VITOR OU VITÓRIA?
Blake Edwards, Victor/Victoria, EUA, 1982

Logo após exorcizar com S.O.B. as mazelas que lhe estavam entaladas à garganta, Edwards decide presentear Julie Andrews com o grande papel que, não somente ele, mas também todo o cinema, estavam lhe devendo há mais de uma década. E o resultado é nada menos que pure joy. Unindo com incrível coerência elementos de comédia romântica e de equívocos, pastelão, sátira de costumes, vaudeville, teatro de boulevard e musical da Broadway, Edwards alcança com Vitor ou Vitória? o momento de mais completa perfeição em sua carreira, obra-prima absoluta que consegue a façanha de superar trabalhos exemplares como Bonequinha de Luxo, A Corrida do Século ou Um Convidado Bem Trapalhão.

Vitor ou Vitória? é um filme-irmão de Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder, desde sua origem, ambos remakes de trabalhos que o cineasta Reinhöld Schuenzel dirigira para a U.F.A. alemã nos anos 1930. Partilham também a temática da troca de identidades masculina/feminina. No caso do filme de Edwards, com Julie encarnando Victoria Grant, uma cantora lírica inglesa, desempregada e faminta na Paris de 1934, que resolve, por pura questão de sobrevivência, passar-se por um homem que faz shows travestido – o conde Victor Grazinski - para atrair a atenção das casas noturnas da cidade, tendo como mentor Toddy (Robert Preston), homossexual malandro e calejado, também veterano cantor na noite parisiense. Se a coisa parece a princípio confusa ou mesmo absurda, o próprio filme faz questão de destacá-lo a partir de sua tagline mais famosa: "A woman pretending to be a man pretending to be a woman...ridiculous!". Essa temática de mudança de sexo, por sinal, foi recorrente na comédia americana em 1982, mesmo ano em que Tootsie de Sydney Pollack traz Dustin Hoffman como um ator que se faz de mulher igualmente para arrumar trabalho.

O roteiro, adaptado pelo próprio Blake Edwards, começa por introduzir com calma a dupla de protagonistas. Temos Toddy, explorado e traído por um namorado mau-caráter, causando uma briga no bar onde trabalha, e sendo por isso demitido. E Victoria, sem um tostão para comer ou pagar a conta do hotel, ameaçando prostituir-se por uma almôndega – e só não consegue fazê-lo por que lhe faltam forças. Isso já rendendo cenas bastante engraçadas onde o diretor já demonstra, como fará igualmente ao longo de todo o filme, seu domínio do tempo de comédia e sua incontestável maestria no uso do formato cinemascope, trabalhando numa Paris de estúdio, concebida, assim como fora anteriormente nos filmes do Inspetor Closeau, de forma nada realista, mas bastante funcional aos interesses da trama. Tudo deságua na antológica seqüência do encontro de Victoria e Toddy num restaurante, onde uma barata será a agente responsável por puro e completo caos. Merecedora de aplausos é a forma como Edwards opta por retratar a instalação desse caos, partindo de um plano de detalhe – a barata subindo pela perna de uma senhora gorda e posuda – e cortando para um plano geral do restaurante, visto sob a perspectiva do outro lado da rua, enquanto um casal de passantes pára para observar a confusão e foge estupefato, sendo pouco depois seguido por Victoria e Toddy, os reais causadores do tumulto. É momento de perfeição cinematográfica para ser visto e revisto infinitamente.

É assim que Victoria vai abrigar-se no apartamento de Toddy e, na manhã seguinte, um equívoco completamente acidental acaba por levá-los a conceber a idéia que dará origem à intriga principal. Já com pouco mais de meia hora de projeção, Edwards anuncia através de uma sutil superposição de sons, na qual um espirro de Toddy se mistura com a buzina de um carro, toda a confusão que estará por vir daí para frente. E após apresentar o conde Victor ao maior empresário artístico de Paris, em outra magistral seqüência na qual participa um inacreditável equilibrista e que funde humor visual e sons oriundos de fora do quadro numa franca inspiração de Jacques Tati, as portas do sucesso abrem-se para nossa dupla anteriormente fracassada. A apresentação de estréia do falso travesti, assim como os demais números musicais do filme, é encenada com um brilho digno dos melhores momentos da Metro, agrupando elementos da herança modernizadora de Bob Fosse, que, por sinal, havia sido alvo de sátira em S.O.B., concedendo assim a Blake Edwards a chance, várias vezes perseguida ao longo de sua carreira, de se exercitar, dessa vez de forma impecável, por outros gêneros que não a comédia rasgada.

