DEBATE SOBRE A IDADE DA TERRA
Com Ricardo Miranda, Joel Pizzini, Paloma Rocha, Luiz Carlos Oliveira Jr. e Ruy Gardnier.

Ruy Gardnier: É com impressionante interesse que se vê uma espécie de glaubermania recente, que não é uma mesma glaubermania que volta a pisar nas mesmas linhas de base, nos mesmos clichês glauberianos que geralmente trazem à tona Deus e o Diabo e Terra em Transe. Há uma série de longas-metragens que sempre foi muito pouco vista e muito pouco falada, e é interessante que hoje, até em relação a esses filmes que são considerados mais famosos, se tente buscar outras interpretações além das canônicas, e é com muita felicidade que a gente vê que debates são feitos. Além dos extras dos DVD’s, o Philip Johnston está fazendo um documentário sobre Di Cavalcanti muito interessante. Há também as restaurações dos filmes e os relançamentos dos livros.

A partir dos documentos que encontramos sobre A Idade da Terra, vemos que o projeto começa em 1973, baseado na "mitologia do pássaro azul", muda para a história de Brahms, que é ou o presidente dos Estados Unidos ou o líder imperialista que controla o terceiro-mundo, e uma intriga do poder, uma intriga interna que teria vários personagens que a gente nem vê mencionados aqui. Alguns desapareceram completamente do filme como personagens, mas são mencionados, como o africano Rassan, que é mencionado pelo Tarcísio Meira. Esses são projetos do começo da década de 70, e ao vê-los no papel e depois ver o filme você enxerga muito deles, mas ao mesmo tempo do principal, que é a estrutura, eles não têm nada. O Glauber parece ter feito uma revolução a cada etapa da filmagem. No roteiro ele tem uma mentalidade, na hora da filmagem ele tem uma outra idéia do que quer e na montagem ele tem uma outra completamente diferente. Isso especialmente, e de forma muito mais revolucionária, em A Idade da Terra.

