A CORRIDA DO SÉCULO
Blake Edwards, The Great Race, EUA, 1965

O começo da série A Pantera Cor-de-Rosa dá uma liberdade nova a Blake Edwards. A estruturação da história nesses filmes é complexa, mas essa complexidade parece feita para garantir um certo nível de frouxidão em que as gags podem rolar soltas sem atrapalhar o fluxo da história. Temos então um prodígio de narrativa funcionando juntamente com um prodígio de anarquia a-narrativa. É algo que os dois primeiros filmes do Inspetor Clouseau preparam, mas que só é garantido em A Corrida do Século, projeto ambicioso, excessivo, metalingüístico, decadentista, maneirista. Seria tranqüilamente um filme que Visconti faria se gostasse mais de Buster Keaton do que de Thomas Mann. Há nele um desejo confesso de conter toda a história da comédia americana, e um desejo de abraçar o mundo inteiro em seu relato: a dedicatória aos "Sres. Laurel e Hardy", uma batalha de tortas à slapstick, uma batalha de sexos à screwball, todas as referências ao desenho animado, o trajeto de volta ao mundo indicam o fôlego do projeto. A duração não fica por menos: duas horas e quarenta não é um tempo que se espera de uma comédia, e ainda mais com a pompa de usar abertura, interlúdio e fechamento como parte da duração do filme.

Há pelo menos dois níveis de leitura em A Corrida do Século. O primeiro, cronologicamente, é aquele no qual o começo do filme nos instala: o dos ruídos da platéia, os créditos em forma de lanterna mágica. Não estamos mais no plano das comédias "ingênuas" que nutrem um público cioso de restituir periodicamente a relação com um gênero numa sala escura; agora estamos diante de um momento da inocência impossível, da autoconsciência completa da trajetória da cristalização dos gêneros de cinema, sobretudo os de cinema americano. O contexto que dá Blake Edwards na comédia americana é o mesmo que dá Sergio Leone fazendo westerns na Itália. E a intriga desta relação com a tradição é a tentativa impossível de se equiparar aos gênios da era clássica. Resultados: mais que um estilo propriamente dito, mais que um ritmo e uma fluência específicos, vemos uma confluência, uma sobreposição de vários estilos, o filme funcionando mais como uma suma do que como mais uma etapa do processo (o que evidentemente também é) da história de um gênero. O segundo nível de leitura, que chega depois mas é o que acompanhamos com mais atenção (um tanto porque é o objetivo do filme fazê-lo, outro tanto porque é assim que nos ensina a forma canônica de ver cinema: procurar pela narrativa), é o do relato, ou como dois grupos de pessoas se reúnem, se separam, se misturam ao redor do planeta, preferindo sobretudo as paradas ao percurso (a ficção só funcionando em terra firme, não em veolcidade), produzindo várias elipses que deslocam os personagens para cantos diferentes do planeta, enquanto na sala do jornal Sentinel vemos espelhado um reflexo da corrida no mapa-mundi, e um reflexo da guerra de sexos empenhada por Natalie Wood contra Tony Curtis, com as sufragistas marchando, fazendo piquete e por fim ocupando a sede do jornal.

O começo é de cartum. De um lado, o mocinho, O Grande Leslie, todo de branco, desejado pelas mulheres, faz uma peripécia. De outro, o vilão, o Professor Sina, todo de preto, tenta sabotar a apresentação. Como a lógica de desenho animado prescreve, o feitiço vira contra o feiticeiro e o malvado acaba provando do próprio veneno. Mais do que uma apresentação dos personagens e da intriga, podemos ver aí um bloco separado, pequenas historietas que se fecham em si mesmas. Como a primeira seqüência de Um Tiro no Escuro, são fragmentos inteiramente fechados em si mesmos, completos e perfeitos em seu charme e graça. O próprio filme seguirá como um todo essa lógica, nos dando apenas momentos dessa grande corrida. Assim, ao invés da narrativa de uma corrida, teremos episódios muito bem determinados: a largada, a briga de bar no saloon, o episódio do Alaska, a estranha cidade russa, o reino do leste europeu, e dentro dele a batalha de tortas. É um filme cuja virtude consiste não em fechar uma história, mas justamente em não concluir. Como com Sherazade, sempre uma peripécia é emendada na outra. Uma sabedoria que deriva menos do controle do que da frivolidade, do desejo infantil de propor situações e apresentá-las magicamente. Num determinado momento, pouco importa que a intriga das sufragettes desapareça e não volte mais, pouco importa que não haja mais nenhuma menção ao jornal, e tampouco importa o fato de que a guerra dos sexos seja resolvida pelo recurso ao verdadeiro amor: estamos aqui num filme que alegremente se diverte com todo o material burlesco que trata, e o leva a limites inimaginados, vertente livro Guiness (a maior batalha de tortas já feita no cinema). Temos um Edwards inteiramente ciente de um projeto que mescla o máximo de desprendimento com o máximo de ambição. Ou simplesmente a grande ambição de fazer valer seu desprendimento.

Em seus notáveis enquadramentos em tela panorâmica (não dá pra imaginar que o filme já possa ter sido visto em outro formato), em suas cores derramadas e elegantes, e sobretudo no jeito como trabalha com Peter Falk, Nathalie Wood, Tony Curtis e sobretudo Jack Lemmon, Blake Edwards, em sua possível obra-prima de juventude, alinha-se com a postura diante da vida segundo a qual não existe nada mais profundo do que o superficial, nada mais poderoso que um leve gesto, nada mais grandioso que um poro de pele. A Corrida do Século corresponde como nenhum outro de seus filmes à monumentalização desse gesto do fazer rir, à referência à história do cinema e à sua atualização possível/impossível naquele momento. Não tão engraçado quanto alguns de seus outros filmes, não tão bem sucedido quanto diversos outros, e tampouco um filme que sirva para se pegar o todo da estética de seu autor. Ainda assim, nada tira a impressão de que A Corrida do Século é um ponto crucial para a carreira de Blake Edwards, aquele filme cuja feitura possibilitou que se demarcasse um antes e um depois, que uma determinada busca tivesse sido posta em prática em todo seu exagero e excesso, para que a leveza e a naturalidade, uma vez expostas em dimensões majestosas, pudessem finalmente assumir sua graça tal como são. Como Jacques Tati e um certo Jerry Lewis (certamente o de O Terror das Mulheres), a graça de seu cinema consiste em um trabalho minucioso de pôr em movimento o estático. Um mínimo movimento que provoca o máximo de gargalhada. Um pequeno detalhe que faz explodir tudo. Trocando em miúdos, Blake Edwards é um cineasta que sabe que tudo em cinema diz respeito a espaço, e de que o humor aparece quando há uma ligeira confusão sobre como ocupá-lo (mas não também os dramas?). Lewis, Tati, Edwards fizeram dele uma obsessão: a graça, o riso, a genialidade e a fineza da caracterização dos persoangens e da ação vêm da manutenção de uma certa integridade do espaço. Não à toa, é preciso parar o carro para que os atores discutam e se beijem. Mais um pequeno truque dessa maravilhosa corrida estática que é A Corrida do Século.

Ruy Gardnier

(DVD: Warner)