2 FILHOS DE FRANCISCO - A HISTÓRIA DE ZEZÉ DI CAMARGO E LUCIANO
Breno Silveira, Brasil, 2005

O filme baseado nas vidas dos cantores Zezé di Camargo & Luciano ia se chamar, num primeiro momento, É o Amor – mas acabou-se optando por um título que não deixasse tão clara a relação com a música da dupla. Nome do grande sucesso que os lançou nacionalmente, a canção surge no filme pela primeira vez nos 15 minutos finais, cantada por Maria Bethânia.

A soma destas duas informações, uma pré-filme e outra presente dentro dele na sua forma final, dá uma possível chave de interpretação do principal problema que 2 Filhos de Francisco apresenta: há, desde sempre, um indisfarçável sentimento de “vergonha” que cerca o trabalho, a começar no que se refere à música da dupla que o filme traz às telas. Desde a primeira notícia sobre a realização do filme, até praticamente todas as críticas ou matérias divulgadas agora no seu lançamento, em algum momento sempre existe uma menção, mesmo quando se deseja elogiar o filme (e a maioria elogiou), ao fato de que ele seria “popular, mas ainda assim de qualidade”. Ou seja: o filme deseja se colocar sempre “acima” da música dos irmãos que deram origem a ele. Trata-se de algo que até poderia ser considerado como um tema externo à análise do filme (uma vez que os filmes não devem dar conta de sua recepção), ou talvez mais referente aos assuntos de sua comercialização (se tratarmos do título, do trailer), mas os dois exemplos com que abrimos este texto provam que esta questão foi completamente internalizada na realização dele – e não são os únicos exemplos, como queremos demonstrar no texto que segue. Por isso tudo se torna premente mencionar de saída o tema, tomando sempre o devido cuidado de notar que não se deve cair no erro de localizar a discussão fora do filme, e sim ver dentro dele aquilo que pode ser visto como problema advindo desta questão.

Não se trata aqui, óbvio, de defender um purismo cinematográfico ingênuo, como se inclusive a própria música da dupla biografada não fosse ela mesma uma derivação de uma música regional brasileira. Trata-se apenas de pedir a coerência de, uma vez escolhido um tema a ser filmado, não se ficar constantemente escondendo qual é ele. Não se trata, portanto, de comparar 2 Filhos de Francisco negativamente em relação ao cinema popular de um Mazzaropi, por exemplo, como se ignorássemos que século XXI não é a década de 50. Mas, o que se quer discutir aqui é esta operação de pegar um Caetano Veloso para compor e selecionar a trilha do filme (o que não é, entenda-se também, uma operação estranha a Caetano, que sempre transitou entre gêneros e registros sem preconceitos – mas sim uma que muitas vezes resulta estranha ao filme, como na cena citada acima) ou, principalmente, a escolha do pessoal da Conspiração, com seu “sinônimo de qualidade” para realizar o filme. Não se trata aqui de estabelecer uma patrulha, como se houvesse uma segregação de profissionais “adequados” aos temas – estas escolhas poderiam, sim, até ser bem sucedidas. Mas, quando olhamos para o filme o que vemos é que ele se ressente claramente do resultado desta dualidade constante da busca de um “cinema de qualidade” ao fazer um “cinema popular” – quando, na verdade, ambas as expressões não parecem significar muito se vistas no contexto do filme.

O que notamos é que o fantasma que assombrava Zezé di Camargo & Luciano na gênese do projeto, seja conscientemente ou não, era o da síndrome do Cinderela Bahiana. Afinal, quem esquece o filme dirigido por Conrado Sanchez em 1998? Ou, melhor seria dizer (uma vez que o filme em si muita gente não só esquece, como nem viu): quem esquece o fracasso desta empreitada? Levada adiante pelo produtor A.P. Galante, ligado diretamente ao cinema da Boca do Lixo nos anos de 1970-80, aquele filme buscava se aproveitar de uma “estrela popular” do momento (Carla Perez), urdindo em torno dela uma trama ficcional para ser lançada para o grande público. O tamanho do fracasso do filme pode ser considerado um marco indelével do fim da possibilidade comercial de um determinado conceito de “cinema popular” no Brasil (tendo, inclusive, representado o final do trabalho de Galante com o cinema, pelo menos até agora).

Pois, quando Zezé di Camargo & Luciano decidem adaptar suas vidas para o cinema, com certeza a experiência de Cinderela Bahiana não estava longe de suas idéias, tanto como resultado comercial quanto pelo desprezo e escárnio crítico e de opinião popular com que o filme foi recebido – e com que, neste último caso, a música da dupla é percebida. Entra em cena, então, o pessoal da Conspiração Filmes, representantes diletos do “cinema de qualidade”, versão Brasil anos 2000. A simples associação com eles asseguraria ao filme da dupla uma outra recepção – e não tem nada de errado nisso, a priori.

