LILA DIZ
Ziad Doueiri, Lila dit ça, França/Inglaterra, 2004

Vamos eleger três pontos como o solo dramático sobre o qual se constrói Lila Diz. O primeiro é o do narrador e de sua narração, cuja voz é tradução sonora de um texto escrito. O segundo é o do conjunto de narrativas sexuais contadas a ele por Lila, incorporada em sua narração e uma das motivações para ele escrever. O terceiro é o bairro árabe onde moram os dois personagens e de onde o filme quase nunca sai com a câmera, uma geografia social situada, segundo o material de divulgação, na cidade de Marselha, cuja menção, salvo distração do crítico, não existe em nenhum diálogo. 

A narração do protagonista Chimo (Mohamed Kouas), jovem sem interesse e sem esperança em seu futuro, é tanto necessidade como ferramenta. Necessidade porque a escrita é sua forma de extravasar emoções conflitantes e organizar experiências não menos harmoniosas. As conversas e contatos com Lila (Vahina Giocante), adolescente de pele clara e cabelos loiros, que não tira o sexo da boca e pratica-o parcialmente com Chimo, desorienta o rapaz, um tipo moreno de ascendência provavelmente argelina. Narrando com o verbo no passado, quando tudo já acabou, Chimo tenta escrever para, em última instância, entender os acontecimentos. Faz autobiografia colada ao momento narrado.

Mas a escrita, além de ser desabafo, é sua arma. Com ela, pode sair do bairro, estudar, progredir. Essa marca do artista com potencial a ser desenvolvido será colado ao personagem, a partir da própria opção de elegê-lo como narrador-escritor, para diferenciá-lo de seus amigos delinquentes do bairro, que esbanjam e violência diante da sexualidade indiscreta de Lila. Chimo é o modelo, a exceção, o iluminado, vacinado contra a contaminação de seu meio embrutecedor e ignorante. Assim está na tela.

Vamos ao segundo ponto. Se a narrativa do protagonista será seu passaporte para a ascensão e a redenção para suas emoções machucadas, as histórias contadas por Lila, talvez por serem fantasiosas e não autobiográficas, são vistas como fruto de um processo cultural modelador de subjetividades, como sugere o final “explica tudo”. Lila inventa situações não vividas porque é provocada por imagens absorvidas nos meios de comunicação. Sexualiza-se por meio das informações e formatações do mundo e do tempo nos quais vive. É um sintoma, não uma singularidade. Acabará sendo filmada, em alguma medida, como uma desequilibrada, menina de imaginação descontrolada, manipuladora e vocacionada para as confusões.

Ao contrário da narração de Chimo, que nasce de dentro dele mesmo e existe para documentar o vivido, as narrativas de Lila nascem de outras micro-narrativas, seja de uma imagem ou de uma notícia, existindo para dar vida ao não vivido. Cada uma dessas expressões, a escrita-real de Chimo e a verbal-inventada de Lila, serão hierarquizadas: apesar dos ferimentos, Chimo sai premiado; Lila, punida. Ele nos narra um filme; ela é objeto.

E há o terceiro ponto: o bairro. Esse universo social e geográfico é frequentemente mencionado na narração de Chimo, sempre referido como um lugar sem perspectivas, do qual, graças a sua capacidade de escrever e a uma bolsa de estudos, ele poderá sair para se consolidar como exceção. O bairro é, portanto, seu limite. Não havendo esperança de melhorias ali, a única perspectiva de se evitar o determinismo social é a fuga do ambiente. Mas que bairro é esse? O diretor libanês Ziad Doueiri, radicado na França, não se instala no ambiente. Pouco nos dá a ver da vida naquele espaço. Não há um senso de cotidiano, de situações que se repetem, de um mal-estar no ar. Só podemos concordar que Chimo tem de sair dali, que o bairro é um freio em sua vida, porque ele nos diz isso na narração. Mas a imagem pouco nos convence a esse respeito.

Ao mesclar um olhar mais realista com um tratamento aberto ao fabular, Doueiri, que antes dirigiu Beirute Oeste (exibido apenas em mostras no Brasil) e foi assistente de Tarantino (Cães de Alguel, Pulp Fiction, Jackie Brown), perdeu o ponto de equilíbrio. Sua narrativa encadeia acontecimentos, mas ignora os intervalos, o olhar mais observacional, a aproximação maior com o bairro, com a figuração, com as casas e com os lugares públicos. Doueiri opta por um olhar mais movimentado, algo manifestado no trabalho da câmera, que, sem necessariamente obter efeitos plásticos marcantes, procura chamar atenção para si, indicando uma busca do diretor por “sinais de estilo”.

É preciso reconhecer que, em alguns trechos isolados, a câmera enamora-se de Lila, o que, se a reduz a uma imagem desejável e de significado enigmatíco, por outro lado encontra nela, por razões não tão identificáveis racionalmente, fragmentos de beleza e poesia. Doueiri filma Vahina com desejo e curiosidade. Ele a enquadra com a disposição de transformar seu corpo em objeto para voyeur, suas palavras em fagulhas eróticas e suas atitudes em pequenas revoluções. Mas, até a explicação para sua suposta libido desgovernada, Lila tem um mistério instigante. O diretor tenta cultivar o senso de ambiguidade (às vezes caricata), sempre situando Lila entre a pureza e a transgressão, de modo a nos permitir vê-la como um anjo tomado por desejo satânico, sem repressão verbal na expressão de sua sexualidade fantasiosa.

Cléber Eduardo