S.O.B. é um filme que já se anuncia
estranho logo nos créditos de abertura. Julie
Andrews aparece caracterizada como uma menina-boneca,
cantando uma música pueril em meio a dançarinos
vestidos como brinquedos. Tudo sugere estarmos diante
de parte de um filme infantil. Mas algo estranho permeia
o ár. Como se todos os componentes da coreografia
parecessem estar "sabotando" a cantora e,
ao mesmo tempo, chamando a atenção para
o ridículo por trás do fato de uma mulher
contando então com 46 anos estar atuando como
uma criança.
Se na seqüência seguinte vemos a aparente
tranqüilidade de uma praia entrecortada por um
letreiro que, inicialmente, mantém o clima de
conto de fada partindo da clássica introdução
"Era uma vez... numa terra maravilhosa chamada
Hollywood...", essa impressão vai sendo
imediatamente quebrada pelo restante do texto, que apresenta
a história de Felix Farmer, um produtor de cinema
cuja longa carreira de êxitos de bilheteria é
repentinamente ofuscada pelo fato de seu trabalho mais
recente – e também mais caro – haver se configurado
num retumbante fracasso. Então, diz o letreiro:
"as pessoas do estúdio ficaram muito iradas
com Felix porque ele havia perdido milhões de
dólares e Felix perdeu a cabeça".
Com isso, Blake Edwards já demarca de forma definitiva
todo o clima de ironia, deboche e crítica amarga
que transborda ao longo de todo o filme.
Sem a mínima intenção de disfarçar
suas intenções, a começar pelo
título, Edwards faz de seu filme um xingamento
dirigido a toda estrutura que rege, não somente
a política dos grandes estúdios de Hollywood,
mas a toda sorte de relações hipócritas
vivenciadas pelas pessoas na capital do cinema americano.
Xingamento que Edwards, e também sua esposa Julie
Andrews, vinham mantendo atravessado à garganta
por mais de uma década, desde que Lili, Minha
Adorável Espiã (1970) atingira uma
péssima repercussão de crítica
e bilheteria. Não coincidentemente, esta havia
sido a produção mais cara de Edwards até
então (US$ 25 milhões), mas cuja arrecadação
mal chegou a 20% dos custos. Edwards nunca deixou de
responsabilizar as interferências constantes do
estúdio (a Paramount) como um dos principais
responsáveis pelo resultado insatisfatório.
No caso, insistindo em inserir números musicais
e momentos românticos adocicados naquela que seria
a história de uma agente dupla durante a 1ª Guerra
Mundial, com perfil inspirado na célebre Mata
Hari.
Temos, dessa forma, um caso que retrata um processo
de como a estrutura do cinema americano tende a tipificar
e perpetuar a longo prazo a imagem de seus artistas
como meros clichês de si mesmos. Vide Julie Andrews,
com sua carreira definida pelo estouro dos musicais
Mary Poppins (1964) e A Noviça Rebelde
(1965), de inegável apelo para o público
infantil, que viriam ao longo do restante da década
torná-la prisioneira de tipos maternais, inocentes
e assexuados, limitando sobremaneira as fronteiras para
esta que é nada menos que uma das mulheres mais
talentosas que jamais apareceu um uma tela de cinema.
Era essa imagem que Edwards pretendia quebrar com Lili,
Minha Adorável Espiã, filme a partir
do qual o diretor, já consagrado como importante
nome gênero comédia, pretendia também
explorar novos terrenos em sua carreira. Mas a indústria
é cruel com quem rompe seus padrões e
a década de 70 segue como um período de
sucessivas frustrações para o casal Edwards-Andrews.
Seus nomes só retornam como figuras quentes para
os estúdios com o estrondo chamado Mulher
Nota 10 (1979), que também marca o retorno
de Julie Andrews em boa forma como atriz cômica,
e até hoje a maior bilheteria da carreira do
diretor.
Com o respeito e prestígio reconquistados, chega
a hora de Edwards acertar as contas à sua maneira,
e desse modo, S.O.B., mais que um mero filme,
pode ser encarado como um acesso destemperado de ira
como poucas vezes houve na história do cinema.