No entanto, há pelo menos duas coisas esquecidas aí: primeiro, que, curiosamente, a Conspiração, para além da sua “qualidade”, não produziu até hoje ainda um autêntico sucesso popular no cinema (nem mesmo na sua tentativa mais extremada disso, com o filme do Casseta e Planeta, onde também se alegava um know-how cinematográfico na associação de objeto e realizadores, que se mostrou completamente inexistente). Este ponto do sucesso, até pela inteligente campanha de marketing deste filme agora, mesmo que precisasse ser mencionado, deve virar parte do passado. Porém, nos interessa mais aqui o segundo ponto, que é o que afeta o filme em si, na sua forma final: se há um ponto em comum em quase todos os filmes da produtora é seu formato incrivelmente claudicante no que se refere à narrativa cinematográfica. Com a possível exceção de Eu, Tu, Eles (ainda assim, faz-se já necessária uma revisão), se há um ponto em comum entre os filmes de ficção da produtora, indo dos mais ambiciosos artisticamente (pensemos em Casa de Areia ou em Redentor) aos mais “populares” (o já citado filme do Casseta e Planeta), passando pelos filmes meio-termo (O Homem do Ano, Bufo e Spallanzani) é sua dificuldade em articular uma dinâmica de personagens e desenvolvimento narrativo que se sustente ao longo da duração de um longa-metragem.

Abramos aqui um parêntese, voltando a um mal entendido clichê crítico dos anos 80 e principalmente 90: o da linguagem publicitária no cinema. Afinal, muito se entendeu como “linguagem publicitária” uma opção estética de um filme que passaria pela fotografia embelezadora e/ou pela direção de arte cheia de “frufrus”. Isso é um equívoco comparável somente aos que afirmariam que “linguagem televisiva” é o primado do close ou que o corte rápido explicita uma “linguagem do videoclipe”. Ora, todos estes conceitos são facilmente refutados pelo simples fato de que nem o close é criação da TV, nem o embelezamento artificializado e o esteticismo agudo são invenções da publicidade, nem os cortes rápidos são inovações do videoclipe. Pelo contrário, poderia-se com mais facilidade afirmar que a TV, a publicidade e o videoclipe é que foram buscar estes elementos na linguagem cinematográfica anteriormente existente, entendendo-os tão somente como os artifícios constitutivos desta que melhor serviam a suas necessidades específicas.

Pois bem, mas se não é isso a linguagem publicitária, o que é? Me parece que a questão é muito menos estética (ou pelo menos, não principalmente estética), do que narrativa. Se há um específico da publicidade é a necessidade de condensar uma idéia numa duração curtíssima, fazendo com que ela seja ao mesmo tempo absolutamente inteligível (coisa que os curtas, por exemplo, não precisam ser, necessariamente) e podendo “significar” com o mínimo de elementos. É uma linguagem que aposta, portanto, na obviedade, na rapidez, e na inteligibilidade plena.

Pois bem, porque abrimos um parêntese sobre o tema? Porque não é segredo para ninguém que os diretores e técnicos (especialmente fotógrafos e editores) da Conspiração se formaram e/ou trabalham mais comumente, no seu dia a dia, com a linguagem publicitária (e também com o videoclipe, é verdade). Quando eu menciono isso, ao contrário do que geralmente se faz querer parecer, não é porque criaria um problema moral prévio quando eles passam ao cinema (nada de “oh, publicitários querem ser cineastas!”), mas querendo atentar para uma questão absolutamente da prática habitual de uma profissão: treinados e escolados no pensamento voltado para um determinado formato audiovisual específico (no caso, o do comercial), que possui regras e objetivos próprios, o que os filmes da Conspiração costumam demonstrar, em média (e é isso que importa, não estabelecer um parti-pris, e sim uma análise dos objetos produzidos), é uma dificuldade de adaptação, essencialmente no quesito da narrativa, ao formato do cinema de longa-metragem. É apenas natural que, quando realizando um trabalho audiovisual de qualquer tipo, estes profissionais se escorem nas soluções e conceitos que dominam melhor, com os quais trabalham no dia a dia e que os servem muito bem. Absolutamente natural, eu diria.

