O
filme baseado nas vidas dos cantores Zezé di Camargo
& Luciano ia se chamar, num primeiro momento, É
o Amor – mas acabou-se optando por um título que
não deixasse tão clara a relação com a música da dupla.
Nome do grande sucesso que os lançou nacionalmente,
a canção surge no filme pela primeira vez nos 15 minutos
finais, cantada por Maria Bethânia.
A soma destas duas informações, uma pré-filme e outra
presente dentro dele na sua forma final, dá uma possível
chave de interpretação do principal problema que 2
Filhos de Francisco apresenta: há, desde sempre,
um indisfarçável sentimento de “vergonha” que cerca
o trabalho, a começar no que se refere à música da dupla
que o filme traz às telas. Desde a primeira notícia
sobre a realização do filme, até praticamente todas
as críticas ou matérias divulgadas agora no seu lançamento,
em algum momento sempre existe uma menção, mesmo quando
se deseja elogiar o filme (e a maioria elogiou), ao
fato de que ele seria “popular, mas ainda assim de qualidade”.
Ou seja: o filme deseja se colocar sempre “acima” da
música dos irmãos que deram origem a ele. Trata-se de
algo que até poderia ser considerado como um tema externo
à análise do filme (uma vez que os filmes não devem
dar conta de sua recepção), ou talvez mais referente
aos assuntos de sua comercialização (se tratarmos do
título, do trailer), mas os dois exemplos com
que abrimos este texto provam que esta questão foi completamente
internalizada na realização dele – e não são os únicos
exemplos, como queremos demonstrar no texto que segue.
Por isso tudo se torna premente mencionar de saída o
tema, tomando sempre o devido cuidado de notar que não
se deve cair no erro de localizar a discussão fora do
filme, e sim ver dentro dele aquilo que pode ser visto
como problema advindo desta questão.
Não se trata aqui, óbvio, de defender um purismo cinematográfico
ingênuo, como se inclusive a própria música da dupla
biografada não fosse ela mesma uma derivação de uma
música regional brasileira. Trata-se apenas de pedir
a coerência de, uma vez escolhido um tema a ser filmado,
não se ficar constantemente escondendo qual é ele. Não
se trata, portanto, de comparar 2 Filhos de Francisco
negativamente em relação ao cinema popular de um Mazzaropi,
por exemplo, como se ignorássemos que século XXI não
é a década de 50. Mas, o que se quer discutir aqui é
esta operação de pegar um Caetano Veloso para compor
e selecionar a trilha do filme (o que não é, entenda-se
também, uma operação estranha a Caetano, que sempre
transitou entre gêneros e registros sem preconceitos
– mas sim uma que muitas vezes resulta estranha ao filme,
como na cena citada acima) ou, principalmente, a escolha
do pessoal da Conspiração, com seu “sinônimo de qualidade”
para realizar o filme. Não se trata aqui de estabelecer
uma patrulha, como se houvesse uma segregação de profissionais
“adequados” aos temas – estas escolhas poderiam, sim,
até ser bem sucedidas. Mas, quando olhamos para o filme
o que vemos é que ele se ressente claramente do resultado
desta dualidade constante da busca de um “cinema de
qualidade” ao fazer um “cinema popular” – quando, na
verdade, ambas as expressões não parecem significar
muito se vistas no contexto do filme.
O que notamos é que o fantasma que assombrava Zezé di
Camargo & Luciano na gênese do projeto, seja conscientemente
ou não, era o da síndrome do Cinderela Bahiana.
Afinal, quem esquece o filme dirigido por Conrado Sanchez
em 1998? Ou, melhor seria dizer (uma vez que o filme
em si muita gente não só esquece, como nem viu): quem
esquece o fracasso desta empreitada? Levada adiante
pelo produtor A.P. Galante, ligado diretamente ao cinema
da Boca do Lixo nos anos de 1970-80, aquele filme buscava
se aproveitar de uma “estrela popular” do momento (Carla
Perez), urdindo em torno dela uma trama ficcional para
ser lançada para o grande público. O tamanho do fracasso
do filme pode ser considerado um marco indelével do
fim da possibilidade comercial de um determinado conceito
de “cinema popular” no Brasil (tendo, inclusive, representado
o final do trabalho de Galante com o cinema, pelo menos
até agora).
Pois, quando Zezé di Camargo & Luciano decidem adaptar
suas vidas para o cinema, com certeza a experiência
de Cinderela Bahiana não estava longe de suas
idéias, tanto como resultado comercial quanto pelo desprezo
e escárnio crítico e de opinião popular com que o filme
foi recebido – e com que, neste último caso, a música
da dupla é percebida. Entra em cena, então, o pessoal
da Conspiração Filmes, representantes diletos do “cinema
de qualidade”, versão Brasil anos 2000. A simples associação
com eles asseguraria ao filme da dupla uma outra recepção
– e não tem nada de errado nisso, a priori.
