O CASTELO ANIMADO
Hayao Miyazaki, Hauru no ugoku shiro, Japão, 2004

Fábula do avesso

"you've said the air was singing.
it's calling you you don't believe
these things you've never seen"

(The Lifting, R.E.M.)

Se a noção tradicional de fábula compreende a asserção de uma verdade, talvez o aspecto mais importante da obra de Miyazaki seja a subversão do conceito de fábula. Em seus mundos repletos de magias, e de seres que dividem o espaço com o homem, todas os dilemas e questionamentos por que passam os personagens os deixam a mercê de um universo complicado demais para ser assimilado ou compreendido de forma satisfatória. Os mistérios e desafios desdobram-se e multiplicam-se, como um labirinto de miragens, no qual as respostas nunca são definitivas e exigem sempre um “saber viver” e um “aprender a conviver”.

Sophie, solitária no seu trabalho na chapelaria do falecido pai, parece enfrentar com autoconfiança a amargura da sua sensação de exclusão de uma vivência mais rica, seja pela ausência de amigos, seja por não compartilhar das diversões dos outros, seja por se achar feia demais. Mas subitamente aparece um belo rapaz que a deixa encantada. Logo ela fica sabendo tratar-se de Howl, bruxo temido que acusam de roubar corações femininos. Pagando por este breve contato, ela é enfeitiçada pela Bruxa da Terra Amaldiçoada, que há tempos deseja o coração do rapaz, e a transforma numa velha de 70 anos. O mundo que víamos descrito com tanto realismo de detalhes, especialmente no que tange aos gestos humanos, é então subitamente invadido por um mundo de outra ordem, que, sem pedir licença, o penetra, se mescla a ele, e nos transporta para um outro estatuto de realidade. Sem surpresa ou espanto, o mágico se mistura a ações banais e cotidianas, provocando um deslocamento sutil na ordenação das coisas, nas nossas noções de fantasia, ficção e realismo, particularmente como as aprendemos na tradição cinematográfica. Quem sabe seja este o principal ponto que faz com que Miyazaki seja “elevado” para além da categoria “cinema de animação”, e para além da sub-categoria animê.

O maravilhamento que suscita O Castelo Animado – e também os outros filmes do autor – reside em grande parte no carisma dos personagens e no centramento da narrativa em questões que dizem respeito ao relacionamento destes entre si, em “questões humanas”, em suma. Indo atrás de Howl e encontrando seu castelo, com a ajuda de um espantalho também enfeitiçado e que se apaixona por ela, Sophie passa a viver de uma vez só todos os relacionamentos que pareciam lhe faltar até ali. Enfrentando as dificuldades que seu novo corpo de 70 anos de idade lhe impõe, ela progressivamente passa a gerenciar as atividades dentro daquele castelo, cujos moradores são Howl, o menino-bruxo Markl e o demônio Calcifer, um foguinho que mantém todo o castelo funcionando. De faxineira e cozinheira intrusa, ela passa aos poucos a conselheira e amiga, a mãe corajosa e a mulher apaixonada. Conquista o carinho de todos e assume responsabilidades diversas frente às eventualidades que os assolam, principalmente em nome dos afetos que engendrou.

No continente com ares de Europa do final do século XIX em que habitam, a Guerra, esta velha conhecida do universo de Miyazaki (e acontecimento constante no nosso mundo), também está presente. Pelas futilidades de sempre, como o orgulho e o ego de reis invejosos ou insatisfeitos, os homens promovem a morte e o terror, o que incita a atividade de demônios variados. Howl, mago famoso em diversas localidades sob diferentes nomes, é conclamado pelo exército de cada um destes lugares para pôr suas valorosas habilidades a serviço da pátria. Pelo impasse gerado por estas múltiplas identidades, pela recusa de ir à guerra e pelo trabalho silencioso que realiza diariamente em meio aos confrontos, combatendo os demônios que espalham o horror, Howl pede a Sophie que vá até a Rainha Suliman, fazendo o papel de sua mãe, para comunicar que seu filho não servirá de muita coisa para o reino. Na entrada do castelo real, ela encontra a Bruxa da Terra Abandonada, também convocada por Suliman. Dentro do castelo, assistimos ao desenrolar da seqüência que é talvez a mais impressionante do filme. A Bruxa, por um castigo de Suliman, volta a ter sua idade normal, cerca de 90 anos, tornando-se uma velhinha inofensiva e dependente. Sophie, ao discursar em defesa da ausência de Howl, deixa entrever a todos sua paixão por ele. E Howl finalmente vence a covardia que sempre o fez fugir de seus problemas: aparece e nega a Suliman de forma definitiva qualquer poder sobre ele.

