O
desafio de se perder
Se para alguns a arte de atuar é saber seguir indicações,
tempos, orientações no espaço, se guiando num território
delimitado com precisão, há aqueles que acreditam no
teatro – e em toda Arte – como a arte de se perder.
Perambular, deixar-se levar pelo vento e pelas águas,
sem direção nem destino definidos. Passear por espaços
e tempos desconectados, como os atos e esquetes o são
inerentemente. E é isso que faz Peréio: perambula. Estabelece
uma ligação precária entre planos. A sua voz desgovernada
é o único fio condutor possível no caminho entre os
palcos diversos que ocupa, em Harmada, seu personagem
sem nome durante a vida. Uma vida tardia que parece
ter perdido seu encanto em alguma fase gloriosa do seu
passado, mas que nem por isso chora. As lágrimas não
têm mais vez no tablado do hoje. As tragédias e comédias
de outrora também não. Foram esquecidas em algum momento
da história; subsistem apenas como narração e simbolismo
já sem muitas referências. Ao Ator então cabe puxar
a cena, o corte, impulsionar o movimento de uma representação
já não mais real, mas em quadros. Imagens em
movimento precisas mecanicamente. O desgoverno vem enquadrado.
Preso a um campo de visão delimitado, resta ao Ator
buscar seus possíveis deslimites; encarar a objetiva,
flertar com o mundo que acontece indiferente à representação
de quem vive na arte.
Enquanto o aparato ótico, quando não está observando
as construções elaboradas nos espaços fechados prescritos
em roteiro, se ocupa em encarar este mundo, que acontece
à sua frente, se impondo com seu absurdo costumeiro.
E, no meio de tudo isso, o Ator passa. Porque
ele é pobre e louco. Porque ele não sabe mais da sua
vida. Não recebe mais salário. Não possui mais família
nem companhia teatral nem palco. Talvez um casamento
incompleto e um empreguinho mambembe. Mambembe como
um certo teatro itinerante e um certo cinema que se
insiste em fazer acontecer. Mambembes porque saem em
busca de um público outro. Um público qualquer,
que não seja aquele sentado alinhadamente em cadeiras
à espera de um divertimento agendado numa hora certa
de um dia preciso. Um público que esteja despreparado,
pronto pra embarcar com uma presença magnetizante para
um mundo qualquer, um tantinho deslocado da ordem linear
de nossas vidas de raccords perfeitos.
Porque o teatro da vida não cessa de se querer representado,
em busca do “público que falta”, para parafrasear Deleuze,
que diz que a literatura é a “invenção de um povo que
falta”. Falta não porque não comparece, falta porque
não existe. Talvez possa ser ajuntado numa praça perdida,
num dia de sol, talvez permaneça inexistente. Sim, inexistente.
Frente a uma representação pensada não apenas como a
elaboração por cada homem de um olhar imaginário lançado
sobre a própria vivência, como a configuração de cada
um como ator de si numa comédia sem pretensões, para
não ser levada a sério, porque tudo acontece em única
apresentação.
E o Ator sabe disso. Ele sabe que cada gesto, mesmo
que se queira repetido é único. E ele não quer refazer
gesto algum. Ele é direto, desavisado, impulsivo, improvisador
de último segundo, impaciente e “sempre em movimento”.
Mesmo que todo o universo em volta com ele contracene
surdo e, quando falante, com total impostação artificial.
O Ator está em descompasso com o teatro do qual não
faz mais parte e segue vivendo o que pode, nos cortes
abruptos que experimenta, no desalinho e descontinuidade
natural da existência. Se questiona se a Arte é redentora,
especialmente para alguém que, como ele, “se descuidou”.
Seria ela apenas “a risada do homem forte que caminha
pelas ruas sórdidas de Harmada”? Seria ela a alma deste
espectro vagante que por onde passa ainda preenche espaços
– porque não é vontade que falta, mas apenas a estrutura,
no estado desarticulado instaurado por um ostracismo
já sem memória? Desarticulação total de armadas inteiras,
compostas de homens que se ocupam dos seus ofícios distintamente?
Não importa. Para onde a vida, rio que nos leva pra
longe dos palcos, seguir, o Ator vai atrás. Os afetos
que lhe atravessam, ele segue. Porque não espera muito.
Porque só quer celebrar. Porque não pode fazer outra
coisa. Se a busca pelo “teatro puro” ou por qualquer
arte “pura” ainda é uma questão, é porque se busca demais.
É porque a entrega ao fluxo ainda é pouca. Deixássemos
nós que a vida nos guiasse e seríamos mais artistas
e menos “atores”. Porque, se no cinema menos é mais,
o “verdadeiro ator” a que se refere Peréio numa das
falas finais do filme, é exatamente aquele “sem cores
e acessórios”, aquele que, se se engaja de fato na aventura
de procurar “por uma verdade oculta”, é pelo prazer
de ser aventureiro.
Tatiana Monassa
(texto originalmente publicado no folheto do Cineclube
Tela Brasilis)
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