Tudo vai bem
A prova de otimismo sui generis de David O. Russell
não chegou aos cinemas do Brasil. Mas o lapso
do circuito exibidor não é dos mais graves:
no máximo deixou de lado um filme que, nos seus
devaneios idiossincráticos, endossa a visão
de um homem sentimentalmente imaturo e existencialmente
em crise que tantos outros filmes recentes já
abordaram – a começar pelas obras originadas
dos roteiros de Charlie Kaufman, de Quero Ser John
Malkovich a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.
E Huckabees – A Vida é uma Comédia
de fato traz ecos fortes desse mundo virado de cabeça
para baixo pelas narrativas recheadas de labirintos
cenográficos e sub-tramas mil, presentes não
apenas no broken heart club de Kaufman e cia,
mas também no P. T. Anderson de Embriagado
de Amor e em Wes Anderson quando faz um filme como
A Vida Marinha com Steve Zissou. Russell não
esconde de onde vêm as principais influências
ao realizar sua screwball comedy neurastênica:
Huckabees é em grande medida o projeto
de alguém que, entre uma tomada e outra de Três
Reis (interessantíssima encenação
do absurdo pós-Guerra do Golfo, com fortes conotações
surreais), assistia a um pedaço de Rushmore
para relaxar e pensar já no passo seguinte. Enquanto
procurava um estúdio interessado no projeto,
houve até quem lhe dissesse que a Paramount andava
procurando algo que fosse na linha de Os Excêntricos
Tenenbaums, portanto ele teria chance por lá
(mas o estúdio que acabou embarcando na viagem
de Russell foi mesmo a Fox).
Assim sendo, o personagem de Jason Schwartzman em Huckabees
é tranqüilamente uma continuação
do protagonista que interpretou em Rushmore (também
conhecido como Três É Demais). Para
um produto sub-Anderson, Huckabees até
adquire um valor na sobrecarga, pois começamos
a perceber que se trata de uma proposta mais arriscada
e inconseqüente do que as opções
estéticas que o próprio A Vida Marinha
com Steve Zissou apresenta. A tendência disjuntiva,
que em Três Reis era apenas um tempero
discreto, aqui se torna a mola mestra da narrativa.
Russell não oferece a seu espectador um ponto
de estabilidade ao longo do filme: tudo resplandece
de forma confusa e saturada. A trilha sonora de Jon
Brion (de quem Russell admirava o trabalho em Embriagado
de Amor) auxilia na tradução da estranheza
em um tipo quase inexplicável de alegria. Sob
o caos, a meditação, a auto-análise,
a angústia, enfim, sob tudo que atormenta o universo
habitado pelos personagens do filme, a música
tem o poder de mostrar que corre uma alegria e uma leveza
que são, no fundo, o que realmente deve ser levado
em consideração. Huckabees é
um filme que quer ser otimista-apesar-do-mundo. De certa
forma, Russell faz aqui a purgação de
uma geração crescida sob a égide
da psicanálise e do desespero existencial que
levou à proliferação dos livros
de auto-ajuda, das teorias sobre tudo, das terapias
alternativas, da "cultura" new age.
E como sugeriu Gavin Smith, editor da Film Comment (em
que o filme foi capa), Huckabees pode também
ser uma resposta zen ao niilismo irônico de Clube
da Luta.
Faz mesmo sentido enxergar Albert Markovski (Jason Schwartzman)
como uma versão adocicada do personagem de Edward
Norton no filme de David Fincher. Jovem poeta frustrado,
Albert é também ativista de uma coalizão
engajada na preservação do meio-ambiente,
sendo contra a progressiva urbanização
do subúrbio em que o filme se passa. Fazendo
jus ao nome da coalizão, Open Space, o filme
mostra uma cidade que praticamente só cresce
na horizontal, dando uma impressão de espaço
amplo e indeterminado (e não há plano
aéreo dessa cidade). As únicas estruturas
verticais que aparecem no filme são o edifício
em que se acha a corporação que está
no título, Huckabees, e o prédio em que
vivem os pais de Albert. Em uma e outra locação,
as versões humanas dos seus tormentos, a começar
por Brad Stand (Jude Law), oposto extremo de Albert,
executivo bem sucedido que namora Dawn (Naomi Watts),
a garota-propaganda da empresa. Albert odeia Brad –
que lhe passa a perna para promover a marca de sua empresa
junto ao merchandising social – com todas as suas forças,
o que o casal de "detetives existenciais"
representado por Bernard (Dustin Hoffman) e Vivian (Lily
Tomlin) tenta provar que é apenas uma reação
ilógica a um "outro" que não
é senão sua continuação
indistinta. A terapia proposta por Bernard, enquanto
sua esposa Vivian investiga cada detalhe da vida de
seus clientes, é se enfiar em uma manta, fechar-se
para o mundo e perceber que tudo pertence a um mesmo
caos originário. A paz através do caos.
Coisa de doido? "Tudo está conectado, tudo
faz sentido", Bernard não cansa de dizer,
ao que Caterine Vaubert (Isabelle Huppert), autora de
um best seller desencantado e negativista, responde
dizendo que a verdade universal consiste em "crueldade,
manipulação e insignificância".
No fim, entretanto, todos contribuem positivamente para
uma mesma narrativa de redenção: Russell
dilui a fronteira entre antagonismo e protagonismo.
E para isso conta com um elenco realmente excelente:
ninguém melhor que Jude Law (que mais e mais
vem se provando um grande ator) para o eurotrash
arrogante, em seu cotidiano de plástico ao lado
da "Miss Huckabees", que é a brilhante
Naomi Watts; Dustin Hoffman parece se divertir a cada
plano neste filme que sacode o universo temático
de A Primeira Noite de um Homem; Isabelle Huppert
fala em inglês mas joga em casa, pois a stalker
filósofa-do-pessimismo que ela interpreta jamais
poderia estar a cargo de outra atriz; Mark Wahlberg,
que já tinha sido um dos protagonistas em Três
Reis, está ótimo como o bombeiro irascível
que enxerga no petróleo a fonte de todos os problemas
da contemporaneidade.
Russell fez uma comédia ensaística sobre
um tempo (presente) em que os filósofos mais
otimistas são os primeiros a cair em depressão,
e o fez sem uma narração explicativa (suas
brincadeiras com a voz off vão totalmente
no sentido de aumentar a confusão). Mas é
aquilo: basta voltar no tempo e achar um filmaço
como Meu Tio da América, de Alain Resnais,
para reconhecer uma obra que trabalha questões
parecidas – também em modo de ensaio-comédia-documento
bruto do presente – e é bem melhor resolvida
na sua estrutura e na sua estética. Que não
se cometa uma injustiça, contudo: como resposta
(nem afirmativa nem negativa, apenas uma resposta) a
um cinema que é feito hoje nos EUA e que, volta
e meia, acaba sendo muito querido pela crítica
de lá, Huckabees se mostra um dos trabalhos
mais interessantes dos últimos anos no panorama
indie do cinema americano. Já como caricatura
do ambiente corporativo e reflexão sobre o estatuto
da imagem pós-publicitária, o filme deixa
a desejar. Por ora, perceber que Russell consegue dar
leveza a um filme que tinha tudo para pesar toneladas
de teorias insípidas (= Waking Life) é
o suficiente para aguardar seu próximo filme
com algum... otimismo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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