Joel Pizzini: Fui convidado pela Paloma Rocha para participar desse projeto de restauração da obra do Glauber. Isso começou também com o trabalho que fiz com Glauces – Estudo de um Rosto, que é um ensaio que organizei a partir da persona da Glauce Rocha, atriz que tinha sido protagonista do Terra em Transe. A partir dessa minha pesquisa eu fiz um mergulho nos materiais das sobras, se é que podem ser chamadas de sobras, o material que não tinha sido utilizado na montagem final de Terra em Transe. Fiquei fascinado. Na época eu já conhecia um pouco a dona Lúcia (mãe de Glauber), a gente fez um acordo e eu telecinei esse material, porque realmente fiquei fascinado e profundamente identificado com o que não entrou no filme. Todo mundo sempre me pergunta qual minha relação com Glauber, no meu trabalho, e eu acho que é mais espiritual e filosófica do que qualquer outra coisa. Mas quando eu vi as sobras do filme pensei: "Como esse autor é maior do que o produto, o resultado, e é sobre isso que eu quero falar". O contracampo, o que não está no campo, isso que é fascinante nesse material. Porque quando a gente vai ver um filme, a gente vê um produto, uma obra acabada. O Godard pergunta por que uma obra como um filme tem que ter o mesmo tempo de uma partida de futebol, uma hora e meia, a gente tem que se emocionar num determinado horário, aí de repente tem que ter o momento do ápice, a conclusão, a gente é educado a ver o filme. Eu estava vendo vocês assistindo ao A Idade da Terra e as reações eram incríveis, não convencionais. É ultra-fascinante ver esse filme, ele extrapola o campo de percepção do produto, não dá para ver esse filme com os paradigmas do espectador que vai ver o espetáculo mediano. Aquele contracampo do Terra em Transe já me causou um fascínio, que era ver como aquele filme podia tomar várias direções, como tinha ali a possibilidade intimista que ele decidiu não tomar no resultado final. E agora trabalhando na pesquisa do A Idade da Terra eu percebo também uma dimensão incrível. Há muito filme, filmes subterrâneos que acontecem. Há uma história muito interessante de A Idade da Terra, e até o Hernani Heffner, que está aqui, é o guardião desse material: existem cerca de cem latas de sobras de A Idade da Terra, de material não utilizado que o Hernan guarda lá zelosamente na cinemateca do MAM. Esse material foi salvo também pelo Roque Araújo, que era um eterno companheiro do Glauber, que era um homem de confiança dele, que foi motorista do Barravento, depois eletricista dos outros filmes, assistente de câmera... e o Glauber quando terminou o filme confiou a ele as sobras. Tem várias versões versões sobre isso, mas uns dizem que era para ele fazer cortina com o material, outros dizem que era para ele tirar a prata do filme, queimar e vender, enfim, são várias lendas, vocês verão depois no DVD. E aí ele resolveu fazer um filme, aquele cara que não tinha "credenciamento intelectual" resolve fazer um longa-metragem que é pouquíssimo conhecido e que vai circular depois com o relançamento do filme, isso deve entrar no DVD. O filme traz uma grande parte do material que não entrou, o Ricardo vai falar disso melhor, já que é o montador, mas grande parte do filme do Roque é o que deveria estar numa versão inicial de 4 horas e meia. Esse material está nesse filme chamado Tempo de Glauber Rocha, que parece um caderno de notas do diretor, porque ele vai comentando cada cena. Num dos comentários ele diz pro Pitanga, naquele momento em que ele está correndo em direção ao Palácio da Alvorada, pra ele ir conversar com o pessoal que está com o carro encostado na rua, porque no cinema, em geral, a voz do ator é mais alta que a voz do povo. Eu achei essa frase chave, fascinante, porque esse cinema de certo modo é um exercício tão radical de desconstrução, de tentar equilibrar a voz do ator com a voz do povo, que está ali o tempo todo, integrado na ação, assistindo, interagindo. O filme é um relação vida e arte. Uma vez eu li uma sinopse em que o Glauber dizia: "esse é o meu retrato junto com o retrato do país". Então são tantos limites transpostos a cada gesto, a cada movimento, a cada enquadramento que chega um momento em que o Glauber não suporta e entra no filme, passa a ser o ator do próprio filme. No filme do Roque a gente vê isso ao extremo, o momento em que ele em primeira pessoa passa a ser o ator. É um filme que não cabe dentro do filme, é um filme que te tira do filme. Eu particularmente, como cineasta, sempre ouço essa história: "eu não consegui entrar no filme...". Quando você entra no filme, eu acho que é quando ele menos me interessa. A Idade da Terra me tira o tempo todo de dentro do filme, me leva para muitos campos, muitas sensações, e não pode ser visto como espetáculo realmente acabado, porque ele não cabe nesse mercado. É um filme que tem a ver com sonhos, com outras possibilidades de percepção, não dá para enquadrá-lo como produto acabado, com uma hora e meia, para te causar catarse. É uma experiência estética aonde você também passa a ser ator do filme.

Ricardo Miranda: Minha experiência com esse filme é na montagem ao lado de Carlos Cox e Raul Soares. Eu tinha 27 anos quando o Glauber me chamou e era uma experiência muito especial de desconstrução da linguagem de montagem. Eu tinha montado vários outros filmes antes e tinha tido uma experiência já nessa área, com o Triste Trópico, do Arthur Omar. Já fazia parte da minha prática procurar essa desconstrução da montagem. Eu montei a parte do Rio de Janeiro, porque os montadores se dividiam: Carlos Cox com a Bahia, Raul com Brasília e eu com o Rio. Tenho uma relação muito afetiva com o trabalho nesse filme, que foi um trabalho muito especial, de dois anos de todas as possibilidades de experimentação de estilo. Não é para ter nem título nem créditos no filme: é uma outra experiência com o cinema. A questão da montagem nuclear na verdade era um pouco isso: quando você não tem início nem fim, você não tem um plano inicial, você não tem um plano no final, não há um significado produzido pelos planos que começam e terminam o filme, como os filmes geralmente têm. O filme na verdade pode ser passado em qualquer ordem, o projecionista faz a montagem, ele que faz a estrutura final do filme. Não é um filme que circule por aí normalmente, e eu acho que é uma experiência muito especial na primeira vez em que é visto. Eu estou mais interessado em saber aqui, na verdade, das pessoas que assistiram ao filme pela primeira vez que tipo de experiência foi provocada, que ondas altas atingiram. É um filme feito em 1978-80 e é outro cinema, que ainda está para acontecer.

