VÍCIO MALDITO
Blake Edwards, Days of Wine and Roses, EUA, 1962

"Fade in" revela Lee Remick subindo a rua onde mora Jack Lemmon, depois de um sumiço por conta do alcoolismo. É o início da derradeira e primorosa seqüência de Vício Maldito. Remick tem, a seu lado esquerdo (e à direita da tela), um bar, cujo luminoso pisca convidativamente. Enquanto isso, Lemmon ajeita a filha deles na cama, para que ela durma. Ao sair do quarto, o bater a porta. É Remick. Inicia-se, então, um pungente diálogo, com um show dos dois atores. Toda a angústia de querer aceitá-la de volta, mas não querer correr o risco da submissão ao álcool passa pelo olhar de Lemmon. A luz piscante do luminoso será percebida em quase toda a duração da seqüência. Será como uma tentação, ameaçando a estabilidade alcançada pela sobriedade.

Em um momento específico do diálogo, entra a música, justamente após Remick dizer com voz trêmula que quer voltar pra casa (e casa aí significando muito mais do que isso – ela quer voltar à vida com ele, quer que ele a ajude a abandonar o vício). Não precisava, na verdade, dessa música. O diálogo já seria tocante por si só, tendo apenas o silêncio por trás. E aquela luz piscante fazendo um ruído absurdo no inconsciente deles. Tem também um resquício teatral no diálogo, que deve constar na peça original para a TV, que acontece quando Lemmon tenta fazer com que ela enxergue o passado deles: "Nós éramos apenas um casal de bêbados em um mar de bebida. E o barco afundou". Pequenos deslizes, que não chegam a atrapalhar o decorrer do diálogo.

Em certo momento, ele dá o ultimato, tendo o olhar singelo dela como uma ameaça às suas próprias convicções: "se quiser voltar, seremos eu e você, sem o terceiro elemento (a bebida)". A frase sai indecisa, hesitante, mas dissimulada com firmeza o suficiente para desesperar Remick. Ela não pode agüentar a sujeira do mundo sem beber. Está disposta a parar, mas aos poucos.

Lemmon tinha duas opções:
a) aceitá-la de volta à sua vida, correndo o risco de se aproximar da bebida novamente, pois a mulher não lhe prometia abstinência, mas uma tentativa de chegar lá. Poderia perder, nesse caso, uma estabilidade que o período afastado do álcool havia permitido para ele e para a pequena filha.
b) relutar ao máximo em aceitar de volta quem não lhe desse uma garantia, por menor que fosse, de uma disposição ao autocontrole. Perderia, assim, o amor de sua vida, pelo menos temporariamente.

Entre essas duas opções, o talento de Lemmon emerge, sem ultrapassar, no entanto, a excelente interpretação de Lee Remick, tanto na cena como no restante do filme. Um belo casal que se vê diante de um impasse sobre o futuro da relação. Para haver um futuro, pelo menos por enquanto, não pode haver relação.

Não é uma decisão fácil. Blake Edwards insere durante todo o filme, sempre do lado direito do quadro, símbolos etílicos, copos e garrafas (geralmente com pouco líquido, indicando que "alguém já tinha passado por ali"). É notável o plano, anterior à entrega de ambos ao vício, em que se vê, na metade esquerda do quadro, Lemmon preocupado com os rumos profissionais de sua vida com Remick tentando consolá-lo; e do lado direito uma garrafa chegando ao fim, quase pulando para fora da tela de tão incisiva.

Também em outro momento chave, já no terço final do filme, os símbolos ameaçadores surgem da direita: quando Remick é descoberta em um motel barato, totalmente consumida pelo álcool. Quando Lemmon entra no quarto, Edwards faz um rápido movimento de câmera, da cama onde ela está para a TV que permanece ligada. Rápido o suficiente para que não possamos ver as garrafas na mesa entre ela e a TV. Depois, essas garrafas são mostradas pela primeira vez, justamente num momento chave, em que ele é obrigado a resistir à tentação de acarinhá-la, tomando-a de volta como sua mulher. A segunda vez que as garrafas aparecem, no entanto, é no momento em que ele, ao ver a beleza dela sendo corroída, aquele ser humano tão especial se transformando em um caco de mulher, sozinha e entregue à bebida, cede à tentação e toma um copo de bebida junto com ela. Corta para ele levantando trôpego da cama para procurar mais bebida. A continuação desse tormento tem direito até a bebida na lente da câmera, cortando para uma tomada bem de cima, onde se pode ver Lemmon amarrado a uma cama, em uma sala asséptica e assustadora em sua branquidão. Uma recaída de Edwards ao estilismo de seu filme anterior, Experiment in Terror. Recai também em um artifício meio barato de humilhação do personagem, para que dele nos condoêssemos.

Aí reside parte da beleza do filme. A entrega desmedida de Edwards às fraquezas dos personagens é também a entrega às suas próprias fraquezas, às suas idiossincrasias do momento. Como em A Corrida do Século, em que o pastelão de uma seqüência é assumido pela câmera, ou em S.O.B., que se veste dos mesmos elementos críticos que estaria relatando. Edwards se arrisca, perde a compostura, cria gratuidades. Abre-se ao fracasso com unhas e dentes, enfrentando-o como quem não o teme, e esse despudor por vezes deliciosamente excessivo (lembram do duelo de camisinhas de Confusões de um Sedutor?) resulta em filmes que podem até dar errado, mas são quase sempre muito bons de se ver.

Voltando à seqüência final. A câmera de Blake Edwards capta o impasse do casal com sobriedade e elegância. E ficaremos sempre com os tristes últimos planos do filme: Lemmon olha pela janela. A visão subjetiva dele revela Remick descendo a rua em diagonal, afastando-se do luminoso do bar, que pisca, letras em maiúsculas. A filha abre a porta, diz que ouviu ele chamar a mamãe, ele responde que foi apenas um sonho. Leva-a para a cama novamente e volta para a janela. Parece ver a mulher ali, descendo eternamente aquela rua. Câmera do lado de fora, mostrando Lemmon entristecido e desesperançoso, com o reflexo da palavra BAR aparecendo em sua janela. "Fade out".


Sérgio Alpendre

(DVD: Warner)