Fábula do avesso
"you've said the air was singing.
it's calling you you don't believe
these things you've never seen"
(The Lifting, R.E.M.)
Se a noção tradicional de fábula compreende a asserção
de uma verdade, talvez o aspecto mais importante da
obra de Miyazaki seja a subversão do conceito de fábula.
Em seus mundos repletos de magias, e de seres que dividem
o espaço com o homem, todas os dilemas e questionamentos
por que passam os personagens os deixam a mercê de um
universo complicado demais para ser assimilado ou compreendido
de forma satisfatória. Os mistérios e desafios desdobram-se
e multiplicam-se, como um labirinto de miragens, no
qual as respostas nunca são definitivas e exigem sempre
um “saber viver” e um “aprender a conviver”.
Sophie, solitária no seu trabalho na chapelaria do falecido
pai, parece enfrentar com autoconfiança a amargura da
sua sensação de exclusão de uma vivência mais rica,
seja pela ausência de amigos, seja por não compartilhar
das diversões dos outros, seja por se achar feia demais.
Mas subitamente aparece um belo rapaz que a deixa encantada.
Logo ela fica sabendo tratar-se de Howl, bruxo temido
que acusam de roubar corações femininos. Pagando por
este breve contato, ela é enfeitiçada pela Bruxa da
Terra Amaldiçoada, que há tempos deseja o coração do
rapaz, e a transforma numa velha de 70 anos. O mundo
que víamos descrito com tanto realismo de detalhes,
especialmente no que tange aos gestos humanos, é então
subitamente invadido por um mundo de outra ordem, que,
sem pedir licença, o penetra, se mescla a ele, e nos
transporta para um outro estatuto de realidade. Sem
surpresa ou espanto, o mágico se mistura a ações banais
e cotidianas, provocando um deslocamento sutil na ordenação
das coisas, nas nossas noções de fantasia, ficção e
realismo, particularmente como as aprendemos na tradição
cinematográfica. Quem sabe seja este o principal ponto
que faz com que Miyazaki seja “elevado” para além da
categoria “cinema de animação”, e para além da sub-categoria
animê.
O maravilhamento que suscita O Castelo Animado
– e também os outros filmes do autor – reside em grande
parte no carisma dos personagens e no centramento da
narrativa em questões que dizem respeito ao relacionamento
destes entre si, em “questões humanas”, em suma. Indo
atrás de Howl e encontrando seu castelo, com a ajuda
de um espantalho também enfeitiçado e que se apaixona
por ela, Sophie passa a viver de uma vez só todos os
relacionamentos que pareciam lhe faltar até ali. Enfrentando
as dificuldades que seu novo corpo de 70 anos de idade
lhe impõe, ela progressivamente passa a gerenciar as
atividades dentro daquele castelo, cujos moradores são
Howl, o menino-bruxo Markl e o demônio Calcifer, um
foguinho que mantém todo o castelo funcionando. De faxineira
e cozinheira intrusa, ela passa aos poucos a conselheira
e amiga, a mãe corajosa e a mulher apaixonada. Conquista
o carinho de todos e assume responsabilidades diversas
frente às eventualidades que os assolam, principalmente
em nome dos afetos que engendrou.
No continente com ares de Europa do final do século
XIX em que habitam, a Guerra, esta velha conhecida do
universo de Miyazaki (e acontecimento constante no nosso
mundo), também está presente. Pelas futilidades de sempre,
como o orgulho e o ego de reis invejosos ou insatisfeitos,
os homens promovem a morte e o terror, o que incita
a atividade de demônios variados. Howl, mago famoso
em diversas localidades sob diferentes nomes, é conclamado
pelo exército de cada um destes lugares para pôr suas
valorosas habilidades a serviço da pátria. Pelo impasse
gerado por estas múltiplas identidades, pela recusa
de ir à guerra e pelo trabalho silencioso que realiza
diariamente em meio aos confrontos, combatendo os demônios
que espalham o horror, Howl pede a Sophie que vá até
a Rainha Suliman, fazendo o papel de sua mãe, para comunicar
que seu filho não servirá de muita coisa para o reino.
Na entrada do castelo real, ela encontra a Bruxa da
Terra Abandonada, também convocada por Suliman. Dentro
do castelo, assistimos ao desenrolar da seqüência que
é talvez a mais impressionante do filme. A Bruxa, por
um castigo de Suliman, volta a ter sua idade normal,
cerca de 90 anos, tornando-se uma velhinha inofensiva
e dependente. Sophie, ao discursar em defesa da ausência
de Howl, deixa entrever a todos sua paixão por ele.
E Howl finalmente vence a covardia que sempre o fez
fugir de seus problemas: aparece e nega a Suliman de
forma definitiva qualquer poder sobre ele.
