RIDING GIANTS - NO LIMITE DA EMOÇÃO
Stacy Peralta, Riding giants, EUA, 2004

Depois do exercício um tanto narcisista e profundamente nostálgico de Dogtown e Z-Boys, Stacy Peralta dá seqüência a seu projeto de organizar os arquivos de uma “contra”-cultura que ele considera tão importante e vigorosa quanto a literatura beatnik ou o rock n’ roll, dessa vez fazendo um filme em que o surf não é apenas o ponto de partida, e sim o objeto principal. Riding Giants é um complemento natural do filme anterior – afinal a prancha de skate, assim como as primeiras formas de usá-la, é uma derivação direta do surf. Enquanto em Dogtown e Z-Boys Stacy Peralta fazia parte dos personagens do filme (ele também foi um Z-Boy de Santa Monica, tendo contribuído decisivamente para a divulgação da cultura do skate ao redor do mundo), e se inscrevia como alguém que “muito cedo percebeu que seu lugar era nos bastidores”, realizando-se como cineasta e não como desportista, em Riding Giants ele já ocupa o antecampo do filme. O local – agora não-problematizável, pois não há mais o curto-circuito autor-personagem – de onde sai todo o discurso que torna possível se falar em cultura do surf, e não apenas em um esporte praticado por pessoas que se viciam em adrenalina.

A lógica que fascina Peralta e possibilita seus filmes recentes é simples: onde há uma prancha, há uma câmera. É desse modo que o diretor, não sem carisma (ou muito menos sem sorte), pode contar com antológicas imagens de arquivo, registros estupefatos de momentos em que a arte retratada – dentro da teoria estetizante e evolucionista dos filmes – estava se “aprimorando”. O surf, ao que o filme indica, sempre pediu que seus episódios míticos fossem registrados, eternizados: cada manobra ou cada atitude dos surfistas parecem já fetichizadas pelos cinegrafistas que lá estavam presentes. Tudo é antologizado no mesmo momento em que é produzido. Talvez o caso seja menos de uma afortunada coincidência entre passagens míticas e registros preservados do que simplesmente um discurso e uma força, inerentes a cada imagem de surfistas em ondas gigantes, que já tornam a coisa toda mitológica por si mesma.

Mas o mais interessante de um filme como Riding Giants é que as linhas de definição do culto que ele instila são basicamente as mesmas que nutriram a paixão das primeiras gerações cinéfilas: essencialismo (a crença na evolução de uma linguagem do surf, que busca sua essência através do aprimoramento de suas técnicas e de seus estilos), empirismo (o lance é cair na água e conhecer as ondas ao surfá-las), ecletismo (toda modalidade e toda inovação são bem-vindas), mitomania (mais do que uma cultura, mais que um esporte, mais do que uma arte: trata-se de uma mitologia).

À exceção dos depoimentos e de algumas outras tomadas, Riding Giants é feito prioritariamente com imagens de arquivo. Stacy Peralta fez um filme sobre a iconografia do surf, daí sua magnífica arqueologia das formas de representação deste, desde os anos 50 até os dias de hoje. Os depoimentos de Riding Giants seguem a mesma lógica do filme anterior de Peralta: cada nome evocado é rodeado tanto de uma aura mítica quanto de uma importância no progresso das modalidades de expressão do surf que casam muito bem com a visão que o diretor tem daquilo que filma. A iconicidade do surf, para ele, é o que possibilita o fenômeno de sua dispersão pelo mundo. As capas da revista Surfer Magazine, portanto, são tão objeto do seu filme quanto qualquer evento importante na história do surf.

Em Dogtown e Z-Boys já se via a mesma heroificação do fenômeno midiático em torno dos esportes radicais. Craig Stecyk, o foto-jornalista a quem é atribuída a formulação estética e conceitual da cultura dos skatistas, tem sua importância ressaltada justamente no início e no fim do filme, sendo mostrado como aquele que juntou as pontas para os meninos de Dogtown: se não fossem suas fotos e seus artigos, provavelmente não teriam existido os Z-Boys – ao menos não da maneira que existiram, ou seja, como ícones do street style, como manifestação artística de uma contracultura nascida nos guetos de L.A., como forma de vida. Riding Giants não é tão explícito, mas afirma a cada plano o papel essencial de pessoas que, como Peralta, resolveram posicionar uma câmera onde quer que houvesse um surfista ou um skatista disposto a praticar sua arte.

Ao contrário de Billabong Odissey, filme dirigido por Philip Boston e exibido nos cinemas daqui em 2004, Riding Giants não se impinge a tarefa de avaliar como se deu a passagem dessa contracultura, que Peralta exibe como fruto da manifestação de liberdade, hedonismo e simplicidade de um certo grupo de jovens, para a profissionalização e comercialização do esporte. Entre os despretensiosos e brincalhões pioneiros (Greg Noll, Pat Curren, Mickey Munoz, entre outros) e os milionários campeonatos mundiais disputados por Kelly Slater e cia fica uma lacuna propositalmente deixada em branco. O filme se esquiva do assunto e se justifica na própria estrutura, que apanha três “picos” icônicos, consulta os três surfistas que reinaram nesses picos e a partir disso extrai três grandes blocos narrativos separados por elipses forçadas.

Em Waimea, Greg Noll, o primeiro caçador de ondas gigantes, é definido como o Jack Kerouac do surf, e tem sua genialidade reconhecida não apenas pelo jeito fanfarrão e truculento com que encarava as enormes paredes de água, mas também, como salienta um jornalista, pelo calção de listras brancas e pretas que ele usava ao surfar e que o destacava em relação ao resto, para quem estivesse assistindo da areia ou mesmo filmando. Depois o filme vai para Maverick’s, praia perto de São Francisco, cujas perigosas ondas foram descobertas por Jeff Clark, e que depois virou point obrigatório dentro do circuito mundial de ondas gigantes (foi lá que Mark Foo morreu tragicamente em 1994, passagem à qual o filme dedica uma seqüência bastante melancólica, mas que dramaticamente ajuda a construir o sentido de camaradagem entre os surfistas). E finalmente chega a vez de Jaws e do inventor do tow-in, Laird Hamilton, tido no filme como um dos surfistas mais importantes da história.

A semelhança mais forte de Riding Giants com Billabong Odissey é a visão do tow-in como uma forma tecnologicamente evoluída do surf – teoria evolucionista que de certa maneira se contradiz com a tendência mitologizante (já que esta pede um tempo e um movimento circulares, sem horizontes de progresso técnico-estilístico). Mas o filme é conduzido com tamanho entusiasmo pelo que mostra que, durante a projeção, tudo que queremos é embarcar naquela euforia mitomaníaca, se embasbacar com o enredo de superação que Peralta constrói, se utilizando de mecanismos por vezes até apelativos (como a dispensável voz-off final), mas que se fazem tranqüilamente passar por acidentais. E para coroar a bela utilização da trilha sonora, os créditos finais são ao som da obra-prima “This is the sea”, do The Waterboys, cujo último verso é ideal para encerrar o filme: “Behold the sea!”.

Luiz Carlos Oliveira Jr.