O que o último plano de O Leão de Sete
Cabeças mostra, em mais uma das tomadas estáticas
e alongadas que compõem a maior parte do filme,
é um pelotão de soldados africanos que
se desvencilha da relva e surge do fundo da imagem caminhando
em direção à sua superfície.
Os inúmeros soldados passam em frente à
câmera e prosseguem ao som de um canto ao mesmo
tempo melancólico e aguerrido, repetindo aquela
que possivelmente é a forma mais simples – mas
também uma das mais arrepiantes – de terminar
um filme de guerra (penso sempre na tropa americana
cantando o tema de Mickey Mouse no final de Nascido
para Matar). A composição está
longe de ser anticonvencional: um grande plano geral,
filmado na mata africana, com o horizonte ao fundo,
a câmera sem se mexer um só milímetro
em qualquer direção, as bordas perfeitamente
alinhadas, empenhadas na tarefa de conter a imagem,
no sentido tanto de emoldurá-la quanto de impedir
seu vazamento. É a mesma composição
em perspectiva que permitiu às artes visuais,
em outras circunstâncias, articular um discurso
teleológico. Mas Glauber opera uma inversão
tão sutil quanto vigorosa, e que basicamente
é a mesma inversão proposta por Lumière
já no seu primeiro registro: o ponto de fuga,
o local para onde o olhar converge – ou seja, o seu
local de chegada – de acordo com a pedagogia visual
propagada desde o Renascimento (o que coincide com a
invenção da ciência histórica
propriamente dita) se torna na verdade o ponto de brotamento
da imagem. O pelotão emerge do fundo do quadro,
vem andando até o plano em que a câmera
se encontra e, o principal, ultrapassa a câmera,
sai pela margem direita do quadro e continua a marcha
revolucionária.
Esse plano-seqüência, um dos mais extraordinários
da obra de Glauber, tanto encerra um ciclo quanto inicia
outro. Seria o fim da teleologia no seu cinema, o fim
do horizonte histórico em vias de transformação
pela inelutabilidade da crise e, num segundo momento,
da revolução: essa marcha já não
se pode fazer pressupondo um destino histórico
– ela precisa se antecipar à própria História
e à própria dialética materialista,
precisa vir para a dianteira do plano e ser mais rápida
que o discurso. Estava dada a largada, por outro lado,
de um processo que teria seu ápice em A Idade
da Terra. A imagem já não cabe mais
nos limites que lhe são próprios: as bordas
do quadro perdem o poder de agenciamento do campo visual
e do sentido, a montagem não consegue se impor
ao escoamento de planos repetitivos e dilatados, a imprevisibilidade
toma conta da mise en scène. No plano
final de O Leão de Sete Cabeças,
é como se Glauber tirasse a tampa que represava
e mantinha em algum ponto distante na profundidade do
campo o magma de um terceiro-mundo lúdico e inflamável.
A imagem liberta do seu ponto de fuga começa
a ganhar volume e se expandir, até transbordar
de forma incontrolável em A Idade da Terra.
Seus planos começam a alternar imagens escarradas
e o mais profundo lirismo. Ou, o que é ainda
mais complexo, as imagens passam a escarrar no mundo
ao qual declaram amor simultaneamente.
Na entrevista que está no catálogo do
festival de Bobigny, quando houve recentemente uma retrospectiva
da obra de Glauber Rocha, Sylvie Pierre fala duas frases
que ilustram bem os filmes que ele fez no exílio.
A primeira é que "entre suas proposições
mais radicais e mais interessantes havia uma espécie
de vontade de síntese de todas as modernidades".
De fato, o que filmes como O Leão de Sete
Cabeças e Claro revelam é um
cineasta absolutamente antenado com tudo o que acontecia
nas vanguardas artísticas mundo afora. Mais ainda:
um cineasta disposto a refletir e problematizar, por
exemplo, muitos dos conceitos instaurados pelo cinema
moderno. O esgarçamento do plano fixo (O Leão
de Sete Cabeças), a idéia de narrativa-mundo
levada às últimas conseqüências
(Claro), a busca de uma cultura popular na qual
se abismam as noções de tradição
e modernidade artísticas (Cabeças Cortadas).
A outra afirmação de Sylvie Pierre é
de que Glauber "se achou no centro de todas as contradições
mundiais essenciais de sua própria época",
ou seja, assumiu uma posição idiossincrática
em relação ao conflito de enunciados políticos
e artísticos e aos movimentos sociais que eclodiam.
