No Brasil se acha
uma enorme parcela dos admiradores incondicionais de
Ingmar Bergman, mas o diretor de Gritos e Sussurros
é alguém que despertou reações ambíguas nas revisões
críticas e nas novas correntes historiográficas que
se desenvolveram durante o “retiro” parcial (houve trabalhos
para a tv) que ele se impôs após Fanny e Alexander,
de 1982. Ao mesmo tempo, para a grande maioria dos cineastas
que surgiram nos anos 90 Bergman já não representava
mais um nome de tanto peso ou influência quanto havia
sido para as gerações de Godard e Truffaut – diretores
como Maurice Pialat e John Cassavetes, por exemplo,
passaram a ser verificados como matrizes estéticas muito
mais freqüentes e “atuais” no cinema contemporâneo de
uma forma geral. Embora isso não tenha impedido o surgimento
de filmes como 5x2 (François Ozon) e Reencarnação
(Jonathan Glazer), peças bergmanianas em nível quase
medular, a verdade é que uma estranha obscuridade se
apossou da obra deste cineasta que durante muito tempo
fora uma espécie de cânone da heroificação da figura
do diretor como aquele dá ao cinema seu aspecto de arte.
De exemplar manifestação do que muito cedo se tomou
por cinema de autor, o tipo de admiração que a obra
de Bergman prosseguia despertando nas duas últimas décadas
começou a dar a impressão (e isso inclui aqueles que
o colocam nas alturas, mesmo que eles nem percebam a
mumificação precoce que realizam) de uma etapa importante
porém ultrapassada, uma ponte necessária entre o período
clássico e a ascensão dos cinemas modernos – mas ainda
assim uma obra auto-esgotada em seu perfil demasiado
egocêntrico e fechado. Se filmes como O Sétimo Selo
e Morangos Silvestres de fato foram superestimados
e hoje parecem se resumir a simbolismos um tanto cansativos,
uma certa falta de cuidado ao falar da obra de Bergman
como um todo poderia comprometer a memória de filmes
tão extraordinários como Mônica e o Desejo e
Fanny e Alexander (o que ainda não parece ser
o caso). Novamente badalado por conta de Sarabanda
– que teve boa recepção crítica na Europa e nos EUA
– e possivelmente curado da saturação que o mercado
de filme cult exerceu sobre ele e tantos outros
ao domesticar o autorismo, Bergman precisa agora de
uma chance de respirar sem a aura potencialmente antipática,
que as gerações mais novas adquirem hereditariamente,
de sua posição de super-herói do “cinema de arte”.
É se desembaraçando, por exemplo,
das intransigências implícitas ao rótulo de “cinema
autoral” que podemos enxergar em Gritos e Sussurros
tanto o esquema cromático repleto de significados –
e devidamente aclamado – de um drama intimista quanto
uma sensação de terror despertada pela manipulação sádica
do primeiro plano. Gritos e Sussurros, mesmo
que imune a qualquer definição simplista, é em grande
medida o filme de terror de Bergman. Há, de um lado,
uma estratégia de desconforto atingindo seu ápice, e,
do outro, um controle soturno das composições e uma
dramaticidade da cor que são dignas de Mario Bava. Nos
seus melhores momentos, a mise en scène de Bergman
nesse filme parece deter um segredo que ele se esforça
em manter guardado, como um mágico que não revela seus
truques, ou como a sabedoria inviolável dos antigos
alquimistas. Tamanha prestidigitação depende da cegueira
parcial da platéia, que não enxerga senão um jogo de
aparências, e todo o espaço do filme – espaço sonoro
e espaço-fora-da-tela mais do que incluídos – se vê
assombrado por fantasmas que cobram sua parcela na ficção.
A própria câmera age como um fantasma inquisidor, que
espreme as personagens contra a parede até que elas
devolvam ao filme uma expressão desejada (medo, vergonha,
ódio, desespero).
Bergman é sem dúvida um dos grandes
estetas do close-up cinematográfico, e aqui seu teatro
de fisionomias adquire uma carga extra de significação:
Gritos e Sussurros é uma anatomia de rostos femininos,
estudados tanto em sua materialidade quanto em seus
investimentos subjetivos. E esses rostos, ao menos para
Bergman, são “contos de terror”, daí seu teatro de fisionomias
se desdobrar numa performance da crueldade, encenada
com marionetes que sofrem de um desespero magoado e,
muitas vezes, contido (quando apenas sussurrado). A
cena em que Maria (Liv Ullmann) tem seu rosto analisado
diante do espelho (identificado à câmera, para a qual
ela olha) por seu amante (o médico interpretado por
Erland Josephson) é de uma agressividade e um sadismo
incríveis: ele associa cada vinco e cada ruga de Maria
ou a um defeito dela ou a um percalço vivido. As lágrimas,
que estão em tanta quantidade no filme, são parte na
verdade de um sistema complexo que depende de “uma elaboração
feminina do rosto” (cf. Pascal Bonitzer, “O sistema
das emoções”, em Le Champ Aveugle) para confrontar ao espectador
uma emoção que não o atinge por processos identificatórios,
mas antes assume uma incômoda exterioridade. Assistir
a Gritos e Sussurros é acima de tudo encarar
rostos que respiram contra o nosso. O som do
filme destaca cada soluço, cada detalhe da respiração,
cada engolir em seco, cada ofegada das personagens,
pois elas precisam existir em todas as nuances.
Ao dissecar o espaço doméstico
(processo que radicalizaria em Cenas de um Casamento,
seu filme seguinte), o diretor faz de sua composição
um exercício extremo de simetria do quadro e controle
da luminosidade. Tudo em sua mise en scène é
questão de coreografia, decoro, posicionamento e movimentação
de corpos em um espaço minuciosamente arquitetado como
dispositivo cênico. Nessa casa de bonecas precisando
de reparo, o titereiro Bergman exclui os gestos adocicados
que aliviariam a dureza de sua ficção: a reconciliação
das irmãs Maria e Karin é um teatro labial, sem vozes,
com a música cobrindo o diálogo. A palavra que ouvíamos
em volume alto, anteriormente, era a palavra do ressentimento.
À exceção da idílica cena final, o único momento de
verdadeiro alívio é justamente quando a personagem adoentada
morre e interrompe sua dor. O plano em que ela morre
termina com seu olhar fixo para a janela, que está fora
de quadro, mas de onde vem o único filete de luz solar
que a casa recebe em todo o filme. Ali o extra-campo,
que na maior parte do filme se mostrara um espaço de
assombração, revela uma possibilidade de acolhimento
– curiosa construção para uma obra tão indecisa entre
a morte e o jorro de vida.
A primeira
seqüência de Gritos e Sussurros, com ponteiros
de relógios que não cessam de avançar (e cujo tique-taque
perseguirá toda a pista sonora do filme), deixa algo
bastante claro: se há uma doença em curso, é uma doença
do tempo. Partindo dessa premissa, o filme não tinha
como deixar de ter uma atmosfera sufocante, e é inegável
a violência da equação que Bergman propõe: um deleite
estético que vem da soma entre a secura existencial
impingida às personagens e a austeridade formal do realizador.
O “bergmanorama” quase nunca é um jogo fácil.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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