"Fade in" revela Lee Remick subindo a rua onde mora
Jack Lemmon, depois de um sumiço por conta do
alcoolismo. É o início da derradeira e
primorosa seqüência de Vício Maldito.
Remick tem, a seu lado esquerdo (e à direita
da tela), um bar, cujo luminoso pisca convidativamente.
Enquanto isso, Lemmon ajeita a filha deles na cama,
para que ela durma. Ao sair do quarto, o bater a porta.
É Remick. Inicia-se, então, um pungente
diálogo, com um show dos dois atores. Toda a
angústia de querer aceitá-la de volta,
mas não querer correr o risco da submissão
ao álcool passa pelo olhar de Lemmon. A luz piscante
do luminoso será percebida em quase toda a duração
da seqüência. Será como uma tentação,
ameaçando a estabilidade alcançada pela
sobriedade.
Em um momento específico do diálogo, entra
a música, justamente após Remick dizer
com voz trêmula que quer voltar pra casa (e casa
aí significando muito mais do que isso – ela
quer voltar à vida com ele, quer que ele a ajude
a abandonar o vício). Não precisava, na
verdade, dessa música. O diálogo já
seria tocante por si só, tendo apenas o silêncio
por trás. E aquela luz piscante fazendo um ruído
absurdo no inconsciente deles. Tem também um
resquício teatral no diálogo, que deve
constar na peça original para a TV, que acontece
quando Lemmon tenta fazer com que ela enxergue o passado
deles: "Nós éramos apenas um casal de
bêbados em um mar de bebida. E o barco afundou".
Pequenos deslizes, que não chegam a atrapalhar
o decorrer do diálogo.
Em certo momento, ele dá o ultimato, tendo o
olhar singelo dela como uma ameaça às
suas próprias convicções: "se quiser
voltar, seremos eu e você, sem o terceiro elemento
(a bebida)". A frase sai indecisa, hesitante, mas dissimulada
com firmeza o suficiente para desesperar Remick. Ela
não pode agüentar a sujeira do mundo sem
beber. Está disposta a parar, mas aos poucos.
Lemmon tinha duas opções:
a) aceitá-la de volta à sua vida, correndo
o risco de se aproximar da bebida novamente, pois a
mulher não lhe prometia abstinência, mas
uma tentativa de chegar lá. Poderia perder, nesse
caso, uma estabilidade que o período afastado
do álcool havia permitido para ele e para a pequena
filha.
b) relutar ao máximo em aceitar de volta quem
não lhe desse uma garantia, por menor que fosse,
de uma disposição ao autocontrole. Perderia,
assim, o amor de sua vida, pelo menos temporariamente.
Entre essas duas opções, o talento de
Lemmon emerge, sem ultrapassar, no entanto, a excelente
interpretação de Lee Remick, tanto na
cena como no restante do filme. Um belo casal que se
vê diante de um impasse sobre o futuro da relação.
Para haver um futuro, pelo menos por enquanto, não
pode haver relação.
Não é uma decisão fácil.
Blake Edwards insere durante todo o filme, sempre do
lado direito do quadro, símbolos etílicos,
copos e garrafas (geralmente com pouco líquido,
indicando que "alguém já tinha passado
por ali"). É notável o plano, anterior
à entrega de ambos ao vício, em que se
vê, na metade esquerda do quadro, Lemmon preocupado
com os rumos profissionais de sua vida com Remick tentando
consolá-lo; e do lado direito uma garrafa chegando
ao fim, quase pulando para fora da tela de tão
incisiva.
Também em outro momento chave, já no terço
final do filme, os símbolos ameaçadores
surgem da direita: quando Remick é descoberta
em um motel barato, totalmente consumida pelo álcool.
Quando Lemmon entra no quarto, Edwards faz um rápido
movimento de câmera, da cama onde ela está
para a TV que permanece ligada. Rápido o suficiente
para que não possamos ver as garrafas na mesa
entre ela e a TV. Depois, essas garrafas são
mostradas pela primeira vez, justamente num momento
chave, em que ele é obrigado a resistir à
tentação de acarinhá-la, tomando-a
de volta como sua mulher. A segunda vez que as garrafas
aparecem, no entanto, é no momento em que ele,
ao ver a beleza dela sendo corroída, aquele ser
humano tão especial se transformando em um caco
de mulher, sozinha e entregue à bebida, cede
à tentação e toma um copo de bebida
junto com ela. Corta para ele levantando trôpego
da cama para procurar mais bebida. A continuação
desse tormento tem direito até a bebida na lente
da câmera, cortando para uma tomada bem de cima,
onde se pode ver Lemmon amarrado a uma cama, em uma
sala asséptica e assustadora em sua branquidão.
Uma recaída de Edwards ao estilismo de seu filme
anterior, Experiment in Terror. Recai também
em um artifício meio barato de humilhação
do personagem, para que dele nos condoêssemos.
Aí reside parte da beleza do filme. A entrega
desmedida de Edwards às fraquezas dos personagens
é também a entrega às suas próprias
fraquezas, às suas idiossincrasias do momento.
Como em A Corrida do Século, em que o
pastelão de uma seqüência é
assumido pela câmera, ou em S.O.B., que
se veste dos mesmos elementos críticos que estaria
relatando. Edwards se arrisca, perde a compostura, cria
gratuidades. Abre-se ao fracasso com unhas e dentes,
enfrentando-o como quem não o teme, e esse despudor
por vezes deliciosamente excessivo (lembram do duelo
de camisinhas de Confusões de um Sedutor?)
resulta em filmes que podem até dar errado, mas
são quase sempre muito bons de se ver.
Voltando à seqüência final. A câmera
de Blake Edwards capta o impasse do casal com sobriedade
e elegância. E ficaremos sempre com os tristes
últimos planos do filme: Lemmon olha pela janela.
A visão subjetiva dele revela Remick descendo
a rua em diagonal, afastando-se do luminoso do bar,
que pisca, letras em maiúsculas. A filha abre
a porta, diz que ouviu ele chamar a mamãe, ele
responde que foi apenas um sonho. Leva-a para a cama
novamente e volta para a janela. Parece ver a mulher
ali, descendo eternamente aquela rua. Câmera do
lado de fora, mostrando Lemmon entristecido e desesperançoso,
com o reflexo da palavra BAR aparecendo em sua janela.
"Fade out".
Sérgio Alpendre
(DVD: Warner)
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