A
produção brasileira do ciclo denominado “retomada” foi
pontuada, com alguma frequência, por produções com
orçamento “super” e uma prática anêmica do cinema. Muitos
desses casos são “histórias de época”, que precisam
de muito material para se fazer visível. Tentam se legitimar
culturalmente com a visita ao passado, o que, aparentemente,
os desobriga da legitimidade estética. Esse verniz educativo
justifica gastos signicativos com figurinos, cenografias
e com construção de estúdios de ocasião, mas, quando
as imagens chegam à tela, parecem estar retornando ao
passado do cinema, mais que reconstituir, no quadro,
o passado dos personagens e de seus ambientes. Gaijin–
Ama-Me como Sou, de Tizuka Yamasaki, sofre desse
problema crônico.
Em qualquer momento da narrativa, vemos uma representação
dura, aparentemente vacinada contra as experiências
modernas. Os anos 50 estão de volta. Persegue-se aqui
o modelo da Vera Cruz, de cinema de estúdio, alérgico
ao contato mais direto com a vida e avesso à uma forma
fluída de representação, como se faltasse óleo nas engrenagens.
Um cinema que cheira à naftalina, que não tem respeito
pela forma audiovisual, que almeja a comunicação em
larga escala, na base de uma dramaturgia de desilusões
e lágrimas, mas faz isso de forma rocambolesca, com
excessos dramáticos mal administrados e descuidos visuais
quase precários.
Uma grua sobe até o teto de uma casa enquanto o narrador
masculino começa a falar na primeira sequência. Outras
gruas ocuparão a tela, sem nenhum necessidade aparente.
Parecem empregadas porque o produtor pagou por elas,
porque a produção tem de ficar com embalagem grandiloquente,
porque filmar do alto parece filmar maior, porque prova
o orçamento na tela, porque mostra haver estrutura para
se fazer cinemão. Gaijin almeja essa grandiloquência,
em todos os sentidos. Até nos detalhes.
Diante de uma máquina de datilografar, por exemplo,
o narrador questiona sua origem (“Quem sou eu? Que país
é esse?”). A razão de sua expressão em palavras é grave.
Ele escreve para entender o motivo e o significado da
fatalidade em sua família. Narrativa como produtora
de sentidos, não dos próprios sentimentos e da relação
com o mundo, como em O Homem que Copiava, de
Jorge Furtado, mas de um sentido para a falta de lógica
da vida, mesmo sendo esse absurdo da existência, em
última instância, produzido pela ignorância do homem
e pelo contexto histórico.
Estamos em tema familiar: o do entendimento do sujeito
pelo percurso dos ascendentes, da árvore genealógica
cultural-geográfica. O narrador não é nem brasileiro,
nem japonês. Estrangeiro em qualquer lugar. A orfandade
do pertencimento. Essa é a questão de Gaijin 2.
Parte da geração seguinte da família tematizada retornará
às “raízes”. A esfacelada unidade familiar encontra
seu núcleo geográfico e cultural em outro estágio histórico
e social no qual estava quando a matriarca saiu do Japão.
O mundo dos deslocamentos desagrega valores e estruturas
de elos. Fechar-se na própria cultura, porém, sem abrir-se
às “misturas”, também não é boa coisa. Esses são os
interesses de Gaijin. Simples assim. Lá no filme,
contudo, parece confuso.
Corte para 1900. Veremos parte dessa origem do narrador,
algo da ponte entre passado e presente, embora, na prática,
esse narrador seja apenas um expediente narrativo, sem
jamais superar a importância de um figurante com voz.
Não é a subjetividade dele, tampouco seu conflito de
identidade, que está em jogo. É a das mulheres de sua
família. No passado, vemos a desilusão de não se encontrar
a terra prometida no Brasil. Pululam as desgraças pessoais,
a resistência diante das derrotas. O contexto histórico
interfere diretamente no percurso dos personagens, em
suas dores, formata as percepções da vida, mas a exibição
da pesquisa feita para o filme asfixia a força das experiências.
Ao sintonizar os percursos pessoais com o do Brasil,
Tizuka Yamasaki espalha legendas pela narrativa. Parece
cinema com nota de pé de página incorporada às cenas
e diálogos.
Gaijin 2 tem uma confusa dramaturgia de projeto-escola,
comprometida no didatismo (e não por ele), à qual se
soma uma produção grandiosa minada pela anemia estética.
O texto primário soma-se à dublagem precária. É um filme
duro de ouvir, pois, a todo momento, parece estar nos
ensinando, nos revelando algo de sua proposta de colar
os seres à história coletiva, sem, com isso, fazer a
proposta ter vida cinematográfica. Há momentos nos quais
se pode vislumbrar a filmagem e não o efeito dela. A
reconstituição é toda fake, quase paródica, e
nos mostra a impossibilidade, nessa viagem no tempo,
de nos instalar no passado. Tudo soa mal ajambrado,
desengonçado no encadeamento das imagens.
Há uma ausência de busca de estilo, um desrespeito ao
olhar, cortes grosseiros na mudança de ângulos. A trilha
sonora entra em guerra com as imagens, em tentativa
de levantar a impotência visual. Os blocos vão se acumulando
como uma série televisiva mal realizada. A narrativa
tentar dar conta de período longo e de várias questões,
mas com experiências de curta duração, sem o senso do
cotidiano, dos espaços, da duração das experiências.
Importa a quantidade de acontecimentos e sua gravidade.
Quer-se atingir o “grande tema”, sem estofo para isso.
Não há tempo para se tomar fôlego, para a vida se normalizar,
de modo a poder entrar em crise. Colapso permanente
não produz efeito. Mesmo os colapsos acidentais.
Cléber Eduardo
|