Ruy
Gardnier: É com impressionante interesse
que se vê uma espécie de glaubermania recente,
que não é uma mesma glaubermania que volta
a pisar nas mesmas linhas de base, nos mesmos clichês
glauberianos que geralmente trazem à tona Deus
e o Diabo e Terra em Transe. Há uma
série de longas-metragens que sempre foi muito
pouco vista e muito pouco falada, e é interessante
que hoje, até em relação a esses
filmes que são considerados mais famosos, se
tente buscar outras interpretações além
das canônicas, e é com muita felicidade
que a gente vê que debates são feitos.
Além dos extras dos DVD’s, o Philip Johnston
está fazendo um documentário sobre Di
Cavalcanti muito interessante. Há também
as restaurações dos filmes e os relançamentos
dos livros.
A partir dos documentos que encontramos sobre A Idade
da Terra, vemos que o projeto começa em 1973,
baseado na "mitologia do pássaro azul",
muda para a história de Brahms, que é
ou o presidente dos Estados Unidos ou o líder
imperialista que controla o terceiro-mundo, e uma intriga
do poder, uma intriga interna que teria vários
personagens que a gente nem vê mencionados aqui.
Alguns desapareceram completamente do filme como personagens,
mas são mencionados, como o africano Rassan,
que é mencionado pelo Tarcísio Meira.
Esses são projetos do começo da década
de 70, e ao vê-los no papel e depois ver o filme
você enxerga muito deles, mas ao mesmo tempo do
principal, que é a estrutura, eles não
têm nada. O Glauber parece ter feito uma revolução
a cada etapa da filmagem. No roteiro ele tem uma mentalidade,
na hora da filmagem ele tem uma outra idéia do
que quer e na montagem ele tem uma outra completamente
diferente. Isso especialmente, e de forma muito mais
revolucionária, em A Idade da Terra.
Joel Pizzini: Fui convidado pela Paloma Rocha
para participar desse projeto de restauração
da obra do Glauber. Isso começou também
com o trabalho que fiz com Glauces – Estudo de um
Rosto, que é um ensaio que organizei a partir
da persona da Glauce Rocha, atriz que tinha sido protagonista
do Terra em Transe. A partir dessa minha pesquisa
eu fiz um mergulho nos materiais das sobras, se é
que podem ser chamadas de sobras, o material que não
tinha sido utilizado na montagem final de Terra em
Transe. Fiquei fascinado. Na época eu já
conhecia um pouco a dona Lúcia (mãe de
Glauber), a gente fez um acordo e eu telecinei esse
material, porque realmente fiquei fascinado e profundamente
identificado com o que não entrou no filme. Todo
mundo sempre me pergunta qual minha relação
com Glauber, no meu trabalho, e eu acho que é
mais espiritual e filosófica do que qualquer
outra coisa. Mas quando eu vi as sobras do filme pensei:
"Como esse autor é maior do que o produto,
o resultado, e é sobre isso que eu quero falar".
O contracampo, o que não está no campo,
isso que é fascinante nesse material. Porque
quando a gente vai ver um filme, a gente vê um
produto, uma obra acabada. O Godard pergunta por que
uma obra como um filme tem que ter o mesmo tempo de
uma partida de futebol, uma hora e meia, a gente tem
que se emocionar num determinado horário, aí
de repente tem que ter o momento do ápice, a
conclusão, a gente é educado a ver o filme.
