Antes de começarmos a falar especificamente sobre
o filme Mulher Nota 10, fica um protesto bastante
pertinente, já que essa é uma seção
sobre DVDs: Por que, ao contrário do que ocorreu
com o lançamento dos demais filmes de Edwards
editados para essa mídia, todos disponíveis
no formato widescreen-letterbox, que reproduz
os enquadramentos cuidadosamente concebidos pelo cineasta
para tela larga, Mulher Nota 10 recebeu, por
parte da distribuidora Warner Video um tratamento desleixado,
que resultou numa versão em tela cheia? Acredito
que não haja explicação plausível,
exceto por descaso e falta de respeito ao consumidor.
Então, diga-se de uma vez que, infelizmente,
Mulher Nota 10 não pode ser, ao menos
entre nós, avaliado em toda sua complexidade,
já que Blake Edwards foi um diretor que, ao longo
da maior parte da carreira, elaborava esmeradamente
sua mise-en-scène em função
do Cinemascope. Fato mais grave ainda em função
da tamanha importância desse filme em sua trajetória:
nada mais, nada menos, que seu maior êxito de
bilheteria.
E isso pode ser uma surpresa para muitos, já
que Mulher Nota 10 é hoje em dia um filme
bastante esquecido e pouco assistido, ao contrário
de muitos outros assinados por Blake Edwards. Mas só
quem era vivo na virada entre os anos 1979 e 1980 para
recordar que, mais até que um filme de sucesso,
este foi um verdadeiro fenômeno de mídia,
dada a onipresença das fotos de Bo Derek, com
seu cabelo em trancinhas e vestindo um maiô bege,
conforme aparece no filme, em uma infinita sucessão
de capas de revista e cartazes. Além de alavancar
a carreira cinematográfica da modelo – que se
manteve como uma imagem icônica ao menos ao longo
da 1ª metade da década de 80, aparecendo
em filmes de gosto no mínimo duvidoso - Mulher
Nota 10 fez de Dudley Moore um astro, marcou o retorno
de Julie Andrews ao cinema após uma década
de ostracismo e tornou possível a prolífica
filmografia de Edwards ao longo dos anos seguintes.
Mais surpreendente ainda pelo fato de, apesar de ter
sido vendido ao público como uma comédia
com forte apelo sexual, quase comparável às
pornochanchadas brasileiras de então, Mulher
Nota 10 é um filme que, se não chega
a ser de todo triste, carrega em sua essência
uma melancolia muito intensa. Se a sexualidade franca,
com muitas cenas de nudez, fato incomum tanto na carreira
de Edwards como no cinema americano de grandes estúdios,
pode ter contribuído para atrair um público
mais jovem e garantir a venda de ingressos, uma visão
atenta do filme deixa claro que esse foi concebido para
um público de meia-idade que vivenciaria os conflitos
dos protagonistas quarentões, o compositor George
(Moore) e sua namorada Samantha (Andrews).
O filme começa com uma festa surpresa de aniversário
para George, completando 42 anos. Segue desenvolvendo
o desconforto do personagem quanto ao momento em que
vive, sua falta de novas emoções ou expectativas,
o medo da velhice, a vida sexual morna dispersa em discussões
estéreis com a companheira, o ceticismo em relação
à vida sentimental de seu amigo e letrista (Robert
Webber) – um homossexual maduro sempre acompanhado de
"garotões". George resume em uma palavra
aquilo que sente: "invalidado", o que se agrava
com a constante visão de toda uma juventude que
o cerca, seja nas mulheres que passam pela rua, seja
na casa de seu vizinho de frente, um sexólatra
que vive em infinita relação com belas
jovens e freqüentes orgias, que George constantemente
espiona por um telescópio. Blake Edwards apresenta
o drama de seu protagonista de forma delicada, convincente
e honesta, provavelmente reflexo de muitas situações
que devem ter sido experimentadas por ele próprio.
E, naturalmente, sem esquecer de banhar esse drama em
um bom humor e ironia peculiares.