J.P.: Em relação a isso, tem um livro chamado O Leão de Veneza, que é uma entrevista que o Glauber deu quando o filme foi exibido no Festival de Veneza e houve uma grande polêmica, porque o Glauber fez uma passeata denunciando as armações dos festivais. Nessa entrevista ele falava do "cinema espacial". A Idade da Terra representava o cinema que queria sair da tela, tinha que ser exibido em maracanãs eletrônicos. Um filme feito em três moviolas, antecipando a era do avid, com música ao vivo, porque a música era tocada no momento da filmagem. Há muitas questões ali sobre tentar se libertar dos limites do enquadramento, quer dizer, é um filme que não pode ser colocado ao lado de um filme que se propõe a um rigor de produto, daquilo que "funciona". As palavras de ordem do cinema da retomada, do cinema de resultados, são essas: "o filme é redondo, o filme funciona". Esse filme não funciona, ele opera uma outra perturbação e não funciona.

Ruy Gardnier: A primeira vez que vi o filme, com total ansiedade, foi no vídeo. Mas é uma experiência completamente diferente vê-lo no cinema. Primeiro porque é um filme panorâmico, em cinemascope, e o desesquadramento do cinemascope que ele opera, sempre fugindo para os cantos, se perde completamente na telecinagem. E, também, um outro aspecto é a magnitude. Esse filme, muito mais do que a maioria dos filmes da história do cinema, é um filme para ser visto grande, porque ele trabalha o tempo inteiro numa lógica do monumento, de um grande monumento assincrônico, dissonante, mas ainda assim numa idéia de grandiosidade: os personagens falam mais olhando para cima do que olhando para os outros personagens. Há um conflito com o divino, por assim dizer. Da primeira vez que eu vi o filme no cinema pareceu realmente que o que eu tinha visto antes numa telinha de vídeo era outra coisa, que não era A Idade da Terra, era uma cópia xerox muito mal feita.

Ricardo Miranda: O Glauber tinha uma questão das repetições, um estilo de montagem que era o "toque do tamborim", que é muito simples e ao mesmo tempo é muito complexo. Foi surgindo essa idéia de repetir, usando todo o material. Na verdade o material do Rio de Janeiro é quase totalmente usado no filme, não tem muita sobra. Tem sobra, é claro: a seqüência do carnaval foram 3 horas de material e ficaram 10 minutos, mas nos diálogos o material foi quase todo utilizado. É o uso total do material, e o uso desconstruído da fala e construído quase como um poema concreto. Ouvindo compositores contemporâneos, como Stockhausen, Xenakis, você também encontrar essa dimensão de desmontagem na música. É nitidamente o que acontece aqui, nesse vai-e-volta, nessas repetições de diálogos e no diálogo inteiro, como se fossem várias notas cortadas e depois uma nota uníssona porque é o diálogo total.



J.P.: Tem a idéia, também, do ponto de vista da dramaturgia, da quebra de uma linearidade, de um significado na representação. É um hipertexto, na verdade, muito mais do que um subtexto, pois são várias camadas.