Eu estava vendo vocês assistindo ao A Idade
da Terra e as reações eram incríveis,
não convencionais. É ultra-fascinante
ver esse filme, ele extrapola o campo de percepção
do produto, não dá para ver esse filme
com os paradigmas do espectador que vai ver o espetáculo
mediano. Aquele contracampo do Terra em Transe
já me causou um fascínio, que era ver
como aquele filme podia tomar várias direções,
como tinha ali a possibilidade intimista que ele decidiu
não tomar no resultado final. E agora trabalhando
na pesquisa do A Idade da Terra eu percebo também
uma dimensão incrível. Há muito
filme, filmes subterrâneos que acontecem. Há
uma história muito interessante de A Idade
da Terra, e até o Hernani Heffner, que está
aqui, é o guardião desse material: existem
cerca de cem latas de sobras de A Idade da Terra,
de material não utilizado que o Hernan guarda
lá zelosamente na cinemateca do MAM. Esse material
foi salvo também pelo Roque Araújo, que
era um eterno companheiro do Glauber, que era um homem
de confiança dele, que foi motorista do Barravento,
depois eletricista dos outros filmes, assistente de
câmera... e o Glauber quando terminou o filme
confiou a ele as sobras. Tem várias versões
versões sobre isso, mas uns dizem que era para
ele fazer cortina com o material, outros dizem que era
para ele tirar a prata do filme, queimar e vender, enfim,
são várias lendas, vocês verão
depois no DVD. E aí ele resolveu fazer um filme,
aquele cara que não tinha "credenciamento
intelectual" resolve fazer um longa-metragem que
é pouquíssimo conhecido e que vai circular
depois com o relançamento do filme, isso deve
entrar no DVD. O filme traz uma grande parte do material
que não entrou, o Ricardo vai falar disso melhor,
já que é o montador, mas grande parte
do filme do Roque é o que deveria estar numa
versão inicial de 4 horas e meia. Esse material
está nesse filme chamado Tempo de Glauber
Rocha, que parece um caderno de notas do diretor,
porque ele vai comentando cada cena. Num dos comentários
ele diz pro Pitanga, naquele momento em que ele está
correndo em direção ao Palácio
da Alvorada, pra ele ir conversar com o pessoal que
está com o carro encostado na rua, porque no
cinema, em geral, a voz do ator é mais alta que
a voz do povo. Eu achei essa frase chave, fascinante,
porque esse cinema de certo modo é um exercício
tão radical de desconstrução, de
tentar equilibrar a voz do ator com a voz do povo, que
está ali o tempo todo, integrado na ação,
assistindo, interagindo. O filme é um relação
vida e arte. Uma vez eu li uma sinopse em que o Glauber
dizia: "esse é o meu retrato junto com o
retrato do país". Então são
tantos limites transpostos a cada gesto, a cada movimento,
a cada enquadramento que chega um momento em que o Glauber
não suporta e entra no filme, passa a ser o ator
do próprio filme. No filme do Roque a gente vê
isso ao extremo, o momento em que ele em primeira pessoa
passa a ser o ator. É um filme que não
cabe dentro do filme, é um filme que te tira
do filme. Eu particularmente, como cineasta, sempre
ouço essa história: "eu não
consegui entrar no filme...". Quando você
entra no filme, eu acho que é quando ele menos
me interessa. A Idade da Terra me tira o tempo
todo de dentro do filme, me leva para muitos campos,
muitas sensações, e não pode ser
visto como espetáculo realmente acabado, porque
ele não cabe nesse mercado. É um filme
que tem a ver com sonhos, com outras possibilidades
de percepção, não dá para
enquadrá-lo como produto acabado, com uma hora
e meia, para te causar catarse. É uma experiência
estética aonde você também passa
a ser ator do filme.
Ricardo Miranda: Minha experiência com
esse filme é na montagem ao lado de Carlos Cox
e Raul Soares. Eu tinha 27 anos quando o Glauber me
chamou e era uma experiência muito especial de
desconstrução da linguagem de montagem.
Eu tinha montado vários outros filmes antes e
tinha tido uma experiência já nessa área,
com o Triste Trópico, do Arthur Omar.
Já fazia parte da minha prática procurar
essa desconstrução da montagem. Eu montei
a parte do Rio de Janeiro, porque os montadores se dividiam:
Carlos Cox com a Bahia, Raul com Brasília e eu
com o Rio. Tenho uma relação muito afetiva
com o trabalho nesse filme, que foi um trabalho muito
especial, de dois anos de todas as possibilidades de
experimentação de estilo. Não é
para ter nem título nem créditos no filme:
é uma outra experiência com o cinema. A
questão da montagem nuclear na verdade era um
pouco isso: quando você não tem início
nem fim, você não tem um plano inicial,
você não tem um plano no final, não
há um significado produzido pelos planos que
começam e terminam o filme, como os filmes geralmente
têm. O filme na verdade pode ser passado em qualquer
ordem, o projecionista faz a montagem, ele que faz a
estrutura final do filme. Não é um filme
que circule por aí normalmente, e eu acho que
é uma experiência muito especial na primeira
vez em que é visto. Eu estou mais interessado
em saber aqui, na verdade, das pessoas que assistiram
ao filme pela primeira vez que tipo de experiência
foi provocada, que ondas altas atingiram. É um
filme feito em 1978-80 e é outro cinema, que
ainda está para acontecer.