E não há expressão mais enfática
desse epicentro estético-político do que
em Claro, que é um documentário
sobre o mundo, um filme que tenta ser a síntese
caótica daquele momento exato – e do cinema que
interessava a Glauber, de Jean-Marie Straub a Sergio
Leone. Está em jogo uma representação
do excesso, e é um excesso menos no sentido barroco
do que na reação a uma profusão
do entorno, uma resposta à efervescência
e também à decadência da civilização
ocidental (é abstrata e grandiloqüente assim
mesmo essa prospecção de Glauber). O excesso,
as sobras, o transbordamento, a monumentalidade do sentimento
de mundo que o exílio incute em Glauber Rocha
o fazem descartar qualquer modalidade de fala que não
a veemência: sua fala se torna ainda mais gesticulada,
mais ação do que discurso. A estética
da fome, como Cyril Béghin observou com precisão,
é uma estética da palavra. E na subseqüente
"estetyka do sonho", o mais importante é o transe
hipnótico de uma palavra que nem a sociologia
nem a dramaturgia convencional conseguem intermediar.
Tudo chega ao espectador com uma brutalidade e uma sensação
de ultrapassagem que reproduzem o próprio gesto
excessivo no qual se baseia a mise en scène
glauberiana. É desse modo que Juliet Berto, em
Claro, profetiza o cataclismo ocidental em tom
poético-apocalíptico, pergunta sobre os
"cinemanifestos", improvisa versos que prefiguram o
"desespero lisérgico" de A Idade da Terra.
Em Claro, tudo que Glauber recebia do mundo ia
direto para o filme, sem filtro, como num cine-jornal
sem editorial. A logorréia acrescida às
imagens, na boca dos atores ou mesmo do próprio
diretor, era apenas um exercício a mais desse
jornalismo da matéria total – a grande notícia
do jornalista Glauber é que há um mundo
crepitando sob nossos pés. As intervenções
do diretor, que nesse momento está entrando literalmente
nos filmes, como ator/comentarista de algumas cenas
(o que começa na verdade após sua participação
em Vento do Leste, do Godard), não são
comentários que buscam dar às imagens
seus enunciados de predileção. Sua função
não é de "edição", e sim
de performance política (logo teatral) ou mesmo
agitação – o que o programa de tv Abertura
ampliaria. Muito antes de querer induzir os significados
das imagens, Glauber está somando informações,
somando sentidos, estilhaçando as referências,
dificultando a apreensão de uma mensagem. Para
Glauber, nesse momento, tudo é cinema. Ele não
chegou a viver a crise que, nos anos 80, resultaria
da dificuldade de simplesmente rodar um plano, conceber
uma imagem de cinema sob o peso de seus quase 100 anos
de história, o que incluía o fim de sua
idade clássica e o então recente esgotamento
de sua modernidade. Nada disso se pressagia em Claro,
Di ou A Idade da Terra. Até porque
sua crença e sua confiança no cinema (de
certo modo a mesma crença e a mesma confiança
que permitiram a Godard atravessar a tal crise) ainda
eram suficientes para o estimular a encontrar o filme
no próprio ato de fazê-lo (do que Di
é a prova maior), e também porque o encontro
que promovia entre a câmera – muitas vezes mais
adepta do tato do que da visão – e o mundo portava
uma força que podia levar o filme a prescindir
de todo o resto, ser apenas o registro daquele momento
de encontro. A dor que Glauber experimentou foi outra,
e teve muito mais a ver com a febre hemorrágica
que seu cinema contraiu após se dar conta da
impossibilidade de um cinema terceiro-mundista (ao menos
enquanto o projeto revolucionário que ele sonhou
ao lado de outros cineastas latino-americanos), do fracasso
de um espetáculo total feito da "explosão
provocada por uma reação química
em que se misturam sangue e celulóide" (como
Martin Scorsese o definiu). "A partir da viagem à
Europa", diz Sylvie Pierre, "há uma perda de
alegria em Glauber, um sofrimento que se instala".
Di e A Idade da Terra são apenas
a segunda fase desse mesmo exílio, o resultado
artístico do momento em que o cineasta retorna
ao Brasil e se percebe exilado no próprio país,
exilado em toda parte (Pascal Bonitzer fala sobre isso
num lindo depoimento que escreveu logo após receber
o telefonema de Serge Daney avisando da morte de Glauber).
Os artistas únicos dificilmente descansam, talvez
porque tenham sempre a impressão de que seu tempo
de vida é mais curto do que sua empreitada estética.
É o preço da bravura, e Glauber soube
disso tão-logo realizou sua catedral do "triste
trópico", seu monumento ao impossível
(do cinema, do país, do terceiro-mundo, da vida),
o monstro indescritível que é A Idade
da Terra, capaz de emitir o mais gutural e o mais
sublime dos cantos, "a liberdade da expressão
cinematográfica levada a um nível sacrificial"
(Pierre). Uma obra que se encerra com tamanha inquietação
jamais poderá descansar, jamais rimará
com calma e repouso. Retornar à obra de Glauber
Rocha é como perturbar o sono de um gigante.
E o que esse gigante pede é justamente que não
o deixemos em paz.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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