Luiz Carlos Oliveira Jr.: Continuando nessa coisa da repetição e retomando a idéia dessa grandiosidade do filme, desse filme que cresce paras as bordas e que precisa ser visto num formato panorâmico, de que possivelmente era um filme para ser visto no Maracanã e não numa sala de cinema, e também na questão das sobras do filme, como se o excesso estivesse na base da sua construção, a sua estrutura comportando a idéia de excesso, em suma, isso tudo nos carrega à palavra que traduz a idéia que fica do filme, que é uma idéia de transbordamento. Tudo que o filme trabalha conflui para um sentimento de que ele se auto-ultrapassa, um filme que não cabe nos próprios limites que se impõe, nem nos limites de duração nem nos de enquadramento. Nesse sentido, usar o cinemascope para quase nunca centralizar alguma coisa, ou quase nunca conseguir filmar mais do que nacos de corpos ou pedaços do espaço, é um procedimento fundamental e fica claro tanto nas cenas que são montadas com uma sucessão de vários planos pequenos quanto nas cenas que são planos alongados, dilatados e repetitivos, seja pelo texto ou pelo movimento que fica ali se repetindo, ou mesmo naqueles planos em que a câmera não acha nada em que ela consiga fixar foco ou fixar quadro, restando essa imagem sem perspectiva. Me parece que há um princípio de hemorragia interna nesses planos, e no filme como um todo. A própria idéia de História do filme parece concebê-la como um sangramento contínuo, e a idéia de um discurso histórico surge justamente como a impossibilidade de uma hipostasia. Esse filme continua, essas imagens ultrapassam a gente, esse filme ultrapassa tudo. Ao mesmo tempo eu me perguntava, não hoje mas na primeira vez em que assisti ao filme, se não teria resolvido ele filmar um plano só, filmar um único plano e esse plano ser o filme, já que em grande medida o que está em jogo é um desejo de síntese que o Glauber leva aqui ao extremo. Mas hoje eu me dou conta de que em um plano só você tira justamente a questão do conflito entre planos, a heterogeneidade, o choque entre imagens, você tira esse efeito dialético e com isso você tira as próprias rupturas que compõem a História. E esse filme jamais poderia arrancar a História para fora dele. No cartaz de A Idade da Terra, a maneira como o título está escrito é com ossos: às vezes parece também que o filme é essa carcaça gigante, a carcaça de um dinossauro, mas sem musculatura, desviscerada, uma coisa muito bruta, mas que simultaneamente tem esse fluxo que simplesmente atropela mesmo. O que me lembra um outro filme feito um pouco antes, mas que acho que só foi estreado depois, que é Abismu, do Sganzerla. Sem dúvida alguma A Idade da Terra é o filme mais sganzerliano do Glauber Rocha. Lembra bastante também o Sem Essa Aranha, mas mais ainda o Abismu, que é um filme que igualmente vai lidar com essa idéia de um grande bloco, uma grande massa, essa coisa dessa vastidão topográfica que, no caso, o Sganzerla extrapola para todo o continente americano. É um filme que de certa forma vai botar um estetoscópio para tentar descobrir "a idade da terra", e trabalha a mesma idéia de iconicidade pura e de inexistência de gêneros e de estruturas narrativas fixadas, hipostasiadas, não existe isso. É tudo uma pangéia mesmo: de territórios e de imagens.

J.P.: É interessante que a estratégia que o Glauber utilizou para traduzir o momento histórico ali foi utilizar a voz do jornalista Carlos Castello Branco que, por ter essa relação de parentesco político, por ter sido assessor de imprensa do Jânio Quadros e ser um liberal, um cara que tinha espaço para se expressar, ele era quem podia dizer com mais isenção e propriedade o que estava acontecendo. Então na cena do depoimento do Castello Branco é como se o filme fizesse uma licença prosaica para dizer o que era o recado do momento, como se fosse uma síntese política daquele momento na voz de Carlos Castello Branco que estava credenciado porque estava dentro do poder, em Brasília. Ele fez uma síntese política do momento.