J.P.: Em relação a isso, tem um
livro chamado O Leão de Veneza, que é
uma entrevista que o Glauber deu quando o filme foi
exibido no Festival de Veneza e houve uma grande polêmica,
porque o Glauber fez uma passeata denunciando as armações
dos festivais. Nessa entrevista ele falava do "cinema
espacial". A Idade da Terra representava
o cinema que queria sair da tela, tinha que ser exibido
em maracanãs eletrônicos. Um filme feito
em três moviolas, antecipando a era do avid, com
música ao vivo, porque a música era tocada
no momento da filmagem. Há muitas questões
ali sobre tentar se libertar dos limites do enquadramento,
quer dizer, é um filme que não pode ser
colocado ao lado de um filme que se propõe a
um rigor de produto, daquilo que "funciona".
As palavras de ordem do cinema da retomada, do cinema
de resultados, são essas: "o filme é
redondo, o filme funciona". Esse filme não
funciona, ele opera uma outra perturbação
e não funciona.
Ruy Gardnier: A primeira vez que vi o filme,
com total ansiedade, foi no vídeo. Mas é
uma experiência completamente diferente vê-lo
no cinema. Primeiro porque é um filme panorâmico,
em cinemascope, e o desesquadramento do cinemascope
que ele opera, sempre fugindo para os cantos, se perde
completamente na telecinagem. E, também, um outro
aspecto é a magnitude. Esse filme, muito mais
do que a maioria dos filmes da história do cinema,
é um filme para ser visto grande, porque ele
trabalha o tempo inteiro numa lógica do monumento,
de um grande monumento assincrônico, dissonante,
mas ainda assim numa idéia de grandiosidade:
os personagens falam mais olhando para cima do que olhando
para os outros personagens. Há um conflito com
o divino, por assim dizer. Da primeira vez que eu vi
o filme no cinema pareceu realmente que o que eu tinha
visto antes numa telinha de vídeo era outra coisa,
que não era A Idade da Terra, era uma
cópia xerox muito mal feita.
Ricardo Miranda: O Glauber tinha uma questão
das repetições, um estilo de montagem
que era o "toque do tamborim", que é
muito simples e ao mesmo tempo é muito complexo.
Foi surgindo essa idéia de repetir, usando todo
o material. Na verdade o material do Rio de Janeiro
é quase totalmente usado no filme, não
tem muita sobra. Tem sobra, é claro: a seqüência
do carnaval foram 3 horas de material e ficaram 10 minutos,
mas nos diálogos o material foi quase todo utilizado.
É o uso total do material, e o uso desconstruído
da fala e construído quase como um poema concreto.
Ouvindo compositores contemporâneos, como Stockhausen,
Xenakis, você também encontrar essa dimensão
de desmontagem na música. É nitidamente
o que acontece aqui, nesse vai-e-volta, nessas repetições
de diálogos e no diálogo inteiro, como
se fossem várias notas cortadas e depois uma
nota uníssona porque é o diálogo
total.
J.P.: Tem a idéia, também, do ponto
de vista da dramaturgia, da quebra de uma linearidade,
de um significado na representação. É
um hipertexto, na verdade, muito mais do que um subtexto,
pois são várias camadas.
Luiz Carlos Oliveira Jr.: Continuando nessa coisa
da repetição e retomando a idéia
dessa grandiosidade do filme, desse filme que cresce
paras as bordas e que precisa ser visto num formato
panorâmico, de que possivelmente era um filme
para ser visto no Maracanã e não numa
sala de cinema, e também na questão das
sobras do filme, como se o excesso estivesse na base
da sua construção, a sua estrutura comportando
a idéia de excesso, em suma, isso tudo nos carrega
à palavra que traduz a idéia que fica
do filme, que é uma idéia de transbordamento.