Nesta série de acontecimentos, que culmina com uma seqüência de perseguição aérea bem ao gosto de Miyazaki, temos não apenas uma série de excelentes diálogos, como uma surpreendente virada de roteiro. Somos apresentados a parte do passado de Howl – a revelação de que Suliman é sua mestra e mantém com ele uma relação complicada; e o fato de ele não ter coração, provavelmente o grande motivo de seu egoísmo e o que o torna uma figura perigosa (embora não vejamos sinais deste perigo no seu convívio com os demais personagens centrais). Temos a suposta vilã transformada numa vovó, que vai morar com eles no castelo e a assunção, por parte da narrativa, da paixão de Sophie por Howl. Em tudo isso, o que mais fascina é o desenrolar livre das situações, sem a necessidade de explicações para tudo o que se passa, o que criaria não apenas amarras de roteiro, como esquematizaria a história. A técnica de Miyazaki de filmar (animar) sem um roteiro fechado, seguindo a livre expressão de seu traço, parece atingir neste filme seu ápice. Nunca se sabe o que esperar do plano seguinte. Como se cada plano fosse realmente uma mágica prestes a ser deflagrada, escolhida entre inúmeras outras: os personagens seguem sem sobressaltos cada desdobrar inesperado da história e nós seguimos com eles.

Admiravelmente, O Castelo Animado carece de trama. E de todas as pequenas justificativas que acompanham costumeiramente as narrativas fantasiosas. Desta forma, a aparência de Sophie se alterna indiscriminadamente entre sua idade real, os 70 anos da maldição, uns 50 anos, uns 30 anos. Para Miyazaki, não é preciso saber como um feitiço funciona, é necessário poder perceber seus efeitos. E não é preciso identificar vilões nem tecer um cabedal de razões para eliminá-los, mas ser capaz de identificar problemas de vivência – sejam eles entre homem e natureza, entre os próprios homens ou de ordem interior – e solucioná-los. A ausência de conflitos delimitados e diretos entre os personagens ao longo do filme, que costumam constituir o motor da maior parte dos roteiros, faz desse aprendizado algo suave, que se desenrola com naturalidade. É possível no caminho vislumbrar pequenos traumas, tristezas e angústias de cada um, mas sem que estes em momento algum se tornem pontos centrais, questões que fariam girar um enredo. Assim como o próprio romance (óbvio) entre Sophie e Howl nunca é um motivo central.

A formação da família que ocorre ao final do filme é, pois, surpreendente. Longe de qualquer idealização de uma família nuclear, o que temos é uma associação de pessoas que firmam um pacto de cooperação entre elas. Tudo o que elas viveram juntas não se caracteriza como uma aventura fora do plano cotidiano que prevê a volta à normalidade após seu término – uma normalidade acrescida das lições aprendidas por um “rito de passagem” –, mas resolvem questões que os atravancavam e forjam para si uma nova vida.

A imagem de um castelo em movimento, que parece ter sido construído a partir de ferro-velho, em sua precariedade ambulante e seus mecanismos obscuros de funcionamento, ilustra magnificamente a desterritorialização que a idéia de viagem ou deslocamento entre mundos opera na obra de Miyazaki e afirma como nunca o elemento da invenção como ferramenta para se contornar os absurdos e as impossibilidades do mundo. O castelo de Howl é um não-lugar que dá acesso a locais precisos e a paisagens mentais. É uma casa inacessível que permite entrar e acolhe aqueles de bom coração. E Howl, longe de ser um rei dentro deste espaço, é um mago humano e cheio de problemas – sua covardia, seu egoísmo, sua vaidade desmesurada, seu orgulho, sua quase-infantilidade frente à existência que leva –, mas é o príncipe que desperta o amor no coração de Sophie. E ela, o “patinho feio”, é a pessoa de força e coragem extraordinárias, capaz de driblar todas as suas inseguranças e de transformar ativamente a vida daqueles com quem se envolve. Na situações-limite em que se encontra, descobre a força de assumir o que sente e o que é, de não ter vergonha de si. Demonstra exímio controle do seu “coração volúvel”, como ela mesma o define. O fator humano que Howl perdeu. E mais ainda seus companheiros de guerra, que “vão esquecer como se chora”. Mas Sophie consegue reverter a situação do amado, devolvendo-lhe este “fardo pesado” que é o coração. Porque consegue afetá-lo com sua presença de forma incontestável. E provar que a inventividade não serve apenas para fantasiar mágicas.

Fábula encantadora, O Castelo Animado é um filme impressionante. Pelo seu desenrolar, pelos seus personagens, por sua construção. Por sua falta de pudores em não seguir qualquer ordenação narrativa maior e negar explicações e relações de causa-e-efeito. E por sutilmente, de forma quase inocente, sugerir comentários sobre o planeta que habitamos hoje.

Tatiana Monassa