Além disso, soma-se o fato que o passar dos anos
entre Lili e S.O.B. só tornou mais
atual e relevante seu protesto, com a indústria
cada vez mais dependente de mega-sucessos, e mais impiedosa
com o fracasso de bilheteria a curto prazo. Lembremos
também que foi em 1981 que se deu o mais mitológico
caso de "fracasso" do cinema americano: O
Portal do Paraíso, projeto dispendioso, vultuoso
e visionário de Michael Cimino, cuja derrocada,
fruto mais intenso de uma má vontade de que da
falta de méritos do filme em si – por sinal nada
menos que uma obra-prima, de difícil assimilação
ainda em nossos tempos – acabou por destruir a carreira
de seu autor, que passou a ser usado como espécie
de bode expiatório e visto como único
culpado pela falência de um grande estúdio,
a United Artists.
Voltando mais especificamente a S.O.B., temos
Felix (Richard Mulligan) um produtor que tem às
mãos Night Wind, uma bomba de proporções
gigantescas. Deprimido, à beira do suicídio
e sendo abandonado pela esposa (Julie Andrews), estrela
de seus filmes. O estúdio quer, a qualquer custo,
minimizar o prejuízo, remontando e relançando
o trabalho. Incumbe Tim Culley (William Holden), veterano
diretor pau-mandado, a convencer Felix, intransigente
quanto a mudanças em seu projeto. Culley chega
à residência de um Felix dopado e enfraquecido
após frustradas tentativas de suicídio
e consegue, em pouco tempo, instalar uma orgia na casa.
Ao cair – após uma seqüência hilariante
– em meio ao caos e sacanagem reinantes em sua sala,
Felix desperta de seu torpor e tem a idéia do
ingrediente que faltava para salvar seu filme: sexo.
E decide refazê-lo como um pornô soft
de mau gosto.
Segue-se um retrato das trapaças e artimanhas
através das quais executivos, agentes, advogados,
jornalistas ou mesmo figuras subalternas, tentam sempre
galgar algo a mais, visando sempre levar alguma forma
de vantagem, enquanto Felix, na intenção
de manter o controle da obra, vai sendo sucessivamente
lesado até o momento em que, vendo o estúdio
apossar-se definitivamente de seus negativos, tenta
roubá-los e acaba sendo morto pela polícia
como um mero criminoso. Durante o desenrolar de S.O.B.,
Edwards abre mão de qualquer sutileza, retratando
praticamente todas as personagens como caricaturas inescrupulosas
e medíocres. Assim, o principal "vilão"
é Blackman (Robert Vaughn), o chefe de estúdio
que administra sua empresa como um mafioso, mas é
um notório corno e cordeirinho da mulher. E Edwards
apresenta aquela que talvez seja a vingança definitiva
contra um dos mais execráveis tipos de Hollywood,
a colunista de fofocas, fazendo Felix cair sobre a inconveniente
jornalista Polly Reed (Loretta Swift), que sai da cena
portando fraturas por todo o corpo, mas não desiste
em sua mórbida sanha por furos sensacionalistas.
Uma das principais críticas de Edwards se faz
quanto ao desconforto e a dificuldade de muitos veteranos
do cinema americano em se adaptarem à liberação
dos costumes que se instalou no final da década
de 60, não coincidentemente o período
compreendido entre a concepção inicial
(1967) e o lançamento (1970) de Lili, Minha
Adorável Espiã e certamente um dos
responsáveis por sua má recepção,
pois ao ser lançado, o filme já parecia
velho. O autor não esconde um intenso rancor,
e também algum moralismo, quanto à
instauração de uma certa permissividade
sexual, manifesta em uma piada que cita o fato de diversos
personagens do filme não haverem gostado de O
Último Tango em Paris. Mas também
abraça, de forma crítica, mas igualmente
um pouco canalha, o discurso da exploração
do sexo, pensando-se que a seqüência em que
Julie Andrews mostra os seios seria um grito de intenções,
ao se propor a uma quebra definitiva da imagem angelical
da atriz, mas também foi usada como o principal
chamariz de bilheteria para o filme. Edwards, inteligente
e oportunisticamente, constrói seu S.O.B.
quase como um exemplar daquilo que se propõe
a criticar.
