A chanchada segundo Glauber

A CHANCHADA SEGUNDO GLAUBER

Em 1962, a Atlântida parou de produzir as suas tradicionais chanchadas. Em 1963, Glauber Rocha publicava Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. No capítulo introdutório, o cineasta baiano resume a ausência de um "pensamento cinematográfico brasileiro" e o clima teórico de "vale tudo" reinante àquela época com a seguinte frase: "a partir de 1962, o que não era chanchada virou ‘cinema novo’." (RCCB, p. 12)

O lugar-comum nos habituou a enxergar um abismo entre Glauber Rocha (não só seus filmes, mas também sua vasta obra crítica/teórica) e as chanchadas. O movimento do cinema novo, gerado entre os anos 1958-1962, significaria uma espécie de "ponto zero" no cinema brasileiro, a partir do qual uma nova tradição se fundaria – paternidade entregue à Humberto Mauro – e todo um passado seria enterrado, com as principais coroas de flores destinadas à Vera Cruz e à Atlântida.

O que me interessa, aqui, não é mergulhar na tradição aceita, representada sem esforço pelo patriarca de Volta Grande, e sim verificar os laços tradicionais negados por Glauber Rocha em seu esforço teórico de definição do cinema novo. Deixando de lado os estúdios de São Bernardo, me concentrarei aqui na relação entre a obra (escrita e filmada) de Glauber Rocha e as comédias musicais cariocas, ou melhor, as chanchadas.

Não é minha intenção forçar uma aproximação estética e ideológica entre os filmes de Glauber e as chanchadas, até porque as diferenças neste caso são muito mais definidoras do que as semelhanças. Quero apenas apontar o quanto a leitura histórica/estética da chanchada, proposta por Glauber em seus textos teóricos, obscurece os laços existentes entre o cinema novo e as comédias musicais dos anos 1950. Ao longo do artigo me remeterei diversas vezes a dois livros escritos por Glauber, recentemente republicados: Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (RCCB, 1963) e Revolução do Cinema Novo (RCN, 1981)1. Os textos citados cobrem um longo período, a partir do qual será possível perceber as transformações ocorridas no pensamento crítico de seu autor e destacar os momentos em que o próprio Glauber vai passar a relacionar sua formação como cineasta e seu entendimento da poética do cinema novo a uma tradição cinematográfica brasileira, que tem na chanchada um ponto de inflexão.

A chanchada como inimigo público número 1

Em seu ensaio historiográfico Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha assume uma postura extremamente agressiva em relação às chanchadas, não ressaltando nelas qualquer aspecto positivo. É importante sublinhar que o livro foi publicado em 1963, portanto em pleno processo de afirmação do cinema novo no contexto cultural da época, momento em que o radicalismo ganhava proporções estratégicas. A chanchada é então vista como principal entrave no processo de afirmação de um cinema "independente". Para que o cinema novo pudesse vingar, seria necessário "intensificar" a união dos produtores "independentes" em função de duas batalhas: a primeira, "interna", seria contra as chanchadas. A segunda, vista como uma batalha "maior", procuraria atingir o "truste americano" (RCCB, p.146).

As chanchadas são consideradas como "pornografia a baixo preço" (RCCB, p.142). O acirramento das posições leva Glauber a defender a mudança do serviço de censura para o Ministério da Educação e Cultura, onde seriam tomadas medidas não só contra filmes estrangeiros, mas também contra determinadas produções nacionais. "Uma vez transferida das mãos de policiais ignorantes e de senhoras puritanas" para as mãos de "intelectuais, críticos, professores e homens de comprovada capacidade de compreensão cultural do cinema", a censura finalmente "não concederia o atestado de ‘boa qualidade’ às chanchadas imorais produzidas em nossos estúdios" (RCCB, p.141). Para Glauber, este tipo de medida, que objetivaria o desenvolvimento de um cinema "independente", não necessariamente entraria em conflito com os interesses dos exibidores, já que o mercado cinematográfico estaria "em função direta da psicologia das massas: as massas do mundo inteiro rejeitam os produtos americanos, como no Brasil rejeitam as chanchadas" (RCCB, p.143).

Há duas observações a serem feitas. Em primeiro lugar, é interessante notar como a postura agressiva de Glauber Rocha em relação à chanchada o aproxima de uma leitura tipicamente conservadora do cinema brasileiro, assumida por críticos como Moniz Vianna e B. J. Duarte, nomes que figuram em um campo ideológico oposto ao de Glauber. De acordo com esta leitura, o cinema brasileiro deveria ser interpretado à luz de um julgamento moral que separaria o joio do trigo: apenas um tipo de cinema deveria ser "salvo" e todo o resto (incluindo aí as chanchadas) definitivamente apagado do mapa.