RG: Sobre essa questão de personagem, não-personagem, figura real, documento... Muito influenciado por um artigo do Gilberto Vasconcellos, que formalizou de uma forma bem específica algo que eu já tinha imaginado, essa questão do personagem que é trabalhado como ícone, porque todo grande personagem do Glauber é um ícone, Corisco, Sebastião, Antônio das Mortes, todos os personagens de Terra em Transe, todos os personagens de Câncer, são personagens que fogem de um todo indiferenciado, que seria a massa, e fogem pelo discurso: eles falam, e ao falar eles constituem personagens. E quando eles não falam, que é o caso de Deus e o Diabo na Terra do Sol, eles terminam o filme tendo de se afirmar autonomamente porque não têm mais ícones aos quais se associar. Ele já testou o deus negro, já testou o diabo louro e não funcionou nenhum, ele termina sozinho correndo. A Idade da Terra seria o filme que põe tudo isso profundamente em crise, não só porque esses personagens não têm um contorno específico – mal ou bem eles têm nomes, mas ao mesmo tempo eles não sabem completamente a intriga –, mas, muito mais do que isso, porque existe uma intriga que funciona profundamente no modo como tudo que a gente reconhece como encenado força o tempo todo para que a gente não pense – os atores repetindo à exaustão as suas falas. Só como uma nota de pé de página: aquela cena com o Maurício do Valle e com a Ana Maria Magalhães em que ele fala do câncer, e ela fala que ninguém morre mais aqui, vocês podem ver na seqüência número 9 do roteiro mais completo, do ponto de vista do processo, que são apenas umas dez linhas de uma seqüência de quarenta, e são só essas dez linhas que são repetidas à exaustão. Você tem essa intriga dos personagens fugindo, você tem uma luzinha, um espelhinho que está ao mesmo tempo alterando o registro luminoso, o que incomoda de verdade, e você tem naturalmente todo mundo que não é personagem, e nesse sentido acho que todo mundo naquele plano final, enquanto o Jece Valadão se perde no meio do povo, todo mundo é tão personagem e não-personagem quanto Carlos Castello Branco. Todas aquelas pessoas na Cinelândia olhando são tão personagens quanto o Tarcísio Meira, todas aquelas crianças em favela, naquelas vielas da Bahia, são personagens do filme, todas aquelas pessoas que observam a Norma Bengell com as freiras são personagens do filme. O Glauber trabalha uma certa diferença no discurso dele, que era um discurso de muita desesperança política com o povo brasileiro – e se o povo brasileiro nunca iria criar uma insurreição, a chance de acontecer alguma coisa era uma reforma da elite, a elite tomar o poder e re-arranjar de alguma forma aquilo tudo, basicamente a linha mestra de Terra em Transe, um intelectual de alguma forma tentando convencer um chefe político a fazer a revolução e não conseguindo. A Idade da Terra é o primeiro filme do Glauber que não busca nenhuma teleologia, nem no final do filme nem no horizonte. A idéia não é mais uma autonomia da consciência de um indivíduo (Deus e o Diabo), não é mais a morte trágica do poeta que tenta salvar seu país: é o próprio fim da lógica teleológica, ou seja, você não precisa terminar o seu filme com um plano específico, o final do filme é arbitrário, está na mão do projecionista. Acaba existindo essa intriga entre personagem e não-personagem – e como os não-personagens, ou seja, os não-atores, se insurgem para dentro do filme e como os próprios personagens tentam fazer o máximo para se dissociarem do personagem, sem haver identificação do espectador com o personagem. É um registro não-identificatório, você sabe quem é aquela figura mas você não se identifica com ela, não entra na carne dessa personagem.