Com isso, Edwards não deixa de inserir em S.O.B.
tons de autocrítica, pensando em si mesmo, assim
como em seu alter-ego Felix Farmer, como membros
da engrenagem cujas falhas deseja apontar. Assim, uma
vez que Felix pretende de algum modo prostituir-se alterando
a concepção original de seu filme em função
de aceitação pela indústria e o
mercado, não podemos esquecer que Edwards não
deixou de, a seu modo, fazer o mesmo, cafetizando até
a mais completa exaustão, e mesmo após
a morte de Peter Sellers, a figura do Inspetor Clouseau.
Outro pequeno detalhe que não pode ser esquecido
ao pensarmos o filme S.O.B. está no fato
da personagem Felix, intransigente em manter o controle
autoral e criativo de seu filme frente às imposições
do estúdio, ser um produtor, e não o diretor,
sempre valorizado como artista. Esse, no caso Tim Culley,
está bem distante de tal perfil, sendo caracterizado
como um bon-vivant, figura indiscutivelmente
simpática, mas pouco interessado em impor uma
visão pessoal frente a investidores e produtores.
Considerando mais uma vez a seqüência de
abertura, essa passa a fazer todo sentido quando descobrimos
que ela seria parte integrante do Night Wind original.
E toda sua esquisitice torna-se ainda mais intensa quando
ela é refilmada sob uma hilária concepção
de pesadelo inflado de clichês sexuais e psicanalíticos,
culminando com o topless de Julie Andrews. Esse
é talvez o momento mais feliz de S.O.B. e
podemos perceber aqui uma paródia ao estilo musical-coreográfico
estabelecido por Bob Fosse, que mudou para sempre o
cinema musical, tornando obsoleto o estilo que consagrara
Julie Andrews. Voltando ao caso Lili como catalisador
de S.O.B., lembramos que sua estréia foi
precedida em um ano pelo primeiro trabalho de Fosse
em cinema: Charity Meu Amor, que mesmo não
sendo sucesso de bilheteria ao ser lançado, deixou
plantadas as marcas de uma estética inovadora.
Não há dúvidas que S.O.B. é
um filme que apresenta em seu conjunto diversas incongruências
quanto ao tom e à unidade entre suas partes.
Mas como poderíamos esperar que um acesso de
raiva seja um ato completamente coerente e equilibrado?
É de fato esse despudorado destempero que faz
com que o trabalho mantenha sua força mesmo em
seus momentos menos interessantes e guarde sua contundência
até quando posto ao lado de críticas ao
universo de Hollywood realizadas de forma mais coesa,
elaborada e, consequentemente mais equilibrada, como
por exemplo O Jogador, de Robert Altman.
Acima de tudo, vale carregar consigo a figura através
da qual Blake Edwards se utiliza para sua mais sutil
e inteligente crítica ao superficialismo de Hollywood
em S.O.B.: o homem que, logo após os letreiros
iniciais, morre de infarto durante um passeio na praia
e que, apesar dos incessantes apelos de seu cachorro,
segue ignorado pelos passantes, inicialmente preocupados
em aproveitar o dia de sol, e depois concentrados no
tumulto em casa de Felix Farmer. No decorrer do filme,
descobriremos ser este homem um ator aposentado, que
já tivera seus dias de glória, mas que
esquecido, quase é enterrado como o indigente.
O que poderia ter sido o destino de Edwards se não
houvesse adaptado-se ao sistema e, oportunamente, exorcizado
seus fantasmas com esse, que seria juntamente a Assim
é a Vida (1986) seu trabalho de cunho mais
íntimo e pessoal. Ao longo desse processo, tornando
sua personalidade viável à indústria,
o que acabaria por resultar em prolífica, apesar
de irregular, carreira durante a década de 1980.
Gilberto Silva Jr.
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