S.O.B.
Blake Edwards, S.O.B., EUA, 1981

S.O.B. é um filme que já se anuncia estranho logo nos créditos de abertura. Julie Andrews aparece caracterizada como uma menina-boneca, cantando uma música pueril em meio a dançarinos vestidos como brinquedos. Tudo sugere estarmos diante de parte de um filme infantil. Mas algo estranho permeia o ár. Como se todos os componentes da coreografia parecessem estar "sabotando" a cantora e, ao mesmo tempo, chamando a atenção para o ridículo por trás do fato de uma mulher contando então com 46 anos estar atuando como uma criança.

Se na seqüência seguinte vemos a aparente tranqüilidade de uma praia entrecortada por um letreiro que, inicialmente, mantém o clima de conto de fada partindo da clássica introdução "Era uma vez... numa terra maravilhosa chamada Hollywood...", essa impressão vai sendo imediatamente quebrada pelo restante do texto, que apresenta a história de Felix Farmer, um produtor de cinema cuja longa carreira de êxitos de bilheteria é repentinamente ofuscada pelo fato de seu trabalho mais recente – e também mais caro – haver se configurado num retumbante fracasso. Então, diz o letreiro: "as pessoas do estúdio ficaram muito iradas com Felix porque ele havia perdido milhões de dólares e Felix perdeu a cabeça". Com isso, Blake Edwards já demarca de forma definitiva todo o clima de ironia, deboche e crítica amarga que transborda ao longo de todo o filme.

Sem a mínima intenção de disfarçar suas intenções, a começar pelo título, Edwards faz de seu filme um xingamento dirigido a toda estrutura que rege, não somente a política dos grandes estúdios de Hollywood, mas a toda sorte de relações hipócritas vivenciadas pelas pessoas na capital do cinema americano. Xingamento que Edwards, e também sua esposa Julie Andrews, vinham mantendo atravessado à garganta por mais de uma década, desde que Lili, Minha Adorável Espiã (1970) atingira uma péssima repercussão de crítica e bilheteria. Não coincidentemente, esta havia sido a produção mais cara de Edwards até então (US$ 25 milhões), mas cuja arrecadação mal chegou a 20% dos custos. Edwards nunca deixou de responsabilizar as interferências constantes do estúdio (a Paramount) como um dos principais responsáveis pelo resultado insatisfatório. No caso, insistindo em inserir números musicais e momentos românticos adocicados naquela que seria a história de uma agente dupla durante a 1ª Guerra Mundial, com perfil inspirado na célebre Mata Hari.

Temos, dessa forma, um caso que retrata um processo de como a estrutura do cinema americano tende a tipificar e perpetuar a longo prazo a imagem de seus artistas como meros clichês de si mesmos. Vide Julie Andrews, com sua carreira definida pelo estouro dos musicais Mary Poppins (1964) e A Noviça Rebelde (1965), de inegável apelo para o público infantil, que viriam ao longo do restante da década torná-la prisioneira de tipos maternais, inocentes e assexuados, limitando sobremaneira as fronteiras para esta que é nada menos que uma das mulheres mais talentosas que jamais apareceu um uma tela de cinema. Era essa imagem que Edwards pretendia quebrar com Lili, Minha Adorável Espiã, filme a partir do qual o diretor, já consagrado como importante nome gênero comédia, pretendia também explorar novos terrenos em sua carreira. Mas a indústria é cruel com quem rompe seus padrões e a década de 70 segue como um período de sucessivas frustrações para o casal Edwards-Andrews. Seus nomes só retornam como figuras quentes para os estúdios com o estrondo chamado Mulher Nota 10 (1979), que também marca o retorno de Julie Andrews em boa forma como atriz cômica, e até hoje a maior bilheteria da carreira do diretor.

