Logo após exorcizar com S.O.B. as mazelas
que lhe estavam entaladas à garganta, Edwards
decide presentear Julie Andrews com o grande papel que,
não somente ele, mas também todo o cinema,
estavam lhe devendo há mais de uma década.
E o resultado é nada menos que pure joy.
Unindo com incrível coerência elementos
de comédia romântica e de equívocos,
pastelão, sátira de costumes, vaudeville,
teatro de boulevard e musical da Broadway, Edwards
alcança com Vitor ou Vitória? o
momento de mais completa perfeição em
sua carreira, obra-prima absoluta que consegue a façanha
de superar trabalhos exemplares como Bonequinha de
Luxo, A Corrida do Século ou Um
Convidado Bem Trapalhão.
Vitor ou Vitória? é um filme-irmão
de Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder,
desde sua origem, ambos remakes de trabalhos
que o cineasta Reinhöld Schuenzel dirigira para
a U.F.A. alemã nos anos 1930. Partilham também
a temática da troca de identidades masculina/feminina.
No caso do filme de Edwards, com Julie encarnando Victoria
Grant, uma cantora lírica inglesa, desempregada
e faminta na Paris de 1934, que resolve, por pura questão
de sobrevivência, passar-se por um homem que faz
shows travestido – o conde Victor Grazinski - para atrair
a atenção das casas noturnas da cidade,
tendo como mentor Toddy (Robert Preston), homossexual
malandro e calejado, também veterano cantor na
noite parisiense. Se a coisa parece a princípio
confusa ou mesmo absurda, o próprio filme faz
questão de destacá-lo a partir de sua
tagline mais famosa: "A woman pretending
to be a man pretending to be a woman...ridiculous!".
Essa temática de mudança de sexo, por
sinal, foi recorrente na comédia americana em
1982, mesmo ano em que Tootsie de Sydney Pollack
traz Dustin Hoffman como um ator que se faz de mulher
igualmente para arrumar trabalho.
O roteiro, adaptado pelo próprio Blake Edwards,
começa por introduzir com calma a dupla de protagonistas.
Temos Toddy, explorado e traído por um namorado
mau-caráter, causando uma briga no bar onde trabalha,
e sendo por isso demitido. E Victoria, sem um tostão
para comer ou pagar a conta do hotel, ameaçando
prostituir-se por uma almôndega – e só
não consegue fazê-lo por que lhe faltam
forças. Isso já rendendo cenas bastante
engraçadas onde o diretor já demonstra,
como fará igualmente ao longo de todo o filme,
seu domínio do tempo de comédia e sua
incontestável maestria no uso do formato cinemascope,
trabalhando numa Paris de estúdio, concebida,
assim como fora anteriormente nos filmes do Inspetor
Closeau, de forma nada realista, mas bastante funcional
aos interesses da trama. Tudo deságua na antológica
seqüência do encontro de Victoria e Toddy
num restaurante, onde uma barata será a agente
responsável por puro e completo caos. Merecedora
de aplausos é a forma como Edwards opta por retratar
a instalação desse caos, partindo de um
plano de detalhe – a barata subindo pela perna de uma
senhora gorda e posuda – e cortando para um plano geral
do restaurante, visto sob a perspectiva do outro lado
da rua, enquanto um casal de passantes pára para
observar a confusão e foge estupefato, sendo
pouco depois seguido por Victoria e Toddy, os reais
causadores do tumulto. É momento de perfeição
cinematográfica para ser visto e revisto infinitamente.
É assim que Victoria vai abrigar-se no apartamento
de Toddy e, na manhã seguinte, um equívoco
completamente acidental acaba por levá-los a
conceber a idéia que dará origem à
intriga principal. Já com pouco mais de meia
hora de projeção, Edwards anuncia através
de uma sutil superposição de sons, na
qual um espirro de Toddy se mistura com a buzina de
um carro, toda a confusão que estará por
vir daí para frente. E após apresentar
o conde Victor ao maior empresário artístico
de Paris, em outra magistral seqüência na
qual participa um inacreditável equilibrista
e que funde humor visual e sons oriundos de fora do
quadro numa franca inspiração de Jacques
Tati, as portas do sucesso abrem-se para nossa dupla
anteriormente fracassada. A apresentação
de estréia do falso travesti, assim como os demais
números musicais do filme, é encenada
com um brilho digno dos melhores momentos da Metro,
agrupando elementos da herança modernizadora
de Bob Fosse, que, por sinal, havia sido alvo de sátira
em S.O.B., concedendo assim a Blake Edwards a
chance, várias vezes perseguida ao longo de sua
carreira, de se exercitar, dessa vez de forma impecável,
por outros gêneros que não a comédia
rasgada.