Nesta série de acontecimentos, que culmina com uma seqüência
de perseguição aérea bem ao gosto de Miyazaki, temos
não apenas uma série de excelentes diálogos, como uma
surpreendente virada de roteiro. Somos apresentados
a parte do passado de Howl – a revelação de que Suliman
é sua mestra e mantém com ele uma relação complicada;
e o fato de ele não ter coração, provavelmente o grande
motivo de seu egoísmo e o que o torna uma figura perigosa
(embora não vejamos sinais deste perigo no seu convívio
com os demais personagens centrais). Temos a suposta
vilã transformada numa vovó, que vai morar com eles
no castelo e a assunção, por parte da narrativa, da
paixão de Sophie por Howl. Em tudo isso, o que mais
fascina é o desenrolar livre das situações, sem a necessidade
de explicações para tudo o que se passa, o que criaria
não apenas amarras de roteiro, como esquematizaria a
história. A técnica de Miyazaki de filmar (animar) sem
um roteiro fechado, seguindo a livre expressão de seu
traço, parece atingir neste filme seu ápice. Nunca se
sabe o que esperar do plano seguinte. Como se cada plano
fosse realmente uma mágica prestes a ser deflagrada,
escolhida entre inúmeras outras: os personagens seguem
sem sobressaltos cada desdobrar inesperado da história
e nós seguimos com eles.
Admiravelmente, O Castelo Animado carece de trama.
E de todas as pequenas justificativas que acompanham
costumeiramente as narrativas fantasiosas. Desta forma,
a aparência de Sophie se alterna indiscriminadamente
entre sua idade real, os 70 anos da maldição, uns 50
anos, uns 30 anos. Para Miyazaki, não é preciso saber
como um feitiço funciona, é necessário poder perceber
seus efeitos. E não é preciso identificar vilões nem
tecer um cabedal de razões para eliminá-los, mas ser
capaz de identificar problemas de vivência – sejam eles
entre homem e natureza, entre os próprios homens ou
de ordem interior – e solucioná-los. A ausência de conflitos
delimitados e diretos entre os personagens ao longo
do filme, que costumam constituir o motor da maior parte
dos roteiros, faz desse aprendizado algo suave, que
se desenrola com naturalidade. É possível no caminho
vislumbrar pequenos traumas, tristezas e angústias de
cada um, mas sem que estes em momento algum se tornem
pontos centrais, questões que fariam girar um enredo.
Assim como o próprio romance (óbvio) entre Sophie e
Howl nunca é um motivo central.
A formação da família que ocorre ao final do filme é,
pois, surpreendente. Longe de qualquer idealização de
uma família nuclear, o que temos é uma associação de
pessoas que firmam um pacto de cooperação entre elas.
Tudo o que elas viveram juntas não se caracteriza como
uma aventura fora do plano cotidiano que prevê a volta
à normalidade após seu término – uma normalidade acrescida
das lições aprendidas por um “rito de passagem” –, mas
resolvem questões que os atravancavam e forjam para
si uma nova vida.
A imagem de um castelo em movimento, que parece ter
sido construído a partir de ferro-velho, em sua precariedade
ambulante e seus mecanismos obscuros de funcionamento,
ilustra magnificamente a desterritorialização que a
idéia de viagem ou deslocamento entre mundos opera na
obra de Miyazaki e afirma como nunca o elemento da invenção
como ferramenta para se contornar os absurdos e as impossibilidades
do mundo. O castelo de Howl é um não-lugar que dá acesso
a locais precisos e a paisagens mentais. É uma casa
inacessível que permite entrar e acolhe aqueles de bom
coração. E Howl, longe de ser um rei dentro deste espaço,
é um mago humano e cheio de problemas – sua covardia,
seu egoísmo, sua vaidade desmesurada, seu orgulho, sua
quase-infantilidade frente à existência que leva –,
mas é o príncipe que desperta o amor no coração de Sophie.
E ela, o “patinho feio”, é a pessoa de força e coragem
extraordinárias, capaz de driblar todas as suas inseguranças
e de transformar ativamente a vida daqueles com quem
se envolve. Na situações-limite em que se encontra,
descobre a força de assumir o que sente e o que é, de
não ter vergonha de si. Demonstra exímio controle do
seu “coração volúvel”, como ela mesma o define. O fator
humano que Howl perdeu. E mais ainda seus companheiros
de guerra, que “vão esquecer como se chora”. Mas Sophie
consegue reverter a situação do amado, devolvendo-lhe
este “fardo pesado” que é o coração. Porque consegue
afetá-lo com sua presença de forma incontestável. E
provar que a inventividade não serve apenas para fantasiar
mágicas.
Fábula encantadora, O Castelo Animado é um filme
impressionante. Pelo seu desenrolar, pelos seus personagens,
por sua construção. Por sua falta de pudores em não
seguir qualquer ordenação narrativa maior e negar explicações
e relações de causa-e-efeito. E por sutilmente, de forma
quase inocente, sugerir comentários sobre o planeta
que habitamos hoje.
Tatiana Monassa
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