Em segundo lugar, o uso que Glauber faz do termo "independente" exclui as relações existentes entre o chamado cinema "independente" e as chanchadas: de acordo com o recorte teórico e ideológico proposto em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, os produtores independentes Watson Macedo, Herbert Richers e os irmãos Eurides/Alípio Ramos simplesmente não poderiam ser considerados como tais. No Rio de Janeiro, os "independentes" para Glauber resumem-se a Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany. Ainda assim, as relações entre estes dois realizadores e a chanchada permanecem obscurecidas: os pontos de contato entre Rio Quarenta Graus (NPS) e as produções da Atlântida não são mencionadas e o diálogo entre Agulha no Palheiro (AV) e as comédias musicais não ganham destaque.

No sub-capítulo "Alex Viany e o Realismo Carioca", Glauber aponta o roteiro inédito de Alex Viany e Alinor Azevedo, Estouro na Praça, como "um dos melhores roteiros já escritos no Brasil [...] a obra-prima deste chamado ‘realismo-carioca’" (RCCB, p. 80). Novamente, Glauber recusa-se a mencionar a chanchada. No entanto, Estouro na Praça é o roteiro de uma comédia musical carioca que não chegou a ser realizada, mas que, em 1957, estava sendo pré-produzida por Mário Falaschi, à época o principal nome da Unida, produtora-distribuidora de filmes independentes como É Fogo na Roupa (1952), O Petróleo É Nosso (1954) e Carnaval em Marte (1926), musicais dirigidos por Watson Macedo.

É importante determo-nos no conceito de "cinema independente" como um eixo de compreensão dos laços históricos entre a chanchada e o cinema novo. Se num primeiro momento (1963) Glauber Rocha estabelece uma "batalha" entre os produtores "independentes" e as chanchadas, alguns anos mais tarde as chanchadas serão vistas como o modelo prático segundo o qual o cinema novo se inspirou para criar a Difilm. No ensaio "Teoria e Prática do Cinema Latino-Americano" (1967), publicado em Revolução do Cinema Novo, a preocupação em marcar uma posição política contra o cinema norte-americano e a afirmação estratégica da necessidade de uma indústria de cinema no Brasil leva Glauber Rocha a minimizar a "batalha interna" contra as chanchadas: "Os produtores do cinema novo brasileiro [...] logo que se viram ameaçados pela não distribuição dos primeiros filmes, passaram ao ataque, isto é: constituíram uma distribuição própria. A medida não é nova no Brasil. A produção semi-industrial do Rio, especialista em comédias comerciais, sempre teve distribuição nacional e própria. O cinema novo imitou o exemplo. Foi criada assim a Difilm, no Rio, que congrega a maioria dos produtores e diretores independentes do ponto de vista cultural e político" (RCN, p. 52. Grifos do autor).

O trecho acima transcrito revela uma substancial mudança na interpretação histórica de Glauber em relação às chanchadas, que de inimiga pública número 1 passa a ser fonte de inspiração de um modelo de produção e distribuição independente, com raízes fincadas na consciência de um mercado ocupado pelo produto estrangeiro (consciência que aproxima a experiência da Atlântida da criação da Difilm).

Mas mesmo antes, já em 1964, há por parte de Glauber uma visão mais matizada das chanchadas, como podemos notar numa conversa gravada entre o cineasta baiano, Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, publicada na Revista Civilização Brasileira2. Se Nelson Pereira destaca o fato de a chanchada ter realizado um "trabalho de comunicação cultural", usando o cinema "para divulgar a língua viva e os tipos populares das grandes cidades", Alex Viany chama a atenção para a comunicação existente entre os filmes e o público: com as chanchadas, "o povo via na tela uma coisa com que podia se identificar". E Glauber concorda: "Realmente, foi somente o teatro de nosso século (de 1920 para cá) e a chanchada que começaram a fazer isso, e o cinema novo surgiu com sua força cultural no momento exato em que a chamada cultura popular se definiu melhor."

O cinema novo em busca do público

Nas constantes reflexões que Glauber Rocha fará acerca do público (ou da ausência de público) em relação aos filmes do cinema novo, a chanchada freqüentemente surge como modelo a ser problematizado, raramente aceito e quase sempre negado. Na verdade, esta questão nunca foi plenamente resolvida por Glauber e, ao longo de sua trajetória crítica, tomará a feição de um conflito doloroso.