Tudo que o filme trabalha conflui para um sentimento
de que ele se auto-ultrapassa, um filme que não
cabe nos próprios limites que se impõe,
nem nos limites de duração nem nos de
enquadramento. Nesse sentido, usar o cinemascope para
quase nunca centralizar alguma coisa, ou quase nunca
conseguir filmar mais do que nacos de corpos ou pedaços
do espaço, é um procedimento fundamental
e fica claro tanto nas cenas que são montadas
com uma sucessão de vários planos pequenos
quanto nas cenas que são planos alongados, dilatados
e repetitivos, seja pelo texto ou pelo movimento que
fica ali se repetindo, ou mesmo naqueles planos em que
a câmera não acha nada em que ela consiga
fixar foco ou fixar quadro, restando essa imagem sem
perspectiva. Me parece que há um princípio
de hemorragia interna nesses planos, e no filme como
um todo. A própria idéia de História
do filme parece concebê-la como um sangramento
contínuo, e a idéia de um discurso histórico
surge justamente como a impossibilidade de uma hipostasia.
Esse filme continua, essas imagens ultrapassam a gente,
esse filme ultrapassa tudo. Ao mesmo tempo eu me perguntava,
não hoje mas na primeira vez em que assisti ao
filme, se não teria resolvido ele filmar um plano
só, filmar um único plano e esse plano
ser o filme, já que em grande medida o que está
em jogo é um desejo de síntese que o Glauber
leva aqui ao extremo. Mas hoje eu me dou conta de que
em um plano só você tira justamente a questão
do conflito entre planos, a heterogeneidade, o choque
entre imagens, você tira esse efeito dialético
e com isso você tira as próprias rupturas
que compõem a História. E esse filme jamais
poderia arrancar a História para fora dele. No
cartaz de A Idade da Terra, a maneira como o
título está escrito é com ossos:
às vezes parece também que o filme é
essa carcaça gigante, a carcaça de um
dinossauro, mas sem musculatura, desviscerada, uma coisa
muito bruta, mas que simultaneamente tem esse fluxo
que simplesmente atropela mesmo. O que me lembra um
outro filme feito um pouco antes, mas que acho que só
foi estreado depois, que é Abismu, do
Sganzerla. Sem dúvida alguma A Idade da Terra
é o filme mais sganzerliano do Glauber Rocha.
Lembra bastante também o Sem Essa Aranha,
mas mais ainda o Abismu, que é um filme
que igualmente vai lidar com essa idéia de um
grande bloco, uma grande massa, essa coisa dessa vastidão
topográfica que, no caso, o Sganzerla extrapola
para todo o continente americano. É um filme
que de certa forma vai botar um estetoscópio
para tentar descobrir "a idade da terra",
e trabalha a mesma idéia de iconicidade pura
e de inexistência de gêneros e de estruturas
narrativas fixadas, hipostasiadas, não existe
isso. É tudo uma pangéia mesmo: de territórios
e de imagens.
J.P.: É interessante que a estratégia
que o Glauber utilizou para traduzir o momento histórico
ali foi utilizar a voz do jornalista Carlos Castello
Branco que, por ter essa relação de parentesco
político, por ter sido assessor de imprensa do
Jânio Quadros e ser um liberal, um cara que tinha
espaço para se expressar, ele era quem podia
dizer com mais isenção e propriedade o
que estava acontecendo. Então na cena do depoimento
do Castello Branco é como se o filme fizesse
uma licença prosaica para dizer o que era o recado
do momento, como se fosse uma síntese política
daquele momento na voz de Carlos Castello Branco que
estava credenciado porque estava dentro do poder, em
Brasília. Ele fez uma síntese política
do momento.