Com o respeito e prestígio reconquistados, chega a hora de Edwards acertar as contas à sua maneira, e desse modo, S.O.B., mais que um mero filme, pode ser encarado como um acesso destemperado de ira como poucas vezes houve na história do cinema. Além disso, soma-se o fato que o passar dos anos entre Lili e S.O.B. só tornou mais atual e relevante seu protesto, com a indústria cada vez mais dependente de mega-sucessos, e mais impiedosa com o fracasso de bilheteria a curto prazo. Lembremos também que foi em 1981 que se deu o mais mitológico caso de "fracasso" do cinema americano: O Portal do Paraíso, projeto dispendioso, vultuoso e visionário de Michael Cimino, cuja derrocada, fruto mais intenso de uma má vontade de que da falta de méritos do filme em si – por sinal nada menos que uma obra-prima, de difícil assimilação ainda em nossos tempos – acabou por destruir a carreira de seu autor, que passou a ser usado como espécie de bode expiatório e visto como único culpado pela falência de um grande estúdio, a United Artists.

Voltando mais especificamente a S.O.B., temos Felix (Richard Mulligan) um produtor que tem às mãos Night Wind, uma bomba de proporções gigantescas. Deprimido, à beira do suicídio e sendo abandonado pela esposa (Julie Andrews), estrela de seus filmes. O estúdio quer, a qualquer custo, minimizar o prejuízo, remontando e relançando o trabalho. Incumbe Tim Culley (William Holden), veterano diretor pau-mandado, a convencer Felix, intransigente quanto a mudanças em seu projeto. Culley chega à residência de um Felix dopado e enfraquecido após frustradas tentativas de suicídio e consegue, em pouco tempo, instalar uma orgia na casa. Ao cair – após uma seqüência hilariante – em meio ao caos e sacanagem reinantes em sua sala, Felix desperta de seu torpor e tem a idéia do ingrediente que faltava para salvar seu filme: sexo. E decide refazê-lo como um pornô soft de mau gosto.

Segue-se um retrato das trapaças e artimanhas através das quais executivos, agentes, advogados, jornalistas ou mesmo figuras subalternas, tentam sempre galgar algo a mais, visando sempre levar alguma forma de vantagem, enquanto Felix, na intenção de manter o controle da obra, vai sendo sucessivamente lesado até o momento em que, vendo o estúdio apossar-se definitivamente de seus negativos, tenta roubá-los e acaba sendo morto pela polícia como um mero criminoso. Durante o desenrolar de S.O.B., Edwards abre mão de qualquer sutileza, retratando praticamente todas as personagens como caricaturas inescrupulosas e medíocres. Assim, o principal "vilão" é Blackman (Robert Vaughn), o chefe de estúdio que administra sua empresa como um mafioso, mas é um notório corno e cordeirinho da mulher. E Edwards apresenta aquela que talvez seja a vingança definitiva contra um dos mais execráveis tipos de Hollywood, a colunista de fofocas, fazendo Felix cair sobre a inconveniente jornalista Polly Reed (Loretta Swift), que sai da cena portando fraturas por todo o corpo, mas não desiste em sua mórbida sanha por furos sensacionalistas.

Uma das principais críticas de Edwards se faz quanto ao desconforto e a dificuldade de muitos veteranos do cinema americano em se adaptarem à liberação dos costumes que se instalou no final da década de 60, não coincidentemente o período compreendido entre a concepção inicial (1967) e o lançamento (1970) de Lili, Minha Adorável Espiã e certamente um dos responsáveis por sua má recepção, pois ao ser lançado, o filme já parecia velho. O autor não esconde um intenso rancor, e também algum moralismo, quanto à instauração de uma certa permissividade sexual, manifesta em uma piada que cita o fato de diversos personagens do filme não haverem gostado de O Último Tango em Paris. Mas também abraça, de forma crítica, mas igualmente um pouco canalha, o discurso da exploração do sexo, pensando-se que a seqüência em que Julie Andrews mostra os seios seria um grito de intenções, ao se propor a uma quebra definitiva da imagem angelical da atriz, mas também foi usada como o principal chamariz de bilheteria para o filme. Edwards, inteligente e oportunisticamente, constrói seu S.O.B. quase como um exemplar daquilo que se propõe a criticar.