Uma outra coisa é que o "mito do pássaro azul" é um mito de eternidade. Basicamente aquele começo do Jece Valadão quebrando os ovos é uma encenação dessa mitologia. O patriarca fala pro filho que ele vai ter que correr, subir numa árvore, pegar um ovo e achar o pássaro azul, e assim ele vai descobrir o segredo da imortalidade. Então, como numa intriga mesmo de Odisséia, ele chega lá e não descobre o pássaro azul. Há uma série de peripécias que envolvem as amazonas, e a Norma Bengell como a rainha das amazonas. É uma relação que envolve um pai traidor e um filho que luta contra esse pai, e que no roteiro em que já entra Brahms vai se dar na relação com o imperialista, que faria um pouco essa função de pai, e um Cristo guerrilheiro, que não está nesse roteiro de que eu mencionei a seqüência 9, que vai lutar nessa intriga interna do poder para o fim do imperialismo. Em alguma medida tem uma relação com a eternidade uma vez que a história, "a idade da terra", é uma busca pelo que é eterno e pelo que é efêmero nessa terra. Aquela voz off do Glauber, se pode ser sintetizada em uma coisa – e eu acho que não dá – é um espanto diante do quão pouco a humanidade é ainda, o quão pouco a civilização é ainda, daí o nome. Essa relação com o pai, de assassinato, do filho se decepcionar com o pai, vai se relacionar com a própria questão do Cristo, que é o filho encarnado, ressuscitado, não é o filho morto numa cruz, isso é importante. Essas entrelinhas dão um pouco da história dos roteiros, e como esses roteiros acabam entrando aqui, e ajudam um pouco a refazer as linhas mestras dos roteiros principais, tanto estéticos quanto conteudistas.

Paloma Rocha: Respondendo um pouco àquela fala do Ricardo de que o filme não deveria ter começo nem fim, acho que o Glauber queria que você estivesse andando lá fora, visse um pedaço do filme, uma seqüência do filme e continuasse andando e esse filme tivesse uma relação direta que te desse mais liberdade. Liberdade para sair dos nossos esquematismos intelectuais. E com isso essa mesma liberdade dos personagens ali misturados com o povo passaria para nós espectadores, que teríamos a liberdade de entrar e sair dentro de um filme. A poesia do filme é ali, naquele momento de êxtase com as freiras depois sendo cortado pelo trator, um corte seco e vem um trator com um operário, quebrando pedras. Poderíamos entrar e sair de um cinema, talvez sem ter nem mesmo que pagar um ingresso. Acho que a coisa que o Glauber falava do "cinema espacial" não é do ponto de vista formal, mas de uma integração maior do ser com o feito cinematográfico, com o cinema e seu autor. Como o Ruy falou, é um grande monumento e por dentro são articulações tão esgarçadas. Talvez a gente pudesse ter uma relação melhor com a nossa própria arte, nossa própria produção intelectual, nossa própria produção artística, ter a noção de que há muitas estruturas possíveis. O Glauber toma atalhos na montagem, ele corta o filme por dentro para chegar onde precisa, para chegar no tempo dele, para chegar nessa liberdade.

J.P: A linguagem para o Glauber era um personagem, ele não dissociava a ética da estética. A banda sonora de Terra em Transe, por exemplo, é totalmente irrealista, ele próprio foi fazer a mixagem do filme e misturou som de metralhadoras com Villa-Lobos e compôs coisas com bateria para destilar justamente essa camada realista que faz às vezes a gente se prender tanto ao tema. Nós vivemos hoje sob a ditadura do tema, as pessoas têm um tendência a analisar pelo tema, e o próprio Glauber responde a isso dizendo que mais importante que o tema é o método. No Rocha que Voa tem um momento em que ele diz: "Eu não sei fazer documentário, por isso optei pela ficção". Ele faz ficção, faz espetáculos, óperas, faz arte. Vou citar novamente o Godard para distinguir o que é arte de cultura. Documentário tradicional está mais ligado à cultura, tem um importância cultural, e como diz o Godard: "a cultura é a regra, a arte a exceção". Ficção com regra não interessava muito ao Glauber. E no A Idade da Terra ele vai para o "desespero lisérgico", ele radicaliza. Nas pesquisas a gente descobriu que na versão de 4 horas e meia, pelos depoimentos dos atores, membros da equipe e algumas pessoas, a exemplo do Hernani, os estados – Rio, Bahia e Brasília – estavam montados de forma separada. Então eu pergunto: será que hoje a gente não podia fazer uma exibição das 4 horas e meia do filme como se fosse uma instalação, em três telas simultâneas cada uma com um estado?