No ensaio "O Cinema Novo e a Aventura da Criação" (1968), publicado em Revolução do Cinema Novo, encontraremos algumas passagens esclarecedoras. Glauber vê o público brasileiro como uma massa condicionada pela linguagem dos filmes hollywoodianos. Esta massa impõe ao produto brasileiro uma "ditadura artística a priori", e os filmes brasileiros que fazem sucesso na verdade são aqueles que, "mesmo abordando temas nacionais, o fazem utilizando uma técnica e uma arte imitadas do americano". E cita como exemplo O Cangaceiro, de Lima Barreto (RCN, p. 96. Grifos do autor).

Em face desta "ditadura artística" o cineasta brasileiro acaba dividido entre aceitar ou não as regras do jogo. Glauber toma a trajetória de Roberto Farias como exemplo de um realizador dividido em dois: "autor" em Selva Trágica, "artesão" em Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (RCN, p. 98). Sendo "autor", Roberto Farias realiza um cinema "original", porque temática e esteticamente "brasileiro". Como "artesão", Farias adere ao cinema "de imitação", aliando a um tema brasileiro uma fórmula tomada dos filmes hollywoodianos. O sucesso de crítica de Selva Trágica condena Farias ao circuito "de arte" e o público dele se afasta; a aposta no filme de iê-iê-iê condena Farias ao "cinema de imitação", mas em compensação ele ganha o público nas bilheterias (RCN, pp. 98-99).

A escolha de Roberto Farias como eixo de análise não é fortuita. Farias começou sua carreira nos estúdios da Atlântida como assistente de Watson Macedo, e seus primeiros filmes foram as chanchadas Rico Ri À Toa (1957) e No Mundo da Lua (1958). A incorporação de Farias ao cânone cinemanovista nunca foi confortável para Glauber: o diretor de O Assalto ao Trem Pagador "tem coragem pessoal mas não tem formação ideológica sólida" (RCCB, p. 111). Somente quando se "despedir" das "influências americanas", voltando-se para o "homem e seu meio social", Farias poderá contribuir para um "novo cinema" (RCCB, p. 112). A figura híbrida de Farias continuará a ser objeto de preocupação por parte de Glauber, por representar a permanência de um incômodo eco da estratégia comercial das chanchadas no seio de uma teorização do cinema de autor proposta por Glauber em termos industriais (a "indústria de autor" idealizada na Difilm e pulverizada pelo INC/Embrafilme).

Na raiz desta preocupação com o condicionamento cultural e estético do público, encontra-se uma reflexão de viés nacionalista sobre o conformismo do povo brasileiro. Para Glauber, o "povo brasileiro critica sempre, de um ponto de vista conformista, sua própria miséria. Na música popular são incontáveis os sambas que dizem ‘não tendo feijão faço sopa de pedra’, ‘vou morrer na sarjeta, mas com muita alegria’, ‘a favela é o vestíbulo do céu’, ‘prefiro morrer na seca do meu sertão a viver no sertão de asfalto’... e assim por diante" (RCN, p. 100). Para Glauber, um cinema que recorresse a este tipo de crítica conformista, devolvendo-a sem qualquer interpretação ao povo, deveria ser classificado como um cinema "populista". Mas tal cinema "populista" ganha fácil a adesão do público (entendido por Glauber não como público, mas como povo, o que complexifica a argumentação) porque fala a sua língua sem procurar modificá-la, contrariamente à tarefa a que os artistas ligados à vanguarda intelectual dos anos 1950-1960 estavam imbuídos de cumprir. De acordo com Glauber, o "povo recebendo na cara a comicidade epidérmica do subdesenvolvimento acha genial sua própria desgraça e morre de rir. Daí o sucesso da chanchada, toda ela fundada sobre o pitoresco miserabilista do caboclo ou da classe média" (RCN, p. 100. Grifo do autor).

A solução para o impasse exemplificado pela figura do cineasta dividido em dois está em diferenciar a conquista do mercado com filmes descolonizados e a exploração do mercado com filmes colonizados. É o que Glauber irá propor já em 1970, à luz da experiência de filmes produzidos para dialogarem com o mercado, tais como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Júnior (1969), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, do próprio Glauber (1969), e principalmente o grande sucesso de público e de crítica que foi Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969). No artigo "Barcelona 70", Glauber estabelece a distinção entre filmes descolonizados ("aqueles que se recusam a imitar os modelos americanos e buscam refazer o cinema nacional a partir de nossas verdadeiras raízes culturais") e filmes colonizados ("aqueles que utilizam as fórmulas pornográficas e violentas do cinema estrangeiro"). Como exemplo do primeiro caso Glauber cita Macunaíma. No segundo grupo, se encontram "as habituais comédias de iê-iê-iê ou os filmes de sexo que infestam o mercado" (RCN, p. 200. Grifos do autor).