RG: Sobre essa questão de personagem,
não-personagem, figura real, documento... Muito
influenciado por um artigo do Gilberto Vasconcellos,
que formalizou de uma forma bem específica algo
que eu já tinha imaginado, essa questão
do personagem que é trabalhado como ícone,
porque todo grande personagem do Glauber é um
ícone, Corisco, Sebastião, Antônio
das Mortes, todos os personagens de Terra em Transe,
todos os personagens de Câncer, são
personagens que fogem de um todo indiferenciado, que
seria a massa, e fogem pelo discurso: eles falam, e
ao falar eles constituem personagens. E quando eles
não falam, que é o caso de Deus e o
Diabo na Terra do Sol, eles terminam o filme tendo
de se afirmar autonomamente porque não têm
mais ícones aos quais se associar. Ele já
testou o deus negro, já testou o diabo louro
e não funcionou nenhum, ele termina sozinho correndo.
A Idade da Terra seria o filme que põe
tudo isso profundamente em crise, não só
porque esses personagens não têm um contorno
específico – mal ou bem eles têm nomes,
mas ao mesmo tempo eles não sabem completamente
a intriga –, mas, muito mais do que isso, porque existe
uma intriga que funciona profundamente no modo como
tudo que a gente reconhece como encenado força
o tempo todo para que a gente não pense – os
atores repetindo à exaustão as suas falas.
Só como uma nota de pé de página:
aquela cena com o Maurício do Valle e com a Ana
Maria Magalhães em que ele fala do câncer,
e ela fala que ninguém morre mais aqui, vocês
podem ver na seqüência número 9 do
roteiro mais completo, do ponto de vista do processo,
que são apenas umas dez linhas de uma seqüência
de quarenta, e são só essas dez linhas
que são repetidas à exaustão. Você
tem essa intriga dos personagens fugindo, você
tem uma luzinha, um espelhinho que está ao mesmo
tempo alterando o registro luminoso, o que incomoda
de verdade, e você tem naturalmente todo mundo
que não é personagem, e nesse sentido
acho que todo mundo naquele plano final, enquanto o
Jece Valadão se perde no meio do povo, todo mundo
é tão personagem e não-personagem
quanto Carlos Castello Branco. Todas aquelas pessoas
na Cinelândia olhando são tão personagens
quanto o Tarcísio Meira, todas aquelas crianças
em favela, naquelas vielas da Bahia, são personagens
do filme, todas aquelas pessoas que observam a Norma
Bengell com as freiras são personagens do filme.
O Glauber trabalha uma certa diferença no discurso
dele, que era um discurso de muita desesperança
política com o povo brasileiro – e se o povo
brasileiro nunca iria criar uma insurreição,
a chance de acontecer alguma coisa era uma reforma da
elite, a elite tomar o poder e re-arranjar de alguma
forma aquilo tudo, basicamente a linha mestra de Terra
em Transe, um intelectual de alguma forma tentando
convencer um chefe político a fazer a revolução
e não conseguindo. A Idade da Terra é
o primeiro filme do Glauber que não busca nenhuma
teleologia, nem no final do filme nem no horizonte.
A idéia não é mais uma autonomia
da consciência de um indivíduo (Deus
e o Diabo), não é mais a morte trágica
do poeta que tenta salvar seu país: é
o próprio fim da lógica teleológica,
ou seja, você não precisa terminar o seu
filme com um plano específico, o final do filme
é arbitrário, está na mão
do projecionista. Acaba existindo essa intriga entre
personagem e não-personagem – e como os não-personagens,
ou seja, os não-atores, se insurgem para dentro
do filme e como os próprios personagens tentam
fazer o máximo para se dissociarem do personagem,
sem haver identificação do espectador
com o personagem. É um registro não-identificatório,
você sabe quem é aquela figura mas você
não se identifica com ela, não entra na
carne dessa personagem.
Uma outra coisa é que o "mito do pássaro
azul" é um mito de eternidade. Basicamente
aquele começo do Jece Valadão quebrando
os ovos é uma encenação dessa mitologia.
O patriarca fala pro filho que ele vai ter que correr,
subir numa árvore, pegar um ovo e achar o pássaro
azul, e assim ele vai descobrir o segredo da imortalidade.