Surge então King (James Garner), gangster
de Chicago que se apaixona a primeira vista pela
dúbia figura de Victor/Victoria, ficando a princípio
abalado em sua "macheza" ao perceber, mas
sem nunca acreditar, que o alvo de sua atração
seria um homem. Daí para a frente fica estabelecido
e vai sendo aos poucos concretizado o romance entre
as personagens de Andrews e Garner, com o filme flertando
com uma possível quebra da masculinidade por
parte de um dos tipos recorrentes mais viris do cinema
americano: o gangster imortalizado por atores
como James Cagney e George Raft. Mesmo que Edwards tenha
confessamente "amarelado" em levar tal idéia
às últimas conseqüências, fazendo
King descobrir precocemente a real identidade sexual
de Victoria – em uma seqüência, diga-se de
passagem, digna dos momentos mais inspirados do boulevard,
com portas de quartos de hotel sendo abertas e fechadas
infinitamente para entrada e saída de cena das
personagens – temos aí ainda o capanga Squash
(Alex Karras), que inspirado por todo o contexto, acaba
assumindo sua homossexualidade. Essa duplicidade sexual
também se estende a outra importante personagem,
Gloria (Lesley Ann Warren), a namorada de King, um curioso
exemplar de "mulher-viado", mais afetada e
pródiga em trejeitos que qualquer uma das personagens
gays de todo o filme.
Faz-se, desse modo, importante destacar o contexto de
época no qual Vitor ou Vitória? apareceu.
Um período de afirmação da cultura
homossexual nos EUA, em meio à política
conservadora do governo Reagan, pouquíssimo tempo
antes do choque que foi o desencadear da epidemia da
AIDS. O filme é uma das primeiras comédias
americanas a apresentar uma abordagem bastante simpática
e pouco estereotipada da figura homossexual masculina,
herança das portas abertas pelo sucesso mundial
de A Gaiola das Loucas (1978), produção
francesa que mesmo trabalhando com a imagem cômica
da "bicha-louca" tinha como tema principal
a queda das máscaras da hipocrisia social e sexual.
Voltando a Vitor ou Vitória?, vale
ressaltar também a harmonia com a qual Blake
Edwards consegue inserir em seu filme cada detalhe individual
do conjunto. O diretor une por diversas vezes em uma
mesma seqüência a sofisticação
do musical à deliciosa vulgaridade do pastelão,
como nas sucessivas brigas que acontecem em uma determinada
boate. Essa valorização dos pequenos momentos
abraça também uma série de personagens
menores, todos envoltos em situações inesquecivelmente
hilárias, como o dono da já referida boate
(Peter Arne), o hóspede do hotel que tenta infrutiferamente
colocar um sapato à porta de seu quarto observando
o entra-e-sai do aposento ocupado por Victoria, o detetive
que parece estar participando de um desenho animado
(Sherloque Tanney) e principalmente o rabugento e genial
garçom (Graham Stark, ator recorrente na obra
de Edwards, sempre vivendo personagens de perfil similar).
Sem mesmo assim descuidar de suas estrelas, como Julie,
que consegue magistralmente – e sem a nudez-protesto
de S.O.B. – superar o estereótipo da babá
assexuada, numa composição minuciosa,
que dá asas a todo o seu talento musical e senso
de humor.
Falando de música, não devemos também
esquecer de considerar com o devido valor a premiada
trilha musical de Vitor ou Vitória?. As
letras do inglês Leslie Bricusse são completamente
impregnadas de um humor sagaz que reflete toda a ambigüidade
de gêneros que permeia o filme, mais especificamente
nos números Gay Paree e You and Me.
Neste último, interpretado por Andrews e Preston,
um casal supostamente homossexual canta os versos "You
and me, we present the kind of people other people would
like to be". O fato é que não somente
este, mas todos os filmes de Blake Edwards jamais seriam
os mesmos sem as melodias de Henry Mancini, responsável
ao longo de mais de três décadas pela identidade
musical da obra do cineasta. Em toda a história
do cinema, apenas a parceria Morricone-Leone se iguala
em coerência e fidelidade, se bem que Rota-Fellini,
Herrmann-Hitchcock ou Elfman-Burton não ficam
muito longe disso. Em Vítor ou Vitória?,
Mancini encontra-se especialmente inspirado, com destaque
para o belíssimo tema de amor Crazy World,
que nada fica a dever a Moon River, a mais célebre
das composições de Mancini, com Julie
Andrews cantando em puro estado de graça.
Ao fim dos 133 minutos de total deleite que é
Vítor ou Vitória? paira, além
de tudo que o foi apresentado, o nome daquele cuja estrela
brilha tanto ou mais que a do diretor-roteirista ou
da atriz principal. Quando o filme termina com Toddy
entoando uma versão debochada do número
musical The Shady Dame From Seville, não
somente o elenco, mas também todo o público
parece render-se e se ajoelhar aos pés de Robert
Preston. Generosamente, Edwards e Andrews partilham
seu espaço com este veterano ator que contava
então com mais de 4 décadas de carreira,
incluindo raros momentos de estrelato – o maior fora
O Vendedor de Ilusões, musical de 1962
– e que atuara quase sempre como coadjuvante em filmes
de ação. Em seu penúltimo papel
em cinema (morreria em 1987), faz com que seu Toddy,
igualmente galante e debochado, mas também distante
da caricatura da bicha velha, seja simplesmente uma
das maiores atuações da história.
Não somente uma cereja no delicioso bolo de inimitáveis
ingredientes que é Vítor ou Vitória?,
mas sim um outro bolo à parte, igualmente saboroso.
Gilberto Silva Jr.
(DVD: Warner; VHS: Videoarte)
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