O exemplo de Macunaíma permitirá que Glauber alie cinema de mercado às "verdadeiras raízes culturais" brasileiras. Mas nem assim a chanchada será assumida como fonte de referência nas análises que Glauber fará do sucesso de público do filme de Joaquim Pedro. A figura ímpar de Grande Otelo não terá tanta importância para Glauber quanto a valorização da Semana de 22 e do Tropicalismo. Macunaíma-filme permite a Glauber falar de público e de mercado sem o constrangimento que Roberto Farias e suas chanchadas de iê-iê-iê impunham. O sucesso de público de Macunaíma não ofende porque sempre se pode minimizar a figura de Otelo e maximizar Mário de Andrade; porque, com o auxílio luxuoso da indústria fonográfica pop de Roberto Carlos/Guilherme Araújo/Caetano/Gil/Mutantes/Jorge Ben, Macunaíma responde ao projeto ideal de um "cinema industrial de vanguarda"; porque em Macunaíma-filme a cultura popular pode ser consumida distanciadamente e a chanchada é filtrada pelo olhar intelectualizante de um dos mais sofisticados diretores do cinema novo.

Naquele momento de afirmação de um projeto industrial para o cinema novo, Macunaíma será o filme desejado, e o Tropicalismo a senha para a aproximação com o mercado. Depois de 1969, com a gradual cooptação do cinema novo pelo Estado, este projeto terá de ser readaptado. E Glauber continuará a pensar, em termos do embate público/obra, as heranças de um cinema brasileiro nunca realizado como indústria.

A chanchada como Política Nacional de Cultura

Sob o controle estatal, o projeto do cinema novo esfacela-se e o diálogo de seus remanescentes com o mercado se faz impulsionado pela crescente penetração da Embrafilme no setor de distribuição e produção de filmes. No campo estético, uma nova conjuntura orienta os projetos cinemanovistas para a estratégia dos sucessos de bilheteria. Desde 1969, as comédias eróticas (pornochanchadas) estabelecem focos e linhas de produção independentes do modelo estatal da Embrafilme, tanto no Rio (Beco da Cinelândia) quanto em São Paulo (Boca do Lixo), redefinindo e atualizando a chanchada como fenômeno de produção vinculado ao mercado exibidor.

Se para o cânone cinemanovista glauberiano o "autor-artesão" Roberto Farias é uma figura-problema; se na virada dos 60 para os 70 Macunaíma surge como revolução tropicalista irrealizada – o "lado virgem" da utopia "estética revolucionária/popular" (RCN, p. 200) –, os anos da Política Nacional de Cultura (Médici/Geisel) trazem para Glauber um novo personagem redentor: Carlos Diegues.

Já em 1970, Glauber construía Diegues como um realizador dotado de visão totalizante do próprio cinema brasileiro, autor de uma espécie de antologia temático-estilística, intitulada sintomaticamente Os Herdeiros (1969). Para Glauber, "Os Herdeiros é o primeiro filme brasileiro que faz um inventário completo do cinema urbano brasileiro desde aquele, mudo, de Humberto Mauro até Terra em Transe. As imagens grotescas de Terra em Transe, mais hispânicas do que portuguesas [...] são destruídas no lirismo naif do velho Mauro, na imaginação satírica dos velhos filmes musicais brasileiros e são reconhecidas como as imagens concretas, paridas pelo poder político brasileiro, de Vargas até a queda de Goulart" (RCN, p. 207). A consciência aglutinadora presente em Os Herdeiros, que alinha o filme à proposta tropicalista então na moda, não deixa de agregar a chanchada (os "velhos filmes musicais brasileiros") como um traço estético tradicional.

Em 1969, ano de Os Herdeiros, a chanchada era uma referência cult de realizadores como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci, João Silvério Trevisan, Carlos Reichenbach. Já em 1976 a situação era bem diferente: a pornochanchada existia como fenômeno mercadológico efetivo, da mesma forma como o Estado respondia pela legitimação "nacional-popular" dos filmes "cinemanovistas". O diálogo com a chanchada – consubstanciada em sua versão erótica – passava pelo aqui-agora das relações mercadológicas e culturais e não era mais possível fechar os olhos a esta realidade. É neste contexto que a trajetória de Carlos Diegues será construída por Glauber como um triunfal encontro de um artista com o povo, sendo Xica da Silva seu troféu maior.

