GLAUBERMANIA

O vento grita Glauber. Como há muito tempo não se via, existe hoje uma profusão de trabalhos, reedições, interesses em torno do cineasta mais decisivo do cinema brasileiro. E a notícia é boa: essa Glaubermania hoje não diz respeito aos chavões costumeiros de "figura polêmica", nem unicamente a seus dois filmes mais famosos (Deus e o Diabo, Terra em Transe). Ela passa por mil máscaras que tentam entender a trajetória completa de sua carreira, por uma tentativa de compreensão da obra em conjunto, passando por uma série de "lugares" pouco habitados. Que isso venha num momento específico de "crise" do cinema brasileiro, em que os filmes ousados não têm tela e em que os filmes com tela apenas refazem a vala comum da redundância global, é mais salutar ainda. Porque sempre que se fala "Glauber", existe o risco de cair no terreno pantanoso da reclamação esquerdinha, tipificante e sociologizante – que tem tão pouco a ver com a progressão do percurso do artista Glauber, sobretudo depois de 68 – que celebrizou para seus porta-vozes o epíteto de "viúvas de Glauber", uma certa necessidade de falar em seu nome não como um cineasta vivo, mas crucificado, cômodo, em estado confortável – o oposto daquilo que ele queria com Cristo no monólogo ao final de A Idade da Terra. Então, para fora do registro da viuvez cricri e reacionária – que ainda rende filmes com labirintite, slogans com adaptação problemática aos dias de hoje, teses essencialistas –, como traduzir para o mundo de hoje a importância do cinema de Glauber Rocha em sua força viva? Pelo fervor com o qual sempre sabotou seu "projeto" deixando-se banhar de inconsciente – o prolongamento de sua carreira nos anos 70 é uma prova flagrante disso –, pela crença de que o cinema é sempre mais perspicaz quando problematiza e instaura crises do que quando descobre soluções e pacifica, pela certeza de que é pela forma que se chega a novos conteúdos, mas talvez acima de tudo por um impulso que o movimenta a sair do óbvio e fazer revolução permanente de si mesmo, jamais fazer um cinema idêntico a si, purgar o país na própria carne e violentar a forma cinemtográfica com o sangue derramado na operação Consistência e vigor de uma obra que engaja, ilumina e emociona, para usar as palavras de Manoel de Oliveira, "em sua ausência de explicação" – enquanto boa parte do cinema brasileiro bem-intencionado deseja explicar.

Proliferação de registros de Glauber e de registros sobre Glauber. No terreno editorial, a Cosac & Naify reedita os livros teóricos Revisão do cinema brasileiro e Revolução do cinema novo, há décadas fora de catálogo. Nas salas de cinema, relançamento de Terra em Transe em cópia restaurada, em que pela primeira vez em anos o som do filme aparece em toda sua intensidade. Nas lojas e locadoras, lançamento progressivo da obra, em discos recheados de extras que esmiuçam o processo de produção dos filmes (Terra em Transe deve ser lançado até o final do ano, e em 2006 A Idade da Terra e Barravento). Exibição pela primeira vez na tv a cabo, no Canal Brasil, dos filmes estrangeiros de Glauber Rocha, há anos invisíveis na tv e nas telas de cinema. Pesquisas sobre os filmes nos documentários feitos para os extras dos dvds, por Paloma Rocha e Joel Pizzini, ou, de forma independente, por Phillip Johnston, que está finalizando a montagem de um filme sobre Di, ou na mais convencional série Glauberianas, exibida no Canal Brasil, que intercala cenas do programa Abertura com depoimentos no geral redundantes. Naturalmente, uma tal confluência deriva muito da coincidência de desejos e esforços, mas testemunha também de uma atualidade do cinema de Glauber Rocha – de uma questão Glauber – que, nos amnésicos momentos em que se defendia a "retomada" e o cinema de "diálogo com o público" (como se a tela tivesse boca) a unhas e dentes, não parecia mais ter lugar.

O que é mais estimulante nesse processo todo é que, salvo quando indicado, todas essas novas pesquisas tentam trazer à luz um novo significado do que seja esse enigma-Glauber, ao invés de ficar remoendo os antigos clichês. Não se trata só de uma "visão dos outros filmes" do cineasta, mas também de uma nova visão tanto dos filmes canônicos quanto da idéia de obra como um todo. Daí a necessidade de fazer novas ligações, inseri-las numa época do cinema e no contexto de uma produção internacional – ele mesmo constantemente o fazia –, relacioná-la ao passado recalcado de um certo cinema brasileiro – a comédia carnavalesca tantas vezes repudiada, todos os caminhos são bons para corrigir a míope interpretação outrora dominante de um cineasta que era gênio mas foi ultrapassado por sua genialidade e se tornou incompreensível (Godard, anyone?), ou da outra, mais militante e intelectual, que vê nele o mártir que vislumbrou a salvação para o cinema brasileiro e no qual devemos sempre nos espelhar (hipótese essencialista-crucificante). Que Glauber buscamos? Um e muitos, claro, mas acima de tudo uma imagem que se faça preesnte, hoje, como questão, presente e pertinente de forma fluida e móvel no cenário das idéias contemporâneas, e não idealizado como estátua ou parâmetro, cômodo para a glorificação fácil. É preciso recolocar o cinema de Glauber Rocha no jogo das tensões vivas do cinema, do país e do mundo. Devemos isso a ele.

Ruy Gardnier