Então, como numa intriga mesmo de Odisséia,
ele chega lá e não descobre o pássaro
azul. Há uma série de peripécias
que envolvem as amazonas, e a Norma Bengell como a rainha
das amazonas. É uma relação que
envolve um pai traidor e um filho que luta contra esse
pai, e que no roteiro em que já entra Brahms
vai se dar na relação com o imperialista,
que faria um pouco essa função de pai,
e um Cristo guerrilheiro, que não está
nesse roteiro de que eu mencionei a seqüência
9, que vai lutar nessa intriga interna do poder para
o fim do imperialismo. Em alguma medida tem uma relação
com a eternidade uma vez que a história, "a
idade da terra", é uma busca pelo que é
eterno e pelo que é efêmero nessa terra.
Aquela voz off do Glauber, se pode ser sintetizada
em uma coisa – e eu acho que não dá –
é um espanto diante do quão pouco a humanidade
é ainda, o quão pouco a civilização
é ainda, daí o nome. Essa relação
com o pai, de assassinato, do filho se decepcionar com
o pai, vai se relacionar com a própria questão
do Cristo, que é o filho encarnado, ressuscitado,
não é o filho morto numa cruz, isso é
importante. Essas entrelinhas dão um pouco da
história dos roteiros, e como esses roteiros
acabam entrando aqui, e ajudam um pouco a refazer as
linhas mestras dos roteiros principais, tanto estéticos
quanto conteudistas.
Paloma Rocha: Respondendo um pouco àquela
fala do Ricardo de que o filme não deveria ter
começo nem fim, acho que o Glauber queria que
você estivesse andando lá fora, visse um
pedaço do filme, uma seqüência do
filme e continuasse andando e esse filme tivesse uma
relação direta que te desse mais liberdade.
Liberdade para sair dos nossos esquematismos intelectuais.
E com isso essa mesma liberdade dos personagens ali
misturados com o povo passaria para nós espectadores,
que teríamos a liberdade de entrar e sair dentro
de um filme. A poesia do filme é ali, naquele
momento de êxtase com as freiras depois sendo
cortado pelo trator, um corte seco e vem um trator com
um operário, quebrando pedras. Poderíamos
entrar e sair de um cinema, talvez sem ter nem mesmo
que pagar um ingresso. Acho que a coisa que o Glauber
falava do "cinema espacial" não é
do ponto de vista formal, mas de uma integração
maior do ser com o feito cinematográfico, com
o cinema e seu autor. Como o Ruy falou, é um
grande monumento e por dentro são articulações
tão esgarçadas. Talvez a gente pudesse
ter uma relação melhor com a nossa própria
arte, nossa própria produção intelectual,
nossa própria produção artística,
ter a noção de que há muitas estruturas
possíveis. O Glauber toma atalhos na montagem,
ele corta o filme por dentro para chegar onde precisa,
para chegar no tempo dele, para chegar nessa liberdade.
J.P: A linguagem para o Glauber era um personagem,
ele não dissociava a ética da estética.
A banda sonora de Terra em Transe, por exemplo,
é totalmente irrealista, ele próprio foi
fazer a mixagem do filme e misturou som de metralhadoras
com Villa-Lobos e compôs coisas com bateria para
destilar justamente essa camada realista que faz às
vezes a gente se prender tanto ao tema. Nós vivemos
hoje sob a ditadura do tema, as pessoas têm um
tendência a analisar pelo tema, e o próprio
Glauber responde a isso dizendo que mais importante
que o tema é o método. No Rocha que
Voa tem um momento em que ele diz: "Eu não
sei fazer documentário, por isso optei pela ficção".
Ele faz ficção, faz espetáculos,
óperas, faz arte. Vou citar novamente o Godard
para distinguir o que é arte de cultura. Documentário
tradicional está mais ligado à cultura,
tem um importância cultural, e como diz o Godard:
"a cultura é a regra, a arte a exceção".
Ficção com regra não interessava
muito ao Glauber. E no A Idade da Terra ele vai
para o "desespero lisérgico", ele radicaliza.