Com isso, Edwards não deixa de inserir em S.O.B. tons de autocrítica, pensando em si mesmo, assim como em seu alter-ego Felix Farmer, como membros da engrenagem cujas falhas deseja apontar. Assim, uma vez que Felix pretende de algum modo prostituir-se alterando a concepção original de seu filme em função de aceitação pela indústria e o mercado, não podemos esquecer que Edwards não deixou de, a seu modo, fazer o mesmo, cafetizando até a mais completa exaustão, e mesmo após a morte de Peter Sellers, a figura do Inspetor Clouseau. Outro pequeno detalhe que não pode ser esquecido ao pensarmos o filme S.O.B. está no fato da personagem Felix, intransigente em manter o controle autoral e criativo de seu filme frente às imposições do estúdio, ser um produtor, e não o diretor, sempre valorizado como artista. Esse, no caso Tim Culley, está bem distante de tal perfil, sendo caracterizado como um bon-vivant, figura indiscutivelmente simpática, mas pouco interessado em impor uma visão pessoal frente a investidores e produtores.

Considerando mais uma vez a seqüência de abertura, essa passa a fazer todo sentido quando descobrimos que ela seria parte integrante do Night Wind original. E toda sua esquisitice torna-se ainda mais intensa quando ela é refilmada sob uma hilária concepção de pesadelo inflado de clichês sexuais e psicanalíticos, culminando com o topless de Julie Andrews. Esse é talvez o momento mais feliz de S.O.B. e podemos perceber aqui uma paródia ao estilo musical-coreográfico estabelecido por Bob Fosse, que mudou para sempre o cinema musical, tornando obsoleto o estilo que consagrara Julie Andrews. Voltando ao caso Lili como catalisador de S.O.B., lembramos que sua estréia foi precedida em um ano pelo primeiro trabalho de Fosse em cinema: Charity Meu Amor, que mesmo não sendo sucesso de bilheteria ao ser lançado, deixou plantadas as marcas de uma estética inovadora.

Não há dúvidas que S.O.B. é um filme que apresenta em seu conjunto diversas incongruências quanto ao tom e à unidade entre suas partes. Mas como poderíamos esperar que um acesso de raiva seja um ato completamente coerente e equilibrado? É de fato esse despudorado destempero que faz com que o trabalho mantenha sua força mesmo em seus momentos menos interessantes e guarde sua contundência até quando posto ao lado de críticas ao universo de Hollywood realizadas de forma mais coesa, elaborada e, consequentemente mais equilibrada, como por exemplo O Jogador, de Robert Altman.

Acima de tudo, vale carregar consigo a figura através da qual Blake Edwards se utiliza para sua mais sutil e inteligente crítica ao superficialismo de Hollywood em S.O.B.: o homem que, logo após os letreiros iniciais, morre de infarto durante um passeio na praia e que, apesar dos incessantes apelos de seu cachorro, segue ignorado pelos passantes, inicialmente preocupados em aproveitar o dia de sol, e depois concentrados no tumulto em casa de Felix Farmer. No decorrer do filme, descobriremos ser este homem um ator aposentado, que já tivera seus dias de glória, mas que esquecido, quase é enterrado como o indigente. O que poderia ter sido o destino de Edwards se não houvesse adaptado-se ao sistema e, oportunamente, exorcizado seus fantasmas com esse, que seria juntamente a Assim é a Vida (1986) seu trabalho de cunho mais íntimo e pessoal. Ao longo desse processo, tornando sua personalidade viável à indústria, o que acabaria por resultar em prolífica, apesar de irregular, carreira durante a década de 1980.


Gilberto Silva Jr.

(DVD: Warner)