Lembrando o método crítico de autor, Glauber procede a uma individualização do conjunto de filmes dirigidos por Diegues, unificando os temas em grandes elipses, obra a obra. Assim, "Ganga Zumba, epopéia da escravidão negra no seiscentos colonial do açúcar, é a fuga da senzala pro quilombo, ritual preparatório através do qual Zumbi ressuscitaria travestido em Xica da Silva, o filme brasileiro por excelência, aquele que, em altíssimo grau de abstração, materializa dialeticamente em Barroco Tropical a Chanchada, a Vera Cruz e o Cinema Novo, fertilizantes de nosso específico fílmico" (RCN, p. 317. Grifos do autor).

A assunção da chanchada como um dos elementos que compõem o "específico fílmico" brasileiro é reflexo de uma nova conjuntura cultural. A partir de Xica da Silva, Glauber enxergará retrospectivamente, nos outros filmes de Diegues, a presença dos "velhos filmes musicais brasileiros", tomando em cada caso uma atitude diferenciada. Em A Grande Cidade (1966), por exemplo, reconhece um "chanchada touch carioca [...] amargurado pela trágica realidade do subdesenvolvimento" (RCN, pp. 318-319). Quando o Carnaval Chegar (1972) colocava Chico Buarque de Hollanda "no centro das decisões ideológicas da arte brasileira", não sendo, por isso, "um simples filmusical daqueles alienantes da Atlântida que tanto agradam ao liberalismo conformista de certos críticos e intelectuais" (RCN, p. 322). Mais adiante, no mesmo texto, Glauber se decide: "Quando o Carnaval Chegar é o único filmusical do cinema novo, o primeiro depois da Atlântida, a primeira chanchada de esquerda e, por isso mesmo, violentada pelos preconceitos gerais" (RCN, p. 323).

Contudo, as honras ficarão mesmo é com Xica da Silva, filme que, segundo Glauber, dá, "pela primeira vez, um sentimento brasílico a nosso cinema". As razões para esta afirmação se encontram na "originalidade" que vem da combinação entre os atores e a "cenografia tropicalista, cuja ideologia expressionista/épica é a marca registrada." Novamente, o tropicalismo serve como panacéia para o repúdio à (porno)chanchada. Em um esforço de síntese, Glauber elabora uma alegórica visão crítica em forma de samba-enredo: "a Escola de Samba Alegria de Viver representa o Enredo de Ganga Zumba dentro do Palácio de Os Herdeiros de Joana Francesa Quando o Carnaval Chegar na Grande Cidade..." (RCN, p. 330). No elogio glauberiano, Diegues não vai ao "povo", apenas. Ele simplesmente é o próprio "povo". Através de Carlos Diegues e do sucesso popular de Xica da Silva, Glauber pode redefinir os termos com os quais abordará o "nacional-popular" tutelado pelo Estado (a Política Nacional de Cultura), buscando recolocar o projeto original do cinema novo em enfrentamento com os laços da tradição cinematográfica brasileira. Este processo é marcado pelas tensões e oscilações: os fantasmas da Vera Cruz e da Atlântida continuam assombrando os alicerces teóricos de Glauber, que, no entanto, não deixa de reafirmar o cinema novo como marco zero: "A chanchada é o câncer conformista do subdesenvolvimento. A Vera Cruz, o apanágio da megalomania. O cinema novo é a síntese criadora do cinema brasileiro popular internacional" (RCN, p. 321).

Penetrando no Trem-Fantasma

Vimos, até aqui, as diversas formas pelas quais Glauber Rocha problematizou a chanchada como um dos laços de tradição do cinema brasileiro. No entanto, todas as aproximações com o gênero foram tangenciais, intermediadas pelas obras de outros cineastas, notadamente os diretores ligados ao cinema novo. Examinaremos agora como Glauber Rocha encarou de frente esta tradição, abordando diretamente a chanchada e a Atlântida em alguns artigos datados de 1975 e 1976, publicados em Revolução do Cinema Novo.