No entanto, há pelo menos duas coisas esquecidas aí:
primeiro, que, curiosamente, a Conspiração, para além
da sua “qualidade”, não produziu até hoje ainda um autêntico
sucesso popular no cinema (nem mesmo na sua tentativa
mais extremada disso, com o filme do Casseta e Planeta,
onde também se alegava um know-how cinematográfico
na associação de objeto e realizadores, que se mostrou
completamente inexistente). Este ponto do sucesso, até
pela inteligente campanha de marketing deste
filme agora, mesmo que precisasse ser mencionado, deve
virar parte do passado. Porém, nos interessa mais aqui
o segundo ponto, que é o que afeta o filme em si, na
sua forma final: se há um ponto em comum em quase todos
os filmes da produtora é seu formato incrivelmente claudicante
no que se refere à narrativa cinematográfica. Com a
possível exceção de Eu, Tu, Eles (ainda assim,
faz-se já necessária uma revisão), se há um ponto em
comum entre os filmes de ficção da produtora, indo dos
mais ambiciosos artisticamente (pensemos em Casa
de Areia ou em Redentor) aos mais “populares”
(o já citado filme do Casseta e Planeta), passando pelos
filmes meio-termo (O Homem do Ano, Bufo e
Spallanzani) é sua dificuldade em articular uma
dinâmica de personagens e desenvolvimento narrativo
que se sustente ao longo da duração de um longa-metragem.
Abramos aqui um parêntese, voltando a um mal entendido
clichê crítico dos anos 80 e principalmente 90: o da
linguagem publicitária no cinema. Afinal, muito se entendeu
como “linguagem publicitária” uma opção estética de
um filme que passaria pela fotografia embelezadora e/ou
pela direção de arte cheia de “frufrus”. Isso é um equívoco
comparável somente aos que afirmariam que “linguagem
televisiva” é o primado do close ou que o corte
rápido explicita uma “linguagem do videoclipe”. Ora,
todos estes conceitos são facilmente refutados pelo
simples fato de que nem o close é criação da
TV, nem o embelezamento artificializado e o esteticismo
agudo são invenções da publicidade, nem os cortes rápidos
são inovações do videoclipe. Pelo contrário, poderia-se
com mais facilidade afirmar que a TV, a publicidade
e o videoclipe é que foram buscar estes elementos na
linguagem cinematográfica anteriormente existente, entendendo-os
tão somente como os artifícios constitutivos desta que
melhor serviam a suas necessidades específicas.
Pois bem, mas se não é isso a linguagem publicitária,
o que é? Me parece que a questão é muito menos estética
(ou pelo menos, não principalmente estética), do que
narrativa. Se há um específico da publicidade é a necessidade
de condensar uma idéia numa duração curtíssima, fazendo
com que ela seja ao mesmo tempo absolutamente inteligível
(coisa que os curtas, por exemplo, não precisam ser,
necessariamente) e podendo “significar” com o mínimo
de elementos. É uma linguagem que aposta, portanto,
na obviedade, na rapidez, e na inteligibilidade plena.
Pois bem, porque abrimos um parêntese sobre o tema?
Porque não é segredo para ninguém que os diretores e
técnicos (especialmente fotógrafos e editores) da Conspiração
se formaram e/ou trabalham mais comumente, no seu dia
a dia, com a linguagem publicitária (e também com o
videoclipe, é verdade). Quando eu menciono isso, ao
contrário do que geralmente se faz querer parecer, não
é porque criaria um problema moral prévio quando eles
passam ao cinema (nada de “oh, publicitários querem
ser cineastas!”), mas querendo atentar para uma questão
absolutamente da prática habitual de uma profissão:
treinados e escolados no pensamento voltado para um
determinado formato audiovisual específico (no caso,
o do comercial), que possui regras e objetivos próprios,
o que os filmes da Conspiração costumam demonstrar,
em média (e é isso que importa, não estabelecer um parti-pris,
e sim uma análise dos objetos produzidos), é uma dificuldade
de adaptação, essencialmente no quesito da narrativa,
ao formato do cinema de longa-metragem. É apenas natural
que, quando realizando um trabalho audiovisual de qualquer
tipo, estes profissionais se escorem nas soluções e
conceitos que dominam melhor, com os quais trabalham
no dia a dia e que os servem muito bem. Absolutamente
natural, eu diria.
