiário irá se casar. Madalena desperta e aos
poucos vai intensificando o conflito interno de Paulo
Honório, até o ponto em que o conflito se torna dilaceração
interior. A voz over continuará constante, a presença
física de Paulo Honório seguirá sendo dominante. Mas
o sentimento da dor e da perda, deflagrados pela presença
perturbadora de Madalena, alterará por completo a relação
de Paulo Honório com seu meio e consigo mesmo.
No filme, esta profunda transformação
do protagonista surgirá de forma sutil, através de uma
nova relação entre a câmera e a montagem, marcadas pela
re-significação dos espaços dentro e fora do quadro.
Assim, até a chegada de Madalena, São Bernardo
pode ser encarado como um filme “narrado por Paulo Honório”:
a câmera como instância narrativa se faz menos presente,
ainda que todo o filme se construa através do conflito
entre os pontos-de-vista do protagonista e o da câmera.
A partir do momento em que Madalena passa a dominar
o olhar de Paulo Honório (e, ao voltar-se para ela,
ele também volta-se para si), percebemos com mais nitidez
o olhar da própria câmera, isto é, de Leon Hirszman
como narrador.
Na verdade, Madalena não provoca
uma ruptura na constituição do drama. Não há um antes
e um depois do casamento, mas um acirramento do processo
de auto-destruição do personagem. Como afirmei antes,
São Bernardo é um filme de uma unidade espantosa,
e isto fica muito claro na própria decupagem trabalhada
ao longo da narrativa: a utilização de longos planos
estáticos; o uso de planos gerais e de conjunto em cenas
dialogadas ou que fazem a ação progredir; as grandes
elipses; a economia na utilização do plano-contraplano;
todas estas escolhas conferem ao filme de Hirszman uma
organicidade coerente com a opção de retratar o drama
existencial de Paulo Honório.
Ao mesmo tempo, a partir do surgimento
de Madalena, esta organicidade vai dando lugar a uma
variedade maior na escolha dos planos e na direção dos
olhares. Longe de provocar desequilíbrio ou desorientação,
esta mudança na decupagem reforça a transformação do
próprio personagem, atravessado pela experiência desagregadora
do amor que começa a sentir pela esposa. Um amor que
é, antes, sentimento ameaçador de uma possível perda.
A prova maior da coerência desta decupagem é a quase
total ausência de closes em São Bernardo. Há
como que uma cerca de arame farpado entre o mundo interior
de Paulo Honório e nossa curiosidade de espectadores
acostumados aos dramas psicologizantes. Nesse sentido,
o close sobre o perfil de Paulo Honório, que fuma um
cachimbo, pode ser comparado ao plano geral de um campo
em que não se vê ninguém. Após a entrada de Madalena
na narrativa, isto se altera. Embora as ações continuem
a ser trabalhadas em grandes saltos temporais e em planos
distanciados (o primeiro encontro entre Paulo Honório
e Madalena, na estação de trem, se dá sem que tenhamos
dela sequer um plano próximo), há um novo intuito na
utilização dos closes, como na cena em que Paulo Honório
pede Madalena em casamento, ou quando, silencioso, os
olhos vítreos, ele tenta encontrar provas do “comunismo”
de Madalena, durante um jantar para convidados.
Embora São Bernardo seja
de uma quase asfixiante secura, há no filme de Leon
a busca por um tom de esperança, que nasce da própria
percepção dialética do processo social. E Madalena é,
nesse sentido, uma personagem quase simbólica. Não por
acaso, em um dos raros planos suaves de São Bernardo,
vemos Isabel Ribeiro caminhar por um trecho de campo
florido. Esta imagem não deixa de se ligar, metaforicamente,
ao belo plano dos trabalhadores rurais que vêm surgindo,
como se brotassem da terra, entoando os cantos de trabalho,
no momento mesmo em que Paulo Honório, envolto por uma
triste luz amarelada, sucumbe e se apaga em sua própria
derrota.
Luís Alberto Rocha Melo
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