No texto "Atlântyda 76", a forma como Glauber se referirá a Luiz Severiano Ribeiro Júnior sinaliza o reconhecimento da necessidade de uma aliança estratégica: "Personagem secreto, quanta ingenuidade não saber que Severiano Ribeiro is a great artist, o único produtor roliudiano do Brasil" (RCN, p. 285). Glauber segue descrevendo Ribeiro como "o homem que controla o mercado carioca nordeste norte e algumas praças sulistas do cinema e dono de estúdio, de laboratório, de sonoplastia, de distribuição, de exibição, o maior produtor brasileiro" (RCN, pp. 286-287).

A chanchada continua sendo vista como sintoma de um subdesenvolvimento cinematográfico e cultural, mas Glauber ressalta traços "esquerdistas" em Severiano Ribeiro, quando este produz a chanchada "antiamericana" O Homem do Sputnik (1959). O que é curioso nesta operação, é que Glauber fará a abordagem da Atlântida não pelo viés dos filmes ou dos diretores, ou ainda dos atores: sua preocupação é a de caracterizar a Atlântida através da figura um tanto misteriosa do poderoso Severiano Ribeiro como um personagem-chave na tradição de um cinema brasileiro popular. Esta aproximação é simetricamente oposta à de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), no qual o elogio aos "independentes" e ao projeto inicial da Atlântida (Moleque Tião), bem como uma natural identificação entre o mercado exibidor e Hollywood, não permitiriam a recuperação de um nome como Severiano Ribeiro.

Bem diferente é o tratamento dado aos atores. Em um artigo de 1975, Glauber classifica ironicamente Oscarito e Grande Otelo como bons "cineatores". Contudo, ambos "interpretavam um cretino de classe média e um negro pateta ao lado de uma burguezinha Eliana e de um galã Anselmo Duarte lutando contra uma gang chefiada por José Lewgoy: o público ria, os cineatores eram caricaturas de atores roliudianos e os filmes eram copiados por Macedo, Burle ou Manga sob ordens de Luiz Severiano Ribeiro Júnior" (RCN, p. 260). A abordagem da chanchada através da figura do produtor faz Glauber desenhar uma linha de continuidade entre Severiano e Herbert Richers, que criaria uma "neochanchada" (RCN, p. 283).

Um ponto de convergência entre a Atlântida e a Vera Cruz é notado por Glauber em Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte (1957). Mas Zampari e Severiano não são os pais desejados por Glauber, que vê em Nelson Pereira dos Santos o aglutinador/deflagrador necessário à assimilação teórica de um neo-realismo carioca, impossível em Humberto Mauro: "O cinema do Nelson é diferente da Vera Cruz e da chanchada. Mostra o povo nas ruas, nas favelas, problemas econômicos, políticos, sociais, psicológicos de algumas áreas do Rio de Janeiro." (RCN, p. 281)

Anos mais tarde (1980), a perspectiva de um embate entre a chanchada e o cinema novo é retomada como uma briga entre produtores independentes: "Os trusts dos exibidores, sobretudo Luiz Severiano Ribeiro Júnior, Florentino/Cia., Paulo Sá Pinto, Lívio Bruni, etc., estavam consumindo produto euramericano e o Cinema Novo teve de enfrentá-lo num corpo a corpo com Roberto [Farias] na linha de frente, Luís Carlos Barreto contra Osvaldo Massaini, Herbert Richers, Mazzaropi, Luiz Severiano Ribeiro [...]" (RCN, p. 404). Glauber enfim se vê diante da necessidade de uma redefinição dos laços de tradição entre o "cinema novo" e o "cinema brasileiro". E se pergunta: "Quais são as raízes nacionais do Cinema Novo?" Num esforço de síntese que nos remete a uma segunda revisão crítica, Glauber condensa desta forma os laços de tradição da história do cinema brasileiro:

"I. Limite (Carneiro, Pedro, Saraceni, Leon, David...)
II. Mauro (Todos nas idéias e no estilo, sobretudo David... Walter...)
III. Chanchada (Nelson, Cacá, Glauber...)
IV. Vera Cruz (Roberto, Glauber, Cacá...)
V. Cinema Novo/dele mesmo outras coisas [...]" (RCN, p. 404)

A chanchada em Glauber Rocha

É possível, numa primeira aproximação, identificar com facilidade alguns elementos da chanchada que Glauber conscientemente usa como apenas mais uma peça para a construção barroca de seus filmes. Imediatamente nos vêm à cabeça a figura do Senador (Modesto de Souza) sambando desengonçadamente na cena do comício de Vieira no Parque Lage, em Terra em Transe (1967). Ou mesmo a figura do populista Vieira, encarnada por José Lewgoy, no mesmo filme. Podemos ainda relacionar a dupla Hugo Carvana/Antônio Pitanga, em Câncer (1968-72) como uma espécie de Oscarito e Grande Otelo udigrudi.