Surge então King (James Garner), gangster de Chicago que se apaixona a primeira vista pela dúbia figura de Victor/Victoria, ficando a princípio abalado em sua "macheza" ao perceber, mas sem nunca acreditar, que o alvo de sua atração seria um homem. Daí para a frente fica estabelecido e vai sendo aos poucos concretizado o romance entre as personagens de Andrews e Garner, com o filme flertando com uma possível quebra da masculinidade por parte de um dos tipos recorrentes mais viris do cinema americano: o gangster imortalizado por atores como James Cagney e George Raft. Mesmo que Edwards tenha confessamente "amarelado" em levar tal idéia às últimas conseqüências, fazendo King descobrir precocemente a real identidade sexual de Victoria – em uma seqüência, diga-se de passagem, digna dos momentos mais inspirados do boulevard, com portas de quartos de hotel sendo abertas e fechadas infinitamente para entrada e saída de cena das personagens – temos aí ainda o capanga Squash (Alex Karras), que inspirado por todo o contexto, acaba assumindo sua homossexualidade. Essa duplicidade sexual também se estende a outra importante personagem, Gloria (Lesley Ann Warren), a namorada de King, um curioso exemplar de "mulher-viado", mais afetada e pródiga em trejeitos que qualquer uma das personagens gays de todo o filme.

Faz-se, desse modo, importante destacar o contexto de época no qual Vitor ou Vitória? apareceu. Um período de afirmação da cultura homossexual nos EUA, em meio à política conservadora do governo Reagan, pouquíssimo tempo antes do choque que foi o desencadear da epidemia da AIDS. O filme é uma das primeiras comédias americanas a apresentar uma abordagem bastante simpática e pouco estereotipada da figura homossexual masculina, herança das portas abertas pelo sucesso mundial de A Gaiola das Loucas (1978), produção francesa que mesmo trabalhando com a imagem cômica da "bicha-louca" tinha como tema principal a queda das máscaras da hipocrisia social e sexual.

Voltando a Vitor ou Vitória?, vale ressaltar também a harmonia com a qual Blake Edwards consegue inserir em seu filme cada detalhe individual do conjunto. O diretor une por diversas vezes em uma mesma seqüência a sofisticação do musical à deliciosa vulgaridade do pastelão, como nas sucessivas brigas que acontecem em uma determinada boate. Essa valorização dos pequenos momentos abraça também uma série de personagens menores, todos envoltos em situações inesquecivelmente hilárias, como o dono da já referida boate (Peter Arne), o hóspede do hotel que tenta infrutiferamente colocar um sapato à porta de seu quarto observando o entra-e-sai do aposento ocupado por Victoria, o detetive que parece estar participando de um desenho animado (Sherloque Tanney) e principalmente o rabugento e genial garçom (Graham Stark, ator recorrente na obra de Edwards, sempre vivendo personagens de perfil similar). Sem mesmo assim descuidar de suas estrelas, como Julie, que consegue magistralmente – e sem a nudez-protesto de S.O.B. – superar o estereótipo da babá assexuada, numa composição minuciosa, que dá asas a todo o seu talento musical e senso de humor.

Falando de música, não devemos também esquecer de considerar com o devido valor a premiada trilha musical de Vitor ou Vitória?. As letras do inglês Leslie Bricusse são completamente impregnadas de um humor sagaz que reflete toda a ambigüidade de gêneros que permeia o filme, mais especificamente nos números Gay Paree e You and Me. Neste último, interpretado por Andrews e Preston, um casal supostamente homossexual canta os versos "You and me, we present the kind of people other people would like to be". O fato é que não somente este, mas todos os filmes de Blake Edwards jamais seriam os mesmos sem as melodias de Henry Mancini, responsável ao longo de mais de três décadas pela identidade musical da obra do cineasta. Em toda a história do cinema, apenas a parceria Morricone-Leone se iguala em coerência e fidelidade, se bem que Rota-Fellini, Herrmann-Hitchcock ou Elfman-Burton não ficam muito longe disso. Em Vítor ou Vitória?, Mancini encontra-se especialmente inspirado, com destaque para o belíssimo tema de amor Crazy World, que nada fica a dever a Moon River, a mais célebre das composições de Mancini, com Julie Andrews cantando em puro estado de graça.

Ao fim dos 133 minutos de total deleite que é Vítor ou Vitória? paira, além de tudo que o foi apresentado, o nome daquele cuja estrela brilha tanto ou mais que a do diretor-roteirista ou da atriz principal. Quando o filme termina com Toddy entoando uma versão debochada do número musical The Shady Dame From Seville, não somente o elenco, mas também todo o público parece render-se e se ajoelhar aos pés de Robert Preston. Generosamente, Edwards e Andrews partilham seu espaço com este veterano ator que contava então com mais de 4 décadas de carreira, incluindo raros momentos de estrelato – o maior fora O Vendedor de Ilusões, musical de 1962 – e que atuara quase sempre como coadjuvante em filmes de ação. Em seu penúltimo papel em cinema (morreria em 1987), faz com que seu Toddy, igualmente galante e debochado, mas também distante da caricatura da bicha velha, seja simplesmente uma das maiores atuações da história. Não somente uma cereja no delicioso bolo de inimitáveis ingredientes que é Vítor ou Vitória?, mas sim um outro bolo à parte, igualmente saboroso.


Gilberto Silva Jr.

(DVD: Warner; VHS: Videoarte)