E é aí que voltamos a 2 Filhos de Francisco: aquilo de que o filme se ressente é simplesmente a capacidade de desenvolver a contendo a narrativa que ele se dispõe a fazer, em termos cinematográficos. Basta pegarmos sua estrutura cena a cena: não há, salvo exceções, diálogos no filme com mais de dois minutos de duração. Nenhuma cena possui vida própria, vida isolada. Não há, seja nas atuações, na encenação ou no trabalho entre câmera e edição, nenhuma sequência onde os personagens possam respirar, existir como tais na tela. Todas as cenas do filme são telegráficas, a serviço de um objetivo puramente informativo (o que vemos na tela é uma sequência onde há “a cena onde o pai dá os instrumentos para os filhos”, “a cena onde os filhos cantam em público pela primeira vez”, “a cena onde Zezé compõe É o Amor”, etc etc), e funcionam quase como tableau-vivants, sem respiro, sem autêntica emoção que venha da troca entre os personagens.

O resultado é uma mistura de um desenvolvimento de narrativa banal (e não apenas “simples”, que, isso sim, seria algo que se esperaria de um filme de grande comunicação), que segue passo a passo cada clichê do “filme biográfico” (onde se conhece de saída o sucesso final da empreitada, e se busca apenas ilustrar os passos da caminhada, um a um), com a facilidade de certas imagens e temáticas representativas de uma “brasilidade” tão óbvia quanto simplório é seu apelo (“o brasileiro é antes de tudo um forte”, “o interior como depositório de um Brasil mais autêntico”, etc). Claro que não se quer dizer aqui que as cenas não emocionam as pessoas que assistem, porque afinal é possível sim emocionar mesmo com um comercial de margarinas, em 30 segundos – há uma série de regras para conseguir isso, e elas sim são mais que dominadas pelos realizadores do filme. O que não há é uma operação de fato cinematográfica na gênese desta emoção, e sim um laboratório de pequenos golpes de linguagem (por mais sofisticados que sejam) em sequência. Não há, em nenhum momento da narrativa ficcional do filme, um centésimo da explosão de emoção (autêntica ou não, não me cabe julgar, só qualificar mesmo) que está no rosto e na interpretação de Zezé di Camargo na música cantada nas sequências finais, “documentais”, do filme. E não haver um equivalente ficcional desta emoção é que me parece a traição do nosso “cinema de qualidade” ao mais essencial destes personagens e sua comunicação popular.

Não é por acaso que as melhores sequências do filme são as que, abertamente, funcionam no registro mais próximo do videoclipe, como principalmente a montagem ao som da música sertaneja que condensa a viagem da dupla infantil do filme com o empresário interpretado por José Dumont, ou mesmo a cena da apresentação de Zezé e Zilu. Ali não incomodam os incessantes e incomodativos travellings laterais do filme, que vão do nada ao lugar nenhum com a aparente simplória missão de “não deixar a câmera parada” (seria medo de monotonia?). Não incomodam as interpretações monocórdias e recitativas da imensa maioria do elenco (os meninos são os que melhores se saem aqui, talvez até pela falta de experiência de atores). Ali, o filme flui, porque ali se está dispensado de construir de fato personagens e tempos de interação entre eles.

E é aí que voltamos ao início do texto: articular um cinema popular com a platéia de hoje em dia nos diferentes Brasis que se deseja atingir não constitui problema algum, e aliás alguns filmes têm feito isso, com méritos cinematográficos inegáveis (citemos, por exemplo, Cidade de Deus ou Lisbela e o Prisioneiro), enquanto outros são comunicativos sem possuírem interesse como obras de cinema. Ter um produto de acabamento técnico impecável também não é problema algum. No entanto, possuir uma das duas características não constitui necessariamente um cinema de qualidade, a não ser que se esteja tomando um “verniz de qualidade”, tão antigo quanto o cinema é cinema, por “qualidade” de fato. 2 Filhos de Francisco parece uma mistura de Carga Pesada com Hoje é Dia de Maria – e dos dois guarda todos os defeitos e vícios do que é o “audiovisual popular brasileiro de qualidade”.

Ou, por outra: 2 Filhos de Francisco de fato não é pior que a maioria dos filmes recentes do cinema brasileiro voltado para o grande público – mas também não é nada de muito melhor. Ou se é, é apenas no sentido em que possa ser considerado, talvez não melhor, mas certamente “mais bem sucedido”, do que um Cinderela Bahiana. Se esta era a questão em pauta, aí sim, missão cumprida. Mas a diferença me parece pouco mais do que a que separa um bonito, bem produzido e emocionante comercial de banco de um tosco e “sem-vergonha” (termo importante) comercial de loja de varejo do bairro.

Eduardo Valente