R.M.: É até possível remontar, de certa forma, essas quatro horas. Eu não me lembro de, nessa versão de quatro horas, os estados estarem separados. Para mim eles eram muito mais separados, mas algumas seqüências eram misturadas, seqüências-chave como o carnaval, Brasília, se misturavam num portal. Bahia era o mito, Brasília o poder e chegando no Rio você tinha a solução de encaixe.

J.P.: No Festival de Bobigny deste ano, na França, teve uma retrospectiva integral do Glauber, e lá eu lancei uma pergunta pra Sylvie Pierre sobre a estética da fome ter sido muito mais absorvida no Brasil do que a estética do sonho, e ela disse que na Europa é a mesma coisa, existe uma tendência a querer sempre o Glauber do Deus e o Diabo, há uma resistência ao sonho, como se não tivéssemos direito ao sonho. "O sonho é um privilégio do velho mundo", é um pouco essa lógica.

R.G.: A estética da fome dá para filtrar pela sociologia, o sonho não dá, e aí os intelectuais ficam com um certo problema.

R.M.: O sonho dá para filtrar pela psicanálise...

R.G.: Mas a psicanálise sempre filtra mal, por sorte nossa. (risos) Ainda sobre a questão do povo, existem duas formas complementares de responder a isso. Uma é você dizer que à medida que você coloca uma pessoa do povo para falar ela deixa de ser o povo, ela vira um indivíduo que está falando. Não existe representante do povo, e toda uma linhagem de ficção engajada, que também existe no Brasil via CPC e tal, e existe hoje via cineastas que a gente sabe quais são, tenta criar uma tipologia de classe social. Quando você cria um representante do povo, você acaba fugindo dessa idéia porque o povo não pode ser representado por um personagem, e ao mesmo tempo o povo é um fantasma. Um fantasma alemão. De alguma forma o Glauber não tinha a menor razão para botar um ator do povo, um ator não-profissional para fazer o povo no Terra em Transe, mesmo porque a lógica do filme reside numa profunda decepção com um povo que não se movimenta para assumir seu papel na consciência histórica do país. Em cartas ele mesmo fala que as classes operárias, camponesas, os pobres – muito mais interessantes falar "os pobres" do que falar "o povo" – não tiveram uma educação e não tiveram tudo aquilo que aconteceu no operariado inglês, no operariado europeu, tudo aquilo que fez com que eles tivessem uma participação diferente na história do século XX. Mas em todo caso a leitura que o Glauber faz no Terra em Transe dos pobres é de um grande bolsão de inércia, o que já é diferente aqui mesmo porque o que ele está buscando já não é revolução. A segunda maneira de responder é que de Deus e o Diabo em diante o que o Glauber quer não é criar uma mensagem sobre como funcionará o futuro do país. Talvez ele até queira compreender um pouco melhor o país, fazer o espectador compreender, mas não no sentido da mensagem, não no sentido daquilo que ele tem a dizer. É naquilo que ele tem a exprimir, o que ele quer fazer é transmitir um sentimento do país, e um sentimento muito específico: ele quer purgar todo um sentimento de excesso que ele tem a partir daquilo que ele recebe do país. Uma coisa notória, que se repete bastante é que em diversos dias durante o A Idade da Terra ele acordava cedo, ia ao jornaleiro, comprava todos os jornais do dia, ficava duas horas circulando a cidade de carro, lendo todos os jornais, depois parava, virava pro motorista e falava: "Agora vamos pegar todos os atores que a gente já pode filmar". E filmava a partir do transe que era estar imerso em todas aquelas notícias. É uma história que exprime muito aquilo que ele quer: transmitir um sentimento de país, um sentimento excessivo, um sentimento brutal, e um certo romantismo nessa brutalidade. Uma vez que você sintoniza com esse romantismo você consegue entrar completamente, e a fundo, nessa beleza do filme do Glauber.