No entanto, a relação entre Glauber e as chanchadas passa também por uma concepção de montagem, que tem na música o seu ponto de partida.

Em um longo depoimento a Michel Ciment (1967), Glauber afirma que quase todos os cineastas cinemanovistas são músicos, e que a música tem uma função preponderante não só em seus filmes como também no dos outros cineastas. E explica que, nestes filmes, a música não funciona apenas como um "comentário", mas é um "elemento tão importante quanto os diálogos e a fotografia". Como exemplo, cita Garota de Ipanema (1968), um musical de Leon Hirszman, em que os personagens são "compositores e cantores" (RCN, p. 84).

Dois anos depois, numa entrevista aos Cahiers du Cinéma (1969), Glauber esclarece de que maneira a música interfere na estrutura narrativa de seus filmes: "Gostaria de fazer um filme completamente musical, sem ser cantado mas que tivesse uma estrutura musical, com uma montagem nas projeções e nos espaços musicais que ficasse entre a música clássica de Villa-Lobos e a música bastante moderna de Marlos Nobre" (RCN, p. 178).

A valorização da música vai muito além do simples comentário melódico de fundo ou mesmo da encenação musical/coreográfica tradicional: para Glauber, a musicalidade é uma questão de montagem. E, como tal, está aliada aos processos mentais de ordenação do espaço e do tempo. É nesse sentido que Glauber irá valorizar a música como estrutura narrativa e leitura política de um tema. A música é, portanto, também uma mise-en-scène: "Muito mais do que nos livros, é na música brasileira onde se encontra a verdadeira história e a verdadeira sociologia do Brasil. São os negros, os autores de samba no Rio, aqueles que fazem a história do Brasil e a crítica de tudo. Podemos até mesmo encontrar nesta música as estruturas mentais do povo" (RCN, p. 178).

A música como montagem, a montagem como música: este duplo entendimento leva Glauber a formular, na crítica dos filmes de seus colegas, um esboço teórico de um estilo de montagem. Glauber refere-se a Quando o Carnaval Chegar, de Diegues, como um "Samba/Montagem de Cacá e Eduardo Escorel" (RCN, p. 322). Sobre Macunaíma, dirá que "é um samba modernista em forma de cinema." (RCN, p. 207). As metáforas musicais deixam de ser impressionistas na medida em que Glauber vai depurando a análise deste estilo musical de fazer cinema. A novidade dos filmes (Macunaíma, Brasil Ano 2000, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e Azyllo Muito Louco, entre outros) estaria na "concepção do espetáculo", já que "tudo se passa no interior do quadro". Como vimos, em 1969, esta concepção é chamada por Glauber de "tropicalista". Já nos anos 1970-80, definem, para ele, um estilo cinemanovista de filmar, criado pelo próprio cinema novo. Quando o Carnaval Chegar, por exemplo, "é a refilmagem de Cantando na Chuva, com um roteiro cepecista de Brecht e o estilo corte e costura do cinema novo, quer dizer: enquadração frontal e montagem sem contra/plano: uma das múltiplas invenções do cinema novo, graças à escola fotográfica de Luiz Carlos Barreto e montagem de Eduardo Escorel" (RCN, p. 323. Grifos do autor).

Para além do fato de que Macunaíma, Brasil Ano 2000 e Quando o Carnaval Chegar, para ficarmos nos exemplos mais evidentes, devem muito de sua mise-en-scène ao filme musical e à chanchada, a constatação de Glauber de que o cinema novo teria "inventado" este estilo "corte e costura" de enquadramentos frontais e sem contraplanos simplesmente quer apagar a herança da própria encenação típica das chanchadas. A frontalidade, a solução de situações condensadas em poucos planos, a exploração do gestual do ator em um cenário artificial, a denúncia do espaço cênico, todos estes elementos são fartamente utilizados pelas chanchadas. E estão presentes na própria concepção em plano-seqüência de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Em um depoimento aos jornalistas Pedro Del Picchia e Virginia Murano, em 1980, Glauber reafirma que a montagem foi uma das "maiores contribuições do cinema novo no terreno da linguagem." Haveria nos filmes cinemanovistas (Glauber não cita nenhum em especial) uma "nova noção de ritmo e continuidade". A matriz brechtiana evitaria o psicologismo do "melodrama burguês" enquanto a "continuidade clássica" é substituída por uma "descontinuidade dramática". O que importa não é a "exposição desenhada e cronológica dos acontecimentos", mas a "demonstração dos momentos mais importantes dos acontecimentos", isto é, cada plano sintetiza um fato. E Glauber prossegue: "A conjugação desses planos provocou um ritmo muito mais próximo do samba do que da valsa. [...] A música popular brasileira foi redescoberta pelo cinema novo com uma função ideológica e explicativa. Hoje é raro o filme nacional que não use naturalmente os recursos da música popular brasileira [...]".

