DOSSIÊ IDADE DA TERRA: APRESENTAÇÃO

"...tentarei produzir meu próximo filme o mais rápido possível. O filme se chama A Idade da Terra, deve ser filmado na África, Ásia, América e Europa. É um projeto de grande ambição, o maior que já saiu da minha cabeça, mas custa um milhão de dólares, nem produtor daqui se arrisca." É uma carta destinada a Alfredo Guevara, datada de setembro de 1973, e é a primeira menção de Glauber Rocha nas cartas coligidas no livro Cartas ao Mundo1. Dois meses antes disso, em 12 de julho de 1973 (documento 1), com o nome The Age of the Earth, Glauber Rocha preparou o primeiro material escrito de que se tem a data e que circula em torno da odisséia-A Idade da Terra (existe em mais de um lugar a menção a um roteiro do filme escrito em meados de 1972 a pedidos). Em suas inúmeras facetas e configurações, o filme tomaria diversas intrigas diferentes, diversos atores e diversos locais de filmagem: inicialmente o Brasil, depois os quatro continentes, depois Estados Unidos, posteriormente ainda o México (ou México, Estados Unidos e países do Caribe), para aportar novamente à terra pátria, mais especificamente em três cidades: Bahia, Brasília, Rio de Janeiro.

O dossiê aqui presente tenta de alguma forma testemunhar diferentes momentos do processo, assim como encontrar lógicas de consecução em cada etapa do projeto, culminando com o produto final (que conta com traços fortes de cada uma das versões de roteiros, sinopses ou projetos que o filme teve). Não tanto ter o trabalho inútil de "desvendar" aquilo que é indesvendável, de desvelar um mistério inexistente, mas de melhor ordenar nosso desconhecimento beato, surgido da beleza bruta talhada pelo gesto criativo de Glauber Rocha. O que esses documentos revelam pode ser visto de várias formas diferentes. Primeiramente, uma versatilidade incrível de Glauber, que modifica avidamente o projeto a cada nova possibilidade de país ou de circunstância (pessoal ou objetiva). Em segundo lugar, um tênue fio que vai ligando projeto a projeto, versão a versão de A Idade da Terra assume, do primeiro esboço no papel até a projeção da película na tela. E, por último, uma preocupação que passa por toda a obra do cineasta e toma forma de forma diferenciada em cada processo de A Idade da Terra: a filiação, a traição, a intriga de bastidores por poder, a elite dissociada da população, a História e o mítico/mitológico, a força do ícone.

Naturalmente, o dossiê ganha mais matizes e relevos para aqueles que têm o filme na cabeça, ou em todo caso aqueles que já viram o filme (preferencialmente, numa sala de cinema, pois o formato panorâmico é decisivo em A Idade da Terra), pois há a cada caso elementos que vemos na tela, e, disseminado em todos os projetos, um desejo semelhante de falar da relação entre imperalismo e terceiro-mundo em chave de complô e de filiação, tudo isso filtrado pela figura do filho/Jesus. A cada documento, surge um traço (ou traços) do que viria a ser o filme A Idade da Terra, e é comovente seguir seus passos (apenas alguns dos documentos entre a infinidade que pode ser pesquisada ns arquivos do Tempo Glauber):

Primeiro documento: projeto de julho de 1973. Adapta o mito do Azulão, "comum a todos indígenas do continente americano", para a questão da História contemporânea e das mudanças no Século XX. À luz do mito e a partir da leitura do documento, o tema da "idade da terra" assume uma dimensão ainda mais forte que o deslumbrante monólogo de Glauber na versão definitiva. A trama circula em torno do trio Rudá, Irerê e Patriarca, personagens que seriam transmutados ao longo do projeto e dos sete anos de reformulações. Mas já podemos aí ver claramente Brahms e e o complô contra ele do Cristo, principalmente o interpretado por Geraldo del Rey, e a mediação entre os dois feita por uma mulher (no caso, Danuza Leão, que evoca Irerê), assim como toda a trajetória do Cristo índio, interpretado por Jece Valadão, sobretudo no começo do filme, que é quase uma cena tirada direto do projeto: "O pássaro da eternidade não existe; meu pai me traiu".

