são bernardo
de Leon Hirszman, 1971, Brasil

Rigor e contenção são talvez as palavras mais adequadas para se caracterizar São Bernardo, filme dirigido por Leon Hirszman em 1972. Elas também se aplicam com justeza à obra de Graciliano Ramos, em especial ao romance homônimo que deu origem ao filme. Tal identificação estética entre livro e filme faz de São Bernardo um dos exemplos mais felizes de uma adaptação literária no cinema brasileiro. No entanto, não é preciso apoiarmo-nos no texto escrito para percebermos que o filme de Leon Hirzsman, em seu rigor e em sua contenção, acrescenta uma nota distoante ao conjunto dos títulos produzidos na época - e isto é o que faz de São Bernardo, para além de uma feliz adaptação, uma verdadeira obra-prima.

Filme de uma unidade estilística exemplar, São Bernardo estrutura-se como um drama ao mesmo tempo psicológico e político: não há fronteiras, mas adensamento de um no outro e de um pelo outro. O drama de Paulo Honório, que de guia de cego torna-se latifundiário, criando para si um feudo hostil a qualquer tipo de transformação da ordem social, não se constitui como simples resultado mecânico de engrenagens econômicas, nem como mera ebulição de fantasmas particulares. O drama de Paulo Honório nasce justamente do imbricamento de duas perspectivas de análise e de construção dramática, isto é, da observação de dois processos simultâneos (formação da riqueza; deformação da personalidade). Esta operação, presente no romance de Graciliano Ramos, encontra no cinema - e no rigor formal de um realizador como Leon Hirszman - um campo privilegiado de exposição.

Paulo Honório, vivido por Othon Bastos, está quase sempre em cena. É ele quem domina e concentra a narrativa, não só com sua presença física mas também com sua voz over, recurso clássico que remete à narração em primeira pessoa mas que, em São Bernardo, reforça um certo distanciamento na relação do filme com o espectador, servindo ao mesmo tempo como um campo de proteção à censura ideológica da época, em chave semelhante à Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972), que narra a Inconfidência Mineira a partir dos Autos da Devassa e dos versos de Cecília Meirelles. A voz over, em São Bernardo, não é uma abertura para “conhecermos” intimamente o protagonista; ao contrário, ela serve para identificarmos a distância com a qual este protagonista será visto por nós espectadores, evidenciando, por parte de Leon Hirszman, a disposição em não ceder a uma comunicação imediata entre o filme e o público. De qualquer forma, a voz e o corpo de Paulo Honório ocupam e centralizam a quase totalidade do filme.

A partir da segunda metade de São Bernardo, surge outra personagem que irá desestabilizar esta centralidade de Paulo Honório. Trata-se da professora Madalena (Isabel Ribeiro), com quem o latifundiário irá se casar. Madalena desperta e aos poucos vai intensificando o conflito interno de Paulo Honório, até o ponto em que o conflito se torna dilaceração interior. A voz over continuará constante, a presença física de Paulo Honório seguirá sendo dominante. Mas o sentimento da dor e da perda, deflagrados pela presença perturbadora de Madalena, alterará por completo a relação de Paulo Honório com seu meio e consigo mesmo.

No filme, esta profunda transformação do protagonista surgirá de forma sutil, através de uma nova relação entre a câmera e a montagem, marcadas pela re-significação dos espaços dentro e fora do quadro. Assim, até a chegada de Madalena, São Bernardo pode ser encarado como um filme “narrado por Paulo Honório”: a câmera como instância narrativa se faz menos presente, ainda que todo o filme se construa através do conflito entre os pontos-de-vista do protagonista e o da câmera. A partir do momento em que Madalena passa a dominar o olhar de Paulo Honório (e, ao voltar-se para ela, ele também volta-se para si), percebemos com mais nitidez o olhar da própria câmera, isto é, de Leon Hirszman como narrador.

Na verdade, Madalena não provoca uma ruptura na constituição do drama. Não há um antes e um depois do casamento, mas um acirramento do processo de auto-destruição do personagem. Como afirmei antes, São Bernardo é um filme de uma unidade espantosa, e isto fica muito claro na própria decupagem trabalhada ao longo da narrativa: a utilização de longos planos estáticos; o uso de planos gerais e de conjunto em cenas dialogadas ou que fazem a ação progredir; as grandes elipses; a economia na utilização do plano-contraplano; todas estas escolhas conferem ao filme de Hirszman uma organicidade coerente com a opção de retratar o drama existencial de Paulo Honório.

Ao mesmo tempo, a partir do surgimento de Madalena, esta organicidade vai dando lugar a uma variedade maior na escolha dos planos e na direção dos olhares. Longe de provocar desequilíbrio ou desorientação, esta mudança na decupagem reforça a transformação do próprio personagem, atravessado pela experiência desagregadora do amor que começa a sentir pela esposa. Um amor que é, antes, sentimento ameaçador de uma possível perda. A prova maior da coerência desta decupagem é a quase total ausência de closes em São Bernardo. Há como que uma cerca de arame farpado entre o mundo interior de Paulo Honório e nossa curiosidade de espectadores acostumados aos dramas psicologizantes. Nesse sentido, o close sobre o perfil de Paulo Honório, que fuma um cachimbo, pode ser comparado ao plano geral de um campo em que não se vê ninguém. Após a entrada de Madalena na narrativa, isto se altera. Embora as ações continuem a ser trabalhadas em grandes saltos temporais e em planos distanciados (o primeiro encontro entre Paulo Honório e Madalena, na estação de trem, se dá sem que tenhamos dela sequer um plano próximo), há um novo intuito na utilização dos closes, como na cena em que Paulo Honório pede Madalena em casamento, ou quando, silencioso, os olhos vítreos, ele tenta encontrar provas do “comunismo” de Madalena, durante um jantar para convidados.

Embora São Bernardo seja de uma quase asfixiante secura, há no filme de Leon a busca por um tom de esperança, que nasce da própria percepção dialética do processo social. E Madalena é, nesse sentido, uma personagem quase simbólica. Não por acaso, em um dos raros planos suaves de São Bernardo, vemos Isabel Ribeiro caminhar por um trecho de campo florido. Esta imagem não deixa de se ligar, metaforicamente, ao belo plano dos trabalhadores rurais que vêm surgindo, como se brotassem da terra, entoando os cantos de trabalho, no momento mesmo em que Paulo Honório, envolto por uma triste luz amarelada, sucumbe e se apaga em sua própria derrota.

Luís Alberto Rocha Melo