L.C.O.Jr: E esse sentimento de nação em A Idade da Terra só cresce, só se torna inextenso, indeterminado. Se você pegar a própria trilogia mítica do cinema novo, a trilogia da seca, que seria Vidas Secas, Os Fuzis e Deus e o Diabo na Terra do Sol, o regime espacial dos filmes é de condensar, de pegar aquele recorte, o sertão, e ali inserir uma espécie de amalgamação do país. Comparando com Terra em Transe, que tem lá aquele país imaginário, alegórica e metonimicamente falando do Brasil, o momento de expansão em A Idade da Terra se configura dentro de uma lógica que o Ismail Xavier até comenta naquele livro O Cinema Brasileiro Moderno: nesse momento o cinema brasileiro está buscando uma expansão territorial, e há filmes como Aopção, do Candeias, que vara as estradas do país, e Iracema, do Bodansky e do Orlando Senna, justamente mostrando a construção da transamazônica, essa idéia de cortar um Brasil que ainda está para ser descoberto. A Idade da Terra está também participando mais ou menos disso, precisando se espalhar pelo território, se espalhar por pelo menos três segmentos fortes do país para poder dar conta dessa coisa que é maior, que é sempre maior do que aquilo com que estávamos acostumados. Da mesma forma, há a idéia também de fazer um filme que vai para as ruas, que fica se imiscuindo, se perdendo no meio de manifestações que estão acontecendo nas ruas, tentando falar de tudo que está acontecendo ao mesmo tempo. Esse aspecto de um filme que tem uma estrutura musical, que parece um musical na maneira como o Glauber Rocha o conceberia, isso lembra muito o Claro.

J.P.: O grande esforço hoje é revitalizar o Glauber enquanto pensamento. Na minha opinião de cineasta, eu acho que o Glauber é um farol e um fantasma, e aí é uma escolha pessoal: olhar para o farol ou olhar para o fantasma. Existe uma tendência mitificadora, folclorizante, e é preciso tomar cuidado. Mas a obra dele é completamente aberta. Algumas pessoas ficam desesperadas de não entender o filme e passam a querer exclui-lo, mas não podem excluir porque é mito, ou seja, pegaria mal... Então ele é uma figura incômoda, perturbadora, e deve ser assim. Meu interesse nele é filosófico. É igual ao Godard: você não precisa sair fazendo filmes como o Godard, mas ele é um dos maiores pensadores da imagem, do audiovisual, um filósofo. O Glauber está muito mal digerido porque é pouco visto, é folclorizado antes de ser visto.

R.G.: Você está imbuído da mitologia antes de ver o filme, e quando vê, ao invés de se abrir, você tenta jogar essa mitologia dentro do filme. É realmente como nessa idéia do farol e do fantasma. O que o grande artista consegue fazer é tornar-se único, então a obra de Glauber não serve como modelo. Se ainda fosse o caso de um cineasta que pegou um estilo único e levou até uma certa exaustão – podemos pensar no Yasujiro Ozu, no Jean Renoir... Mas no caso do Glauber ele já joga para uma diversidade e para uma reconstrução da sua forma a cada filme.

A Idade da Terra é um filme que, muito mais do que outros, vai voltar seguidamente. É a coisa do monumento – uma estátua, um painel, um afresco – que tende à grandeza e à eternização. E se é uma película, que se projeta a 1/24 de segundo, ela vai se eternizar onde pode, que é na nossa cabeça. É uma espécie de poder que A Idade da Terra tem.

Debate realizado em 27/07/2005, após a projeção de A Idade da Terra na Sessão Cineclube no Odeon).