Vamos eleger três pontos como
o solo dramático sobre o qual se constrói Lila Diz. O primeiro é o do narrador e de sua narração, cuja voz é
tradução sonora de um texto escrito. O segundo é o do
conjunto de narrativas sexuais contadas a ele por Lila,
incorporada em sua narração e uma das motivações para
ele escrever. O terceiro é o bairro árabe onde moram
os dois personagens e de onde o filme quase nunca sai
com a câmera, uma geografia social situada, segundo
o material de divulgação, na cidade de Marselha, cuja
menção, salvo distração do crítico, não existe em nenhum
diálogo.
A narração do protagonista Chimo (Mohamed Kouas), jovem
sem interesse e sem esperança em seu futuro, é tanto
necessidade como ferramenta. Necessidade porque a escrita
é sua forma de extravasar emoções conflitantes e organizar
experiências não menos harmoniosas. As conversas e contatos
com Lila (Vahina Giocante), adolescente de pele clara
e cabelos loiros, que não tira o sexo da boca e pratica-o
parcialmente com Chimo, desorienta o rapaz, um tipo
moreno de ascendência provavelmente argelina. Narrando
com o verbo no passado, quando tudo já acabou, Chimo
tenta escrever para, em última instância, entender os
acontecimentos. Faz autobiografia colada ao momento
narrado.
Mas a escrita, além de ser desabafo, é sua arma. Com
ela, pode sair do bairro, estudar, progredir. Essa marca
do artista com potencial a ser desenvolvido será colado
ao personagem, a partir da própria opção de elegê-lo
como narrador-escritor, para diferenciá-lo de seus amigos
delinquentes do bairro, que esbanjam e violência diante
da sexualidade indiscreta de Lila. Chimo é o modelo,
a exceção, o iluminado, vacinado contra a contaminação
de seu meio embrutecedor e ignorante. Assim está na
tela.
Vamos ao segundo ponto. Se a narrativa do protagonista
será seu passaporte para a ascensão e a redenção para
suas emoções machucadas, as histórias contadas por Lila,
talvez por serem fantasiosas e não autobiográficas,
são vistas como fruto de um processo cultural modelador
de subjetividades, como sugere o final “explica tudo”.
Lila inventa situações não vividas porque é provocada
por imagens absorvidas nos meios de comunicação. Sexualiza-se
por meio das informações e formatações do mundo e do
tempo nos quais vive. É um sintoma, não uma singularidade.
Acabará sendo filmada, em alguma medida, como uma desequilibrada,
menina de imaginação descontrolada, manipuladora e vocacionada
para as confusões.
Ao contrário da narração de Chimo, que nasce de dentro
dele mesmo e existe para documentar o vivido, as narrativas
de Lila nascem de outras micro-narrativas, seja de uma
imagem ou de uma notícia, existindo para dar vida ao
não vivido. Cada uma dessas expressões, a escrita-real
de Chimo e a verbal-inventada de Lila, serão hierarquizadas:
apesar dos ferimentos, Chimo sai premiado; Lila, punida.
Ele nos narra um filme; ela é objeto.
E há o terceiro ponto: o bairro. Esse universo social
e geográfico é frequentemente mencionado na narração
de Chimo, sempre referido como um lugar sem perspectivas,
do qual, graças a sua capacidade de escrever e a uma
bolsa de estudos, ele poderá sair para se consolidar
como exceção. O bairro é, portanto, seu limite. Não
havendo esperança de melhorias ali, a única perspectiva
de se evitar o determinismo social é a fuga do ambiente.
Mas que bairro é esse? O diretor libanês Ziad Doueiri,
radicado na França, não se instala no ambiente. Pouco
nos dá a ver da vida naquele espaço. Não há um senso
de cotidiano, de situações que se repetem, de um mal-estar
no ar. Só podemos concordar que Chimo tem de sair dali,
que o bairro é um freio em sua vida, porque ele nos
diz isso na narração. Mas a imagem pouco nos convence
a esse respeito.
Ao mesclar um olhar mais realista com um tratamento
aberto ao fabular, Doueiri, que antes dirigiu Beirute
Oeste (exibido apenas em mostras no Brasil) e foi
assistente de Tarantino (Cães de Alguel, Pulp Fiction,
Jackie Brown),
perdeu o ponto de equilíbrio. Sua narrativa encadeia
acontecimentos, mas ignora os intervalos, o olhar mais
observacional, a aproximação maior com o bairro, com
a figuração, com as casas e com os lugares públicos.
Doueiri opta por um olhar mais movimentado, algo manifestado
no trabalho da câmera, que, sem necessariamente obter
efeitos plásticos marcantes, procura chamar atenção
para si, indicando uma busca do diretor por “sinais
de estilo”.
É preciso reconhecer que, em alguns trechos isolados,
a câmera enamora-se de Lila, o que, se a reduz a uma
imagem desejável e de significado enigmatíco, por outro
lado encontra nela, por razões não tão identificáveis
racionalmente, fragmentos de beleza e poesia. Doueiri
filma Vahina com desejo e curiosidade. Ele a enquadra
com a disposição de transformar seu corpo em objeto
para voyeur, suas palavras em fagulhas eróticas
e suas atitudes em pequenas revoluções. Mas, até a explicação
para sua suposta libido desgovernada, Lila tem um mistério
instigante. O diretor tenta cultivar o senso de ambiguidade
(às vezes caricata), sempre situando Lila entre a pureza
e a transgressão, de modo a nos permitir vê-la como
um anjo tomado por desejo satânico, sem repressão verbal
na expressão de sua sexualidade fantasiosa.
Cléber Eduardo
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