Depois do exercício um tanto
narcisista e profundamente nostálgico de Dogtown
e Z-Boys, Stacy Peralta dá seqüência a seu projeto
de organizar os arquivos de uma “contra”-cultura que
ele considera tão importante e vigorosa quanto a literatura
beatnik ou o rock n’ roll, dessa vez fazendo
um filme em que o surf não é apenas o ponto de partida,
e sim o objeto principal. Riding Giants é um
complemento natural do filme anterior – afinal a prancha
de skate, assim como as primeiras formas de usá-la,
é uma derivação direta do surf. Enquanto em Dogtown
e Z-Boys Stacy Peralta fazia parte dos personagens
do filme (ele também foi um Z-Boy de Santa Monica, tendo
contribuído decisivamente para a divulgação da cultura
do skate ao redor do mundo), e se inscrevia como alguém
que “muito cedo percebeu que seu lugar era nos bastidores”,
realizando-se como cineasta e não como desportista,
em Riding Giants ele já ocupa o antecampo do
filme. O local – agora não-problematizável, pois não
há mais o curto-circuito autor-personagem – de onde
sai todo o discurso que torna possível se falar em cultura
do surf, e não apenas em um esporte praticado por
pessoas que se viciam em adrenalina.
A lógica que fascina Peralta e possibilita seus filmes
recentes é simples: onde há uma prancha, há uma câmera.
É desse modo que o diretor, não sem carisma (ou muito
menos sem sorte), pode contar com antológicas imagens
de arquivo, registros estupefatos de momentos em que
a arte retratada – dentro da teoria estetizante e evolucionista
dos filmes – estava se “aprimorando”. O surf, ao que
o filme indica, sempre pediu que seus episódios míticos
fossem registrados, eternizados: cada manobra ou cada
atitude dos surfistas parecem já fetichizadas pelos
cinegrafistas que lá estavam presentes. Tudo é antologizado
no mesmo momento em que é produzido. Talvez o caso seja
menos de uma afortunada coincidência entre passagens
míticas e registros preservados do que simplesmente
um discurso e uma força, inerentes a cada imagem de
surfistas em ondas gigantes, que já tornam a coisa toda
mitológica por si mesma.
Mas o mais interessante de um filme como Riding Giants
é que as linhas de definição do culto que ele instila
são basicamente as mesmas que nutriram a paixão das
primeiras gerações cinéfilas: essencialismo (a crença
na evolução de uma linguagem do surf, que busca sua
essência através do aprimoramento de suas técnicas e
de seus estilos), empirismo (o lance é cair na água
e conhecer as ondas ao surfá-las), ecletismo
(toda modalidade e toda inovação são bem-vindas), mitomania
(mais do que uma cultura, mais que um esporte, mais
do que uma arte: trata-se de uma mitologia).
À exceção dos depoimentos e de algumas outras tomadas,
Riding Giants é feito prioritariamente com imagens
de arquivo. Stacy Peralta fez um filme sobre a iconografia
do surf, daí sua magnífica arqueologia das formas de
representação deste, desde os anos 50 até os dias de
hoje. Os depoimentos de Riding Giants seguem
a mesma lógica do filme anterior de Peralta: cada nome
evocado é rodeado tanto de uma aura mítica quanto de
uma importância no progresso das modalidades de expressão
do surf que casam muito bem com a visão que o diretor
tem daquilo que filma. A iconicidade do surf, para ele,
é o que possibilita o fenômeno de sua dispersão pelo
mundo. As capas da revista Surfer Magazine, portanto,
são tão objeto do seu filme quanto qualquer evento importante
na história do surf.
Em Dogtown e Z-Boys já se via a mesma heroificação
do fenômeno midiático em torno dos esportes radicais.
Craig Stecyk, o foto-jornalista a quem é atribuída a
formulação estética e conceitual da cultura dos skatistas,
tem sua importância ressaltada justamente no início
e no fim do filme, sendo mostrado como aquele que juntou
as pontas para os meninos de Dogtown: se não fossem
suas fotos e seus artigos, provavelmente não teriam
existido os Z-Boys – ao menos não da maneira que existiram,
ou seja, como ícones do street style, como manifestação
artística de uma contracultura nascida nos guetos de
L.A., como forma de vida. Riding Giants não é
tão explícito, mas afirma a cada plano o papel essencial
de pessoas que, como Peralta, resolveram posicionar
uma câmera onde quer que houvesse um surfista ou um
skatista disposto a praticar sua arte.
Ao contrário de Billabong Odissey, filme dirigido
por Philip Boston e exibido nos cinemas daqui em 2004,
Riding Giants não se impinge a tarefa de avaliar
como se deu a passagem dessa contracultura, que Peralta
exibe como fruto da manifestação de liberdade, hedonismo
e simplicidade de um certo grupo de jovens, para a profissionalização
e comercialização do esporte. Entre os despretensiosos
e brincalhões pioneiros (Greg Noll, Pat Curren, Mickey
Munoz, entre outros) e os milionários campeonatos mundiais
disputados por Kelly Slater e cia fica uma lacuna propositalmente
deixada em branco. O filme se esquiva do assunto e se
justifica na própria estrutura, que apanha três “picos”
icônicos, consulta os três surfistas que reinaram nesses
picos e a partir disso extrai três grandes blocos narrativos
separados por elipses forçadas.
Em Waimea, Greg Noll, o primeiro caçador de ondas gigantes,
é definido como o Jack Kerouac do surf, e tem sua genialidade
reconhecida não apenas pelo jeito fanfarrão e truculento
com que encarava as enormes paredes de água, mas também,
como salienta um jornalista, pelo calção de listras
brancas e pretas que ele usava ao surfar e que o destacava
em relação ao resto, para quem estivesse assistindo
da areia ou mesmo filmando. Depois o filme vai para
Maverick’s, praia perto de São Francisco, cujas perigosas
ondas foram descobertas por Jeff Clark, e que depois
virou point obrigatório dentro do circuito mundial
de ondas gigantes (foi lá que Mark Foo morreu tragicamente
em 1994, passagem à qual o filme dedica uma seqüência
bastante melancólica, mas que dramaticamente ajuda a
construir o sentido de camaradagem entre os surfistas).
E finalmente chega a vez de Jaws e do inventor do tow-in,
Laird Hamilton, tido no filme como um dos surfistas
mais importantes da história.
A semelhança mais forte de Riding Giants com
Billabong Odissey é a visão do tow-in
como uma forma tecnologicamente evoluída do surf – teoria
evolucionista que de certa maneira se contradiz com
a tendência mitologizante (já que esta pede um tempo
e um movimento circulares, sem horizontes de progresso
técnico-estilístico). Mas o filme é conduzido com tamanho
entusiasmo pelo que mostra que, durante a projeção,
tudo que queremos é embarcar naquela euforia mitomaníaca,
se embasbacar com o enredo de superação que Peralta
constrói, se utilizando de mecanismos por vezes até
apelativos (como a dispensável voz-off final),
mas que se fazem tranqüilamente passar por acidentais.
E para coroar a bela utilização da trilha sonora, os
créditos finais são ao som da obra-prima “This is the
sea”, do The Waterboys, cujo último verso é ideal para
encerrar o filme: “Behold the sea!”.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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