George sente sua vida ingressar em uma espécie
de limbo, que se reflete no sentimento confuso que o
tempo (seu tempo?) estaria passando, associado a uma
ânsia de viver ainda mais intensamente. Daí
a necessidade de buscar novas emoções,
novos objetivos, mesmo que idealizados e fantasiosos.
É o que ocorre ao emparelhar no trânsito
com um lindo rosto de mulher vestida de noiva (Bo Derek).
George inicia uma busca irracional e compulsiva por
esta mulher, tão inacessível para si próprio
como uma volta no tempo a sua juventude. Nessa busca,
vemos o diretor explorar com sua habitual maestria de
comediógrafo seqüências de humor físico
e visual que atingem a excelência. Um George sucessivamente
bêbado e drogado por analgésicos, rolando
por barrancos e babando anestesiado após uma
consulta ao dentista, reflexo de sua impassibilidade
quanto ao destino que o conduz e impede um mais que
necessário contato telefônico com Samantha,
coisa hoje inadmissível após a chegada
dos celulares. Nesses momentos, em que Blake Edwards
explora até quase o exagero os desencontros da
vida, louve-se a atuação perfeita de Dudley
Moore, um ator que quando mal dirigido sempre tendeu
a cair em exagero e galhofa, aqui trabalhado pelo diretor
em todo seu potencial como cômico, mímico,
músico e – por que não? – galã.
Quando George acaba, dentro de seu delírio compulsivo,
viajando para o México e se hospedando no hotel
onde sua musa estaria em lua-de-mel, Mulher Nota
10 atinge toda sua plenitude como retrato impiedoso
da crise de meia-idade, em situações muito
próximas daquelas que viriam a ser vividas 24
anos depois por Bob Harris (Bill Murray) em Encontros
e Desencontros de Sofia Coppola. Vemos George bebendo
sem parar e travando riquíssimos diálogos
com o barman (Brian Dennehy), ao som do tema
do filme Laura, enquanto Bo Derek dança
ao fundo com seu jovem marido. Fica inevitável
o contraste de gerações, a constatação
de que o tempo passou e que essa passagem seria até
mais cruel para as mulheres, como fica claro na mulher
(Dee Wallace) que flerta com George no bar. Mas George
sente-se igualmente desconfortável em se deixar
levar e transformar-se em mais um daqueles corôas
bêbados e decadentes que encontra na praia. Há
que se fazer alguma coisa além de sonhar. E essa
coisa a fazer pode ser a inspiração para
compor uma nova canção, o que acaba rendendo
uma belíssima seqüência que retrata
incisivamente uma incompatibilidade entre o sonho e
a melancolia da vida que segue, com Dudley Moore solando
ao piano o tema de Henry Mancini e a personagem de Dee
Wallace chorando desiludida.
Se o destino acaba por tornar possível que George
chegue à cama de sua musa, essa materialização
do sonho acaba sendo totalmente anticlimática
e marcada por uma forte incompatibilidade. Não
podemos deixar de considerar todos esses últimos
momentos de Mulher Nota 10 como uma visão
céptica do diretor-roteirista quanto a uma juventude
mais fútil ou liberada; ele/George homem de outros
tempos para quem a convivência entre amor e promiscuidade
seriam inadmissíveis. Soma-se a percepção
do fato que, apesar da constante insatisfação
do ser humano, a busca da felicidade estaria na exploração
da própria realidade em que se vive, buscando
dela extrair o melhor. Daí o contraste entre
as imagens solares de Bo Derek correndo na praia e o
último plano em que ela aparece, deitada nua
na cama, retrato seco da constatação de
que tudo aquilo rapidamente ficou para trás.
Se o final com a reconciliação entre George
e Samantha pode mesmo ser considerado conformista ou
fantasioso, não devemos esquecer que, para Blake
Edwards, essa conclusão é indiscutivelmente
honesta e coerente, reflexo de suas opções
e experiências pessoais. Final esse que também
não deixa de ser arrematado com um talento cinematográfico
certeiro, trazendo de volta à tona com humor
preciso, e sob um renovado prisma, o telescópio
e o Bolero de Ravel.
Gilberto Silva Jr.
(DVD/VHS: Warner)
|