O
começo da série A Pantera Cor-de-Rosa
dá uma liberdade nova a Blake Edwards. A estruturação
da história nesses filmes é complexa,
mas essa complexidade parece feita para garantir um
certo nível de frouxidão em que as gags
podem rolar soltas sem atrapalhar o fluxo da história.
Temos então um prodígio de narrativa
funcionando juntamente com um prodígio de anarquia
a-narrativa. É algo que os dois primeiros filmes
do Inspetor Clouseau preparam, mas que só é
garantido em A Corrida do Século, projeto
ambicioso, excessivo, metalingüístico, decadentista,
maneirista. Seria tranqüilamente um filme que Visconti
faria se gostasse mais de Buster Keaton do que de Thomas
Mann. Há nele um desejo confesso de conter toda
a história da comédia americana, e um
desejo de abraçar o mundo inteiro em seu relato:
a dedicatória aos "Sres. Laurel e Hardy",
uma batalha de tortas à slapstick, uma
batalha de sexos à screwball, todas as
referências ao desenho animado, o trajeto de volta
ao mundo indicam o fôlego do projeto. A duração
não fica por menos: duas horas e quarenta não
é um tempo que se espera de uma comédia,
e ainda mais com a pompa de usar abertura, interlúdio
e fechamento como parte da duração do
filme.
Há pelo menos dois níveis de leitura em
A Corrida do Século. O primeiro, cronologicamente,
é aquele no qual o começo do filme nos
instala: o dos ruídos da platéia, os créditos
em forma de lanterna mágica. Não estamos
mais no plano das comédias "ingênuas"
que nutrem um público cioso de restituir periodicamente
a relação com um gênero numa sala
escura; agora estamos diante de um momento da inocência
impossível, da autoconsciência completa
da trajetória da cristalização
dos gêneros de cinema, sobretudo os de cinema
americano. O contexto que dá Blake Edwards na
comédia americana é o mesmo que dá
Sergio Leone fazendo westerns na Itália.
E a intriga desta relação com a tradição
é a tentativa impossível de se equiparar
aos gênios da era clássica. Resultados:
mais que um estilo propriamente dito, mais que um ritmo
e uma fluência específicos, vemos uma confluência,
uma sobreposição de vários estilos,
o filme funcionando mais como uma suma do que como mais
uma etapa do processo (o que evidentemente também
é) da história de um gênero. O segundo
nível de leitura, que chega depois mas é
o que acompanhamos com mais atenção (um
tanto porque é o objetivo do filme fazê-lo,
outro tanto porque é assim que nos ensina a forma
canônica de ver cinema: procurar pela narrativa),
é o do relato, ou como dois grupos de pessoas
se reúnem, se separam, se misturam ao redor do
planeta, preferindo sobretudo as paradas ao percurso
(a ficção só funcionando em terra
firme, não em veolcidade), produzindo várias
elipses que deslocam os personagens para cantos diferentes
do planeta, enquanto na sala do jornal Sentinel vemos
espelhado um reflexo da corrida no mapa-mundi, e um
reflexo da guerra de sexos empenhada por Natalie Wood
contra Tony Curtis, com as sufragistas marchando, fazendo
piquete e por fim ocupando a sede do jornal.
O começo é de cartum. De um lado, o mocinho,
O Grande Leslie, todo de branco, desejado pelas mulheres,
faz uma peripécia. De outro, o vilão,
o Professor Sina, todo de preto, tenta sabotar a apresentação.
Como a lógica de desenho animado prescreve, o
feitiço vira contra o feiticeiro e o malvado
acaba provando do próprio veneno. Mais do que
uma apresentação dos personagens e da
intriga, podemos ver aí um bloco separado, pequenas
historietas que se fecham em si mesmas. Como a primeira
seqüência de Um Tiro no Escuro, são
fragmentos inteiramente fechados em si mesmos, completos
e perfeitos em seu charme e graça. O próprio
filme seguirá como um todo essa lógica,
nos dando apenas momentos dessa grande corrida. Assim,
ao invés da narrativa de uma corrida, teremos
episódios muito bem determinados: a largada,
a briga de bar no saloon, o episódio do
Alaska, a estranha cidade russa, o reino do leste europeu,
e dentro dele a batalha de tortas. É um filme
cuja virtude consiste não em fechar uma história,
mas justamente em não concluir. Como com Sherazade,
sempre uma peripécia é emendada na outra.
Uma sabedoria que deriva menos do controle do que da
frivolidade, do desejo infantil de propor situações
e apresentá-las magicamente. Num determinado
momento, pouco importa que a intriga das sufragettes
desapareça e não volte mais, pouco importa
que não haja mais nenhuma menção
ao jornal, e tampouco importa o fato de que a guerra
dos sexos seja resolvida pelo recurso ao verdadeiro
amor: estamos aqui num filme que alegremente se diverte
com todo o material burlesco que trata, e o leva a limites
inimaginados, vertente livro Guiness (a maior batalha
de tortas já feita no cinema). Temos um Edwards
inteiramente ciente de um projeto que mescla o máximo
de desprendimento com o máximo de ambição.
Ou simplesmente a grande ambição de fazer
valer seu desprendimento.
Em seus notáveis enquadramentos em tela panorâmica
(não dá pra imaginar que o filme já
possa ter sido visto em outro formato), em suas cores
derramadas e elegantes, e sobretudo no jeito como trabalha
com Peter Falk, Nathalie Wood, Tony Curtis e sobretudo
Jack Lemmon, Blake Edwards, em sua possível obra-prima
de juventude, alinha-se com a postura diante da vida
segundo a qual não existe nada mais profundo
do que o superficial, nada mais poderoso que um leve
gesto, nada mais grandioso que um poro de pele. A
Corrida do Século corresponde como nenhum
outro de seus filmes à monumentalização
desse gesto do fazer rir, à referência
à história do cinema e à sua atualização
possível/impossível naquele momento. Não
tão engraçado quanto alguns de seus outros
filmes, não tão bem sucedido quanto diversos
outros, e tampouco um filme que sirva para se pegar
o todo da estética de seu autor. Ainda assim,
nada tira a impressão de que A Corrida do
Século é um ponto crucial para a carreira
de Blake Edwards, aquele filme cuja feitura possibilitou
que se demarcasse um antes e um depois, que uma determinada
busca tivesse sido posta em prática em todo seu
exagero e excesso, para que a leveza e a naturalidade,
uma vez expostas em dimensões majestosas, pudessem
finalmente assumir sua graça tal como são.
Como Jacques Tati e um certo Jerry Lewis (certamente
o de O Terror das Mulheres), a graça de
seu cinema consiste em um trabalho minucioso de pôr
em movimento o estático. Um mínimo movimento
que provoca o máximo de gargalhada. Um pequeno
detalhe que faz explodir tudo. Trocando em miúdos,
Blake Edwards é um cineasta que sabe que tudo
em cinema diz respeito a espaço, e de que o humor
aparece quando há uma ligeira confusão
sobre como ocupá-lo (mas não também
os dramas?). Lewis, Tati, Edwards fizeram dele uma obsessão:
a graça, o riso, a genialidade e a fineza da
caracterização dos persoangens e da ação
vêm da manutenção de uma certa integridade
do espaço. Não à toa, é
preciso parar o carro para que os atores discutam e
se beijem. Mais um pequeno truque dessa maravilhosa
corrida estática que é A Corrida do
Século.
Ruy Gardnier
(DVD: Warner)
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