Muito mais do que Humberto Mauro, são as chanchadas – mesmo ou principalmente as mais desleixadas – que trabalharam este estilo de montagem "mais próximo do samba do que da valsa", na interpolação de números musicais, na descontinuidade narrativa que é gerada por essas interpolações. Resulta que a "montagem nuclear" inventada por Glauber em Di (1977) e em A Idade da Terra (1981) – isto é, o "cinema moderno" –, encontra sua origem não em Humberto Mauro, mas – por exemplo – em Lulu de Barros. Isto percebiam Rogério Sganzerla e Júlio Bressane já em 1970, nos filmes da Belair.

Para abordarmos A Idade da Terra – um dos filmes em que mais diretamente podemos falar em procedimentos de chanchada filtrados pelo diálogo tropicalista/experimental – gostaria de dar lugar a um outro crítico e diretor contemporâneo de Glauber: David Neves. Em um ensaio intitulado "Da Chanchada ao Cinema Novo"3, David se refere ao primarismo das chanchadas e aos seus defeitos gritantes. Tomarei a liberdade de utilizar alguns trechos destes comentários de David Neves feitos em 1966, para me referir à Idade da Terra.

Para o crítico, os cineastas brasileiros são "primitivos e prolixos", sendo que a chanchada "é especificamente falante e exagerada. Grita, não fala. Salta aos olhos. Aboliram-se na chanchada os conceitos de mise-en-scène e de linha narrativa contínua e pode-se notar com facilidade que o falar é independente do agir: os personagens posam para falar e estão sumamente preocupados com a clareza de suas palavras". Este trecho do texto de David Neves define de maneira cristalina os procedimentos de chanchada presentes em A Idade da Terra (e afirmo aqui que não os tomo pejorativamente). A Idade da Terra abole os vínculos com o cinema narrativo e joga para primeiro plano um tipo de representação em que o falar e o agir estão, em diversos momentos, em franca dissociação. E não só os atores gritam: o próprio Glauber, fora de cena, dá ordens aos berros, e exige que os atores falem mais e mais alto: "Dez tons mais alto, Geraldo!!!". Os personagens também "posam para falar" e não basta que digam a frase uma vez, mas diversas vezes (basta lembrar a cena de Tarcísio Meira e Danuza Leão no Amarelinho). Brahms (Maurício do Valle), com seus "erres" puxados e guturais, é a própria caricatura chanchadística do americano/alemão idiota e canceroso. Em A Idade da Terra a tela como palco e a dicção em alto volume são exigências da direção de Glauber.

Em sua análise sobre a chanchada, David Neves acaba encontrando o estilo cinemanovista de enquadramentos frontais que Glauber irá formular a partir de 1969: "O enquadramento tende especificamente para a estratificação e a rigidez. O personagem está evidente e explicitamente à disposição do espectador e, como num palco, sua dicção tem o volume bastante acentuado".

A Idade da Terra, vista através de seu diálogo com a chanchada, nos desenha aos poucos a imagem de seu diálogo com o cinema experimental/Belair. Pois o que há de comum em Sganzerla/Bressane e Glauber é a chanchada.

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A forma como Glauber Rocha lê historicamente o cinema brasileiro se processa, portanto, através de um discurso que estabelece uma tradição a ser renegada, incluindo aí as chanchadas e a Vera Cruz, e uma tradição que deve ser afirmada, na figura de Humberto Mauro. As brechas abertas pelo discurso glauberiano em relação às chanchadas nos ajudam a descobrir pontos de luz sobre outros laços de tradição até então pouco valorizados na construção teórica e prática de um estilo cinemanovista, empreendida por Glauber em seus textos e filmes.

Luís Alberto Rocha Melo

1. Não utilizo as reedições, e sim as edições antigas: Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, e Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981

2. SANTOS, Nelson Pereira, ROCHA, Glauber e VIANY, Alex. "Cinema Novo: Origens, Ambições e Perspectivas". In: Revista Civilização Brasileira. (1) Rio de Janeiro: mar 1965, pp. 183-196.

3. NEVES, David. Cinema Novo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966, pp. 14-16.