Gritos e sussurros
de Ingmar Bergman, 1971, Suécia

No Brasil se acha uma enorme parcela dos admiradores incondicionais de Ingmar Bergman, mas o diretor de Gritos e Sussurros é alguém que despertou reações ambíguas nas revisões críticas e nas novas correntes historiográficas que se desenvolveram durante o “retiro” parcial (houve trabalhos para a tv) que ele se impôs após Fanny e Alexander, de 1982. Ao mesmo tempo, para a grande maioria dos cineastas que surgiram nos anos 90 Bergman já não representava mais um nome de tanto peso ou influência quanto havia sido para as gerações de Godard e Truffaut – diretores como Maurice Pialat e John Cassavetes, por exemplo, passaram a ser verificados como matrizes estéticas muito mais freqüentes e “atuais” no cinema contemporâneo de uma forma geral. Embora isso não tenha impedido o surgimento de filmes como 5x2 (François Ozon) e Reencarnação (Jonathan Glazer), peças bergmanianas em nível quase medular, a verdade é que uma estranha obscuridade se apossou da obra deste cineasta que durante muito tempo fora uma espécie de cânone da heroificação da figura do diretor como aquele dá ao cinema seu aspecto de arte. De exemplar manifestação do que muito cedo se tomou por cinema de autor, o tipo de admiração que a obra de Bergman prosseguia despertando nas duas últimas décadas começou a dar a impressão (e isso inclui aqueles que o colocam nas alturas, mesmo que eles nem percebam a mumificação precoce que realizam) de uma etapa importante porém ultrapassada, uma ponte necessária entre o período clássico e a ascensão dos cinemas modernos – mas ainda assim uma obra auto-esgotada em seu perfil demasiado egocêntrico e fechado. Se filmes como O Sétimo Selo e Morangos Silvestres de fato foram superestimados e hoje parecem se resumir a simbolismos um tanto cansativos, uma certa falta de cuidado ao falar da obra de Bergman como um todo poderia comprometer a memória de filmes tão extraordinários como Mônica e o Desejo e Fanny e Alexander (o que ainda não parece ser o caso). Novamente badalado por conta de Sarabanda – que teve boa recepção crítica na Europa e nos EUA – e possivelmente curado da saturação que o mercado de filme cult exerceu sobre ele e tantos outros ao domesticar o autorismo, Bergman precisa agora de uma chance de respirar sem a aura potencialmente antipática, que as gerações mais novas adquirem hereditariamente, de sua posição de super-herói do “cinema de arte”.

É se desembaraçando, por exemplo, das intransigências implícitas ao rótulo de “cinema autoral” que podemos enxergar em Gritos e Sussurros tanto o esquema cromático repleto de significados – e devidamente aclamado – de um drama intimista quanto uma sensação de terror despertada pela manipulação sádica do primeiro plano. Gritos e Sussurros, mesmo que imune a qualquer definição simplista, é em grande medida o filme de terror de Bergman. Há, de um lado, uma estratégia de desconforto atingindo seu ápice, e, do outro, um controle soturno das composições e uma dramaticidade da cor que são dignas de Mario Bava. Nos seus melhores momentos, a mise en scène de Bergman nesse filme parece deter um segredo que ele se esforça em manter guardado, como um mágico que não revela seus truques, ou como a sabedoria inviolável dos antigos alquimistas. Tamanha prestidigitação depende da cegueira parcial da platéia, que não enxerga senão um jogo de aparências, e todo o espaço do filme – espaço sonoro e espaço-fora-da-tela mais do que incluídos – se vê assombrado por fantasmas que cobram sua parcela na ficção. A própria câmera age como um fantasma inquisidor, que espreme as personagens contra a parede até que elas devolvam ao filme uma expressão desejada (medo, vergonha, ódio, desespero).

Bergman é sem dúvida um dos grandes estetas do close-up cinematográfico, e aqui seu teatro de fisionomias adquire uma carga extra de significação: Gritos e Sussurros é uma anatomia de rostos femininos, estudados tanto em sua materialidade quanto em seus investimentos subjetivos. E esses rostos, ao menos para Bergman, são “contos de terror”, daí seu teatro de fisionomias se desdobrar numa performance da crueldade, encenada com marionetes que sofrem de um desespero magoado e, muitas vezes, contido (quando apenas sussurrado). A cena em que Maria (Liv Ullmann) tem seu rosto analisado diante do espelho (identificado à câmera, para a qual ela olha) por seu amante (o médico interpretado por Erland Josephson) é de uma agressividade e um sadismo incríveis: ele associa cada vinco e cada ruga de Maria ou a um defeito dela ou a um percalço vivido. As lágrimas, que estão em tanta quantidade no filme, são parte na verdade de um sistema complexo que depende de “uma elaboração feminina do rosto” (cf. Pascal Bonitzer, “O sistema das emoções”, em Le Champ Aveugle) para confrontar ao espectador uma emoção que não o atinge por processos identificatórios, mas antes assume uma incômoda exterioridade. Assistir a Gritos e Sussurros é acima de tudo encarar rostos que respiram contra o nosso. O som do filme destaca cada soluço, cada detalhe da respiração, cada engolir em seco, cada ofegada das personagens, pois elas precisam existir em todas as nuances.

Ao dissecar o espaço doméstico (processo que radicalizaria em Cenas de um Casamento, seu filme seguinte), o diretor faz de sua composição um exercício extremo de simetria do quadro e controle da luminosidade. Tudo em sua mise en scène é questão de coreografia, decoro, posicionamento e movimentação de corpos em um espaço minuciosamente arquitetado como dispositivo cênico. Nessa casa de bonecas precisando de reparo, o titereiro Bergman exclui os gestos adocicados que aliviariam a dureza de sua ficção: a reconciliação das irmãs Maria e Karin é um teatro labial, sem vozes, com a música cobrindo o diálogo. A palavra que ouvíamos em volume alto, anteriormente, era a palavra do ressentimento. À exceção da idílica cena final, o único momento de verdadeiro alívio é justamente quando a personagem adoentada morre e interrompe sua dor. O plano em que ela morre termina com seu olhar fixo para a janela, que está fora de quadro, mas de onde vem o único filete de luz solar que a casa recebe em todo o filme. Ali o extra-campo, que na maior parte do filme se mostrara um espaço de assombração, revela uma possibilidade de acolhimento – curiosa construção para uma obra tão indecisa entre a morte e o jorro de vida.

A primeira seqüência de Gritos e Sussurros, com ponteiros de relógios que não cessam de avançar (e cujo tique-taque perseguirá toda a pista sonora do filme), deixa algo bastante claro: se há uma doença em curso, é uma doença do tempo. Partindo dessa premissa, o filme não tinha como deixar de ter uma atmosfera sufocante, e é inegável a violência da equação que Bergman propõe: um deleite estético que vem da soma entre a secura existencial impingida às personagens e a austeridade formal do realizador. O “bergmanorama” quase nunca é um jogo fácil.

Luiz Carlos Oliveira Jr.