E é aí que voltamos a 2 Filhos de Francisco:
aquilo de que o filme se ressente é simplesmente a capacidade
de desenvolver a contendo a narrativa que ele se dispõe
a fazer, em termos cinematográficos. Basta pegarmos
sua estrutura cena a cena: não há, salvo exceções, diálogos
no filme com mais de dois minutos de duração. Nenhuma
cena possui vida própria, vida isolada. Não há, seja
nas atuações, na encenação ou no trabalho entre câmera
e edição, nenhuma sequência onde os personagens possam
respirar, existir como tais na tela. Todas as cenas
do filme são telegráficas, a serviço de um objetivo
puramente informativo (o que vemos na tela é uma sequência
onde há “a cena onde o pai dá os instrumentos para os
filhos”, “a cena onde os filhos cantam em público pela
primeira vez”, “a cena onde Zezé compõe É o Amor”, etc
etc), e funcionam quase como tableau-vivants,
sem respiro, sem autêntica emoção que venha da troca
entre os personagens.
O resultado é uma mistura de um desenvolvimento de narrativa
banal (e não apenas “simples”, que, isso sim, seria
algo que se esperaria de um filme de grande comunicação),
que segue passo a passo cada clichê do “filme biográfico”
(onde se conhece de saída o sucesso final da empreitada,
e se busca apenas ilustrar os passos da caminhada, um
a um), com a facilidade de certas imagens e temáticas
representativas de uma “brasilidade” tão óbvia quanto
simplório é seu apelo (“o brasileiro é antes de tudo
um forte”, “o interior como depositório de um Brasil
mais autêntico”, etc). Claro que não se quer dizer aqui
que as cenas não emocionam as pessoas que assistem,
porque afinal é possível sim emocionar mesmo com um
comercial de margarinas, em 30 segundos – há uma série
de regras para conseguir isso, e elas sim são mais que
dominadas pelos realizadores do filme. O que não há
é uma operação de fato cinematográfica na gênese desta
emoção, e sim um laboratório de pequenos golpes de linguagem
(por mais sofisticados que sejam) em sequência. Não
há, em nenhum momento da narrativa ficcional do filme,
um centésimo da explosão de emoção (autêntica ou não,
não me cabe julgar, só qualificar mesmo) que está no
rosto e na interpretação de Zezé di Camargo na música
cantada nas sequências finais, “documentais”, do filme.
E não haver um equivalente ficcional desta emoção é
que me parece a traição do nosso “cinema de qualidade”
ao mais essencial destes personagens e sua comunicação
popular.
Não é por acaso que as melhores sequências do filme
são as que, abertamente, funcionam no registro mais
próximo do videoclipe, como principalmente a montagem
ao som da música sertaneja que condensa a viagem da
dupla infantil do filme com o empresário interpretado
por José Dumont, ou mesmo a cena da apresentação de
Zezé e Zilu. Ali não incomodam os incessantes e incomodativos
travellings laterais do filme, que vão do nada
ao lugar nenhum com a aparente simplória missão de “não
deixar a câmera parada” (seria medo de monotonia?).
Não incomodam as interpretações monocórdias e recitativas
da imensa maioria do elenco (os meninos são os que melhores
se saem aqui, talvez até pela falta de experiência de
atores). Ali, o filme flui, porque ali se está dispensado
de construir de fato personagens e tempos de interação
entre eles.
E é aí que voltamos ao início do texto: articular um
cinema popular com a platéia de hoje em dia nos diferentes
Brasis que se deseja atingir não constitui problema
algum, e aliás alguns filmes têm feito isso, com méritos
cinematográficos inegáveis (citemos, por exemplo, Cidade
de Deus ou Lisbela e o Prisioneiro), enquanto
outros são comunicativos sem possuírem interesse como
obras de cinema. Ter um produto de acabamento técnico
impecável também não é problema algum. No entanto, possuir
uma das duas características não constitui necessariamente
um cinema de qualidade, a não ser que se esteja tomando
um “verniz de qualidade”, tão antigo quanto o cinema
é cinema, por “qualidade” de fato. 2 Filhos de Francisco
parece uma mistura de Carga Pesada com Hoje
é Dia de Maria – e dos dois guarda todos os defeitos
e vícios do que é o “audiovisual popular brasileiro
de qualidade”.
Ou, por outra: 2 Filhos de Francisco de fato
não é pior que a maioria dos filmes recentes do cinema
brasileiro voltado para o grande público – mas também
não é nada de muito melhor. Ou se é, é apenas no sentido
em que possa ser considerado, talvez não melhor, mas
certamente “mais bem sucedido”, do que um Cinderela
Bahiana. Se esta era a questão em pauta, aí sim,
missão cumprida. Mas a diferença me parece pouco mais
do que a que separa um bonito, bem produzido e emocionante
comercial de banco de um tosco e “sem-vergonha” (termo
importante) comercial de loja de varejo do bairro.
Eduardo Valente
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