Nas pesquisas a gente descobriu que na versão
de 4 horas e meia, pelos depoimentos dos atores, membros
da equipe e algumas pessoas, a exemplo do Hernani, os
estados – Rio, Bahia e Brasília – estavam montados
de forma separada. Então eu pergunto: será
que hoje a gente não podia fazer uma exibição
das 4 horas e meia do filme como se fosse uma instalação,
em três telas simultâneas cada uma com um
estado?
R.M.: É até possível remontar,
de certa forma, essas quatro horas. Eu não me
lembro de, nessa versão de quatro horas, os estados
estarem separados. Para mim eles eram muito mais separados,
mas algumas seqüências eram misturadas, seqüências-chave
como o carnaval, Brasília, se misturavam num
portal. Bahia era o mito, Brasília o poder e
chegando no Rio você tinha a solução
de encaixe.
J.P.: No Festival de Bobigny deste ano, na França,
teve uma retrospectiva integral do Glauber, e lá
eu lancei uma pergunta pra Sylvie Pierre sobre a estética
da fome ter sido muito mais absorvida no Brasil do que
a estética do sonho, e ela disse que na Europa
é a mesma coisa, existe uma tendência a
querer sempre o Glauber do Deus e o Diabo, há
uma resistência ao sonho, como se não tivéssemos
direito ao sonho. "O sonho é um privilégio
do velho mundo", é um pouco essa lógica.
R.G.: A estética da fome dá para
filtrar pela sociologia, o sonho não dá,
e aí os intelectuais ficam com um certo problema.
R.M.: O sonho dá para filtrar pela psicanálise...
R.G.: Mas a psicanálise sempre filtra
mal, por sorte nossa. (risos) Ainda sobre a questão
do povo, existem duas formas complementares de responder
a isso. Uma é você dizer que à medida
que você coloca uma pessoa do povo para falar
ela deixa de ser o povo, ela vira um indivíduo
que está falando. Não existe representante
do povo, e toda uma linhagem de ficção
engajada, que também existe no Brasil via CPC
e tal, e existe hoje via cineastas que a gente sabe
quais são, tenta criar uma tipologia de classe
social. Quando você cria um representante do povo,
você acaba fugindo dessa idéia porque o
povo não pode ser representado por um personagem,
e ao mesmo tempo o povo é um fantasma. Um fantasma
alemão. De alguma forma o Glauber não
tinha a menor razão para botar um ator do povo,
um ator não-profissional para fazer o povo no
Terra em Transe, mesmo porque a lógica
do filme reside numa profunda decepção
com um povo que não se movimenta para assumir
seu papel na consciência histórica do país.
Em cartas ele mesmo fala que as classes operárias,
camponesas, os pobres – muito mais interessantes falar
"os pobres" do que falar "o povo"
– não tiveram uma educação e não
tiveram tudo aquilo que aconteceu no operariado inglês,
no operariado europeu, tudo aquilo que fez com que eles
tivessem uma participação diferente na
história do século XX. Mas em todo caso
a leitura que o Glauber faz no Terra em Transe
dos pobres é de um grande bolsão de inércia,
o que já é diferente aqui mesmo porque
o que ele está buscando já não
é revolução. A segunda maneira
de responder é que de Deus e o Diabo em
diante o que o Glauber quer não é criar
uma mensagem sobre como funcionará o futuro do
país. Talvez ele até queira compreender
um pouco melhor o país, fazer o espectador compreender,
mas não no sentido da mensagem, não no
sentido daquilo que ele tem a dizer. É naquilo
que ele tem a exprimir, o que ele quer fazer é
transmitir um sentimento do país, e um sentimento
muito específico: ele quer purgar todo um sentimento
de excesso que ele tem a partir daquilo que ele recebe
do país. Uma coisa notória, que se repete
bastante é que em diversos dias durante o A
Idade da Terra ele acordava cedo, ia ao jornaleiro,
comprava todos os jornais do dia, ficava duas horas
circulando a cidade de carro, lendo todos os jornais,
depois parava, virava pro motorista e falava: "Agora
vamos pegar todos os atores que a gente já pode
filmar". E filmava a partir do transe que era estar
imerso em todas aquelas notícias. É uma
história que exprime muito aquilo que ele quer:
transmitir um sentimento de país, um sentimento
excessivo, um sentimento brutal, e um certo romantismo
nessa brutalidade. Uma vez que você sintoniza
com esse romantismo você consegue entrar completamente,
e a fundo, nessa beleza do filme do Glauber.