Segundo documento: Sinopse México 1974. Rudá transforma-se em Juan, Irerê é Punalua. Brahms como a figura do Patriarca já surge, mas sua intriga é ligeiramente diferente ao mito do Azulão. Em contrapartida, Punalua lhe está associada como Danuza e Maurício do Valle no filme. A personagem de Punalua parece incarnar dois momentos diferentes do filme, com duas atrizes diferentes. Primeiramente, é Norma Bengell como líder das amazonas, que salva Juan/Rudá da queda e da decepção pela infrutífera busca pelo pássaro. Essa adaptação para o México e para os Estados Unidos foi feita em função dos contatos de Glauber Rocha com Rodolfo Echevarría, presidente do Banco Cinematográfico do México e irmão do presidente mexicano, Luís Echevarría2. O projeto não foi para a frente, e nos anos seguintes Glauber tentou arrumar produtores para fazer o filme nos Estados Unidos.

Terceiro documento: Sinopse "complô". Quarto documento: roteiro, três seqüências. Embora os documentos não estejam datados, tudo indica que eles tenham sido produzidos em torno dos anos 1975-6. O roteiro é o documento de trabalho mais completo e finalizado em torno do filme – é sabido de mais de uma fonte que nas filmagens propriamente ditas não havia roteiros circulando –, e é também a versão que mais aproxima o projeto de Terra em Transe. Nestes dois documentos, sinopse e roteiro, tudo circula pela luta pelo poder entre Brahms, "Presidente dos Estados Unidos", e outros chefes de governo e oficiais militares. Golpes se articulam, e Cristo, como Paulo Martins no filme de 1967, é ora a chance de esperança, ora joguete nas mãos dos manda-chuvas. Com um Cristo minimizado, trata-se da versão menos redentora de A Idade da Terra. Há na versão final muita coisa: Ana Maria Magalhães falando para Maurício do Valle de um novo Cristo que não deixa ninguém morrer está escrito com todas as linhas no roteiro, ou as duas cenas com Tarcísio Meira e Maurício do Valle: "Não vá ao Senado amanhã"; "Você já ouviu falar no negro Rassan?".

Quinto documento: Brainstorm sobre Idade da Terra e sua agenda no futuro imediato. Provavelmente de meados de 1976. O documento não revela muito sobre a estrutura do filme – apesar do curioso fato de que Jack Nicholson foi mencionado para atuar no filme –, mas sobre o papel que A Idade da Terra teria na edificação de um projeto consistente de editora/produtora/revista de cinema/distribuidora de filmes, "que ainda importará filmes estrangeiros" .Dois dados importantes: na segunda metade dos anos 70, Glauber Rocha não considerava nem Câncer nem História do Brasil como completos. E ainda um dos primeiros documentos de uma constante na vida de Glauber de 76 até sua morte: a intenção de organizar a obra e produzir retrospectivas em diversas partes do mundo.

Sexto documento: Sinopse final. Último documento datilografado mais assemelhado a uma sinopse, foi feito já com o filme todo rodado, já em processo de montagem. Inicialmente, a montagem seria dada em três blocos separados, na ordem Bahia/Brasília/Rio de Janeiro. É importante perceber aqui que tudo se refere aqui a cenas filmadas, que na versão final montada têm uma significação completamente diferente: a festa-procissão é montada no final do filme, a associação entre Cristo Índio e Normal Bengell e as freiras jamais é estabelecida... Ainda assim, "por trás da grande bola surge Brahms" é absolutamente fiel ao que acontece na tela. A colocação a caneta de "Jece na festa" seria uma indicação de que o bloco carioca, no final, passaria novamente à Bahia? Inicialmente, esta versão contava aproximadamente com uma duração de quatro horas e meia. Parte do que foi deixado de fora pode ser visto no filme de Roque Araújo No Tempo de Glauber Rocha

Sétimo documento: Anotação de montagem. Ordenação em blocos/rolos do material, aqui já prontamente organizado fora do registro de três blocos. Ainda não é a montagem final do filme, e algumas cenas mencionadas não estão no filme ("Pitanga encontra Gustavo num hotel em Brasília") e várias estão com outra ordem diferente à da versão final, sugerindo que trata-se ainda de uma versão de mais de três horas do filme. O documento revela uma certa independência dos rolos entre si – que bate com as falas de Glauber de que a ordem dos rolos ficaria a critério do projecionista –, mas ao mesmo tempo existe uma escolha criteriosa e muito pensada em relação à forma como cada seqüência monta com outra.

Ruy Gardnier

1. Cartas ao Mundo/Glauber Rocha, Ivana Bentes org.,
p. 466. Companhia das Letras.

2. Possivelmente o relato mais completo da experiência esteja em Glauber Rocha, esse vulcão, de João Carlos Teixeira Gomes, pp. 272-80. Ed. Nova Fronteira

Apoio:






"Jarbas Barbosa
apresenta
A Idade da Terra
de
Glauber Rocha"
(Acervo Tempo Glauber)