HARMADA
Maurice Capovilla, Brasil, 2003

O desafio de se perder

Se para alguns a arte de atuar é saber seguir indicações, tempos, orientações no espaço, se guiando num território delimitado com precisão, há aqueles que acreditam no teatro – e em toda Arte – como a arte de se perder. Perambular, deixar-se levar pelo vento e pelas águas, sem direção nem destino definidos. Passear por espaços e tempos desconectados, como os atos e esquetes o são inerentemente. E é isso que faz Peréio: perambula. Estabelece uma ligação precária entre planos. A sua voz desgovernada é o único fio condutor possível no caminho entre os palcos diversos que ocupa, em Harmada, seu personagem sem nome durante a vida. Uma vida tardia que parece ter perdido seu encanto em alguma fase gloriosa do seu passado, mas que nem por isso chora. As lágrimas não têm mais vez no tablado do hoje. As tragédias e comédias de outrora também não. Foram esquecidas em algum momento da história; subsistem apenas como narração e simbolismo já sem muitas referências. Ao Ator então cabe puxar a cena, o corte, impulsionar o movimento de uma representação já não mais real, mas em quadros. Imagens em movimento precisas mecanicamente. O desgoverno vem enquadrado. Preso a um campo de visão delimitado, resta ao Ator buscar seus possíveis deslimites; encarar a objetiva, flertar com o mundo que acontece indiferente à representação de quem vive na arte.

Enquanto o aparato ótico, quando não está observando as construções elaboradas nos espaços fechados prescritos em roteiro, se ocupa em encarar este mundo, que acontece à sua frente, se impondo com seu absurdo costumeiro. E, no meio de tudo isso, o Ator passa. Porque ele é pobre e louco. Porque ele não sabe mais da sua vida. Não recebe mais salário. Não possui mais família nem companhia teatral nem palco. Talvez um casamento incompleto e um empreguinho mambembe. Mambembe como um certo teatro itinerante e um certo cinema que se insiste em fazer acontecer. Mambembes porque saem em busca de um público outro. Um público qualquer, que não seja aquele sentado alinhadamente em cadeiras à espera de um divertimento agendado numa hora certa de um dia preciso. Um público que esteja despreparado, pronto pra embarcar com uma presença magnetizante para um mundo qualquer, um tantinho deslocado da ordem linear de nossas vidas de raccords perfeitos.

Porque o teatro da vida não cessa de se querer representado, em busca do “público que falta”, para parafrasear Deleuze, que diz que a literatura é a “invenção de um povo que falta”. Falta não porque não comparece, falta porque não existe. Talvez possa ser ajuntado numa praça perdida, num dia de sol, talvez permaneça inexistente. Sim, inexistente. Frente a uma representação pensada não apenas como a elaboração por cada homem de um olhar imaginário lançado sobre a própria vivência, como a configuração de cada um como ator de si numa comédia sem pretensões, para não ser levada a sério, porque tudo acontece em única apresentação.

E o Ator sabe disso. Ele sabe que cada gesto, mesmo que se queira repetido é único. E ele não quer refazer gesto algum. Ele é direto, desavisado, impulsivo, improvisador de último segundo, impaciente e “sempre em movimento”. Mesmo que todo o universo em volta com ele contracene surdo e, quando falante, com total impostação artificial. O Ator está em descompasso com o teatro do qual não faz mais parte e segue vivendo o que pode, nos cortes abruptos que experimenta, no desalinho e descontinuidade natural da existência. Se questiona se a Arte é redentora, especialmente para alguém que, como ele, “se descuidou”. Seria ela apenas “a risada do homem forte que caminha pelas ruas sórdidas de Harmada”? Seria ela a alma deste espectro vagante que por onde passa ainda preenche espaços – porque não é vontade que falta, mas apenas a estrutura, no estado desarticulado instaurado por um ostracismo já sem memória? Desarticulação total de armadas inteiras, compostas de homens que se ocupam dos seus ofícios distintamente?

Não importa. Para onde a vida, rio que nos leva pra longe dos palcos, seguir, o Ator vai atrás. Os afetos que lhe atravessam, ele segue. Porque não espera muito. Porque só quer celebrar. Porque não pode fazer outra coisa. Se a busca pelo “teatro puro” ou por qualquer arte “pura” ainda é uma questão, é porque se busca demais. É porque a entrega ao fluxo ainda é pouca. Deixássemos nós que a vida nos guiasse e seríamos mais artistas e menos “atores”. Porque, se no cinema menos é mais, o “verdadeiro ator” a que se refere Peréio numa das falas finais do filme, é exatamente aquele “sem cores e acessórios”, aquele que, se se engaja de fato na aventura de procurar “por uma verdade oculta”, é pelo prazer de ser aventureiro.

Tatiana Monassa
(texto originalmente publicado no folheto do Cineclube Tela Brasilis)