L.C.O.Jr: E esse sentimento de nação
em A Idade da Terra só cresce, só
se torna inextenso, indeterminado. Se você pegar
a própria trilogia mítica do cinema novo,
a trilogia da seca, que seria Vidas Secas, Os
Fuzis e Deus e o Diabo na Terra do Sol, o
regime espacial dos filmes é de condensar, de
pegar aquele recorte, o sertão, e ali inserir
uma espécie de amalgamação do país.
Comparando com Terra em Transe, que tem lá
aquele país imaginário, alegórica
e metonimicamente falando do Brasil, o momento de expansão
em A Idade da Terra se configura dentro de uma
lógica que o Ismail Xavier até comenta
naquele livro O Cinema Brasileiro Moderno: nesse
momento o cinema brasileiro está buscando uma
expansão territorial, e há filmes como
Aopção, do Candeias, que vara as estradas
do país, e Iracema, do Bodansky e do Orlando
Senna, justamente mostrando a construção
da transamazônica, essa idéia de cortar
um Brasil que ainda está para ser descoberto.
A Idade da Terra está também participando
mais ou menos disso, precisando se espalhar pelo território,
se espalhar por pelo menos três segmentos fortes
do país para poder dar conta dessa coisa que
é maior, que é sempre maior do que aquilo
com que estávamos acostumados. Da mesma forma,
há a idéia também de fazer um filme
que vai para as ruas, que fica se imiscuindo, se perdendo
no meio de manifestações que estão
acontecendo nas ruas, tentando falar de tudo que está
acontecendo ao mesmo tempo. Esse aspecto de um filme
que tem uma estrutura musical, que parece um musical
na maneira como o Glauber Rocha o conceberia, isso lembra
muito o Claro.
J.P.: O grande esforço hoje é revitalizar
o Glauber enquanto pensamento. Na minha opinião
de cineasta, eu acho que o Glauber é um farol
e um fantasma, e aí é uma escolha pessoal:
olhar para o farol ou olhar para o fantasma. Existe
uma tendência mitificadora, folclorizante, e é
preciso tomar cuidado. Mas a obra dele é completamente
aberta. Algumas pessoas ficam desesperadas de não
entender o filme e passam a querer exclui-lo, mas não
podem excluir porque é mito, ou seja, pegaria
mal... Então ele é uma figura incômoda,
perturbadora, e deve ser assim. Meu interesse nele é
filosófico. É igual ao Godard: você
não precisa sair fazendo filmes como o Godard,
mas ele é um dos maiores pensadores da imagem,
do audiovisual, um filósofo. O Glauber está
muito mal digerido porque é pouco visto, é
folclorizado antes de ser visto.
R.G.: Você está imbuído da
mitologia antes de ver o filme, e quando vê, ao
invés de se abrir, você tenta jogar essa
mitologia dentro do filme. É realmente como nessa
idéia do farol e do fantasma. O que o grande
artista consegue fazer é tornar-se único,
então a obra de Glauber não serve como
modelo. Se ainda fosse o caso de um cineasta que pegou
um estilo único e levou até uma certa
exaustão – podemos pensar no Yasujiro Ozu, no
Jean Renoir... Mas no caso do Glauber ele já
joga para uma diversidade e para uma reconstrução
da sua forma a cada filme.
A Idade da Terra é um filme que, muito
mais do que outros, vai voltar seguidamente. É
a coisa do monumento – uma estátua, um painel,
um afresco – que tende à grandeza e à
eternização. E se é uma película,
que se projeta a 1/24 de segundo, ela vai se eternizar
onde pode, que é na nossa cabeça. É
uma espécie de poder que A Idade da Terra
tem.
Debate realizado em 27/07/2005, após a projeção
de A Idade da Terra na Sessão Cineclube no Odeon).
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