Blake Edwards Greatest Hits from Malibu
Qual a imagem que vem a mente quando a expressão
cinema regional é mencionada? Decerto, não
uma que inclua mansões, carros conversíveis,
um sem número de belas mulheres, psiquiatras
e atendentes de bar compreensivos. Se há algo
de único na obra de Blake Edwards, é justamente
o fato dele não só se propor a fazer um
cinema eminentemente local dentro da indústria,
mas ter como sua fauna regional justamente Los Angeles,
e mais especificamente o universo da alta classe artística
da cidade. É um mundo que o cineasta conhece
muito bem nas suas qualidades e defeitos, e para o qual
ele pode jogar um olhar terno, embora freqüentemente
amargo, que o coloca muito distante de outros filmes
sobre este universo. Esta sensibilidade esteve presente
desde o começo da carreira de Edwards no final
dos anos 50, época em que variava bastante sua
geografia e seus temas. Será a partir do sucesso
de Mulher Nota 10 que relançou sua carreira
em 79 que o cineasta se tornará quase monotemático
e fincará de vez os pés na sua própria
vizinhança. É o início de um período
de cerca de 10 anos (79/89) dos mais produtivos e
criativos que um cineasta americano teve depois que
o velho sistema dos estúdios ruiu que inclui
uma média superior a um filme por ano, tendo
pelo menos seis grandes filmes (Mulher Nota 10,
S.O.B., Victor ou Victória, Minhas
Duas Mulheres, Assassinato em Hollywood,
As Conquistas de um Sedutor). É também
um período que existe à parte da obra
anterior de Edwards, não por representar exatamente
uma ruptura, já que muitos elementos destes filmes
já eram nítidos nos filmes anteriores,
e sim por redirecioná-la.
Vale destacar que os anos imediatamente anteriores a
Mulher Nota 10 são dos mais estranhos para
o cineasta: a década de 70 começou para
ele com Lili, Minha Adorável Espiã,
superprodução musical que fizera como
uma espécie de presente para sua esposa Julie
Andrews e que fracassou comercialmente de forma tão
retumbante que quase levou a Universal para o buraco
(e efetivamente encerrou a carreira da atriz como grande
estrela); dali por diante Edwards gastou os anos seguintes
reconstruindo seu nome e a partir de 74 realizou uma
série de filmes sobre o Inspetor Closeau como
diretor de aluguel, uma espécie de refém
da sua própria cria que se vê obrigado
a reproduzi-la em série, já que ela se
tornou o único meio dele seguir trabalhando.
Há muito o que destacar nesses filmes cheios
de momentos cômicos dos mais inventivos, mas não
há como negar que Edwards e Peter Sellers estão
ali a contra gosto e isto registra cada vez mais forte
nos filmes. Daí Mulher Nota 10 ser uma
espécie de recomeço para Edwards, e a
partir dele seus filmes se concentrarem cada vez mais
na sua vizinhança e nos seus problemas, naquilo
que em poucos de seus filmes anteriores surgira em primeiro
plano. Não surpreende que ele tenha seguido Mulher
Nota 10 com S.O.B., uma sátira nem
um pouco disfarçada sobre o fracasso de Lili.
É preciso dizer que nem tudo nestes filmes é
perfeito. Salvo por S.O.B. e Victor ou Victoria?,
todos os melhores filmes de Edwards sofrem com finais
felizes corridos que parecem sempre dispostos a simplificar
o que o cineasta havia tão cuidadosamente construído
(os cinco minutos finais de Minhas Duas Mulheres
e As Conquistas de um Sedutor, por exemplo, parecem
pertencer a filmes completamente diferentes). Em nenhum
caso de forma tão extrema quanto em Encontro
às Escuras, que chega próximo de um
filme de horror enquanto narra a destruição
passo a passo da vida de Bruce Willis na primeira hora
do filme e depois se transforma na meia hora final numa
comédia de recasamento cheia de boas gags, mas
um bocado frustrante. Há também a relação
complicada de Edwards com a psiquiatria. Não
é nenhuma surpresa, por exemplo, descobrir que
Assim é a Vida, o mais fraco dos filmes
autobiográficos do período, tenha sido
co-escrito pelo psiquiatra do cineasta. Seu muito interessante
remake de O Homem que Amava as Mulheres sofre
com a idéia de estruturá-lo a partir das
idas do personagem-título (Burt Reynolds) ao
analista. Reynolds poucas vezes esteve tão bem
e os momentos mais fortes do filme (como todas as seqüências
com Kim Basinger) estão entre os melhores de
Edwards, mas a estrutura acaba tirando um pouco da força
do filme que por vezes termina soando como mero estudo
de caso.
Então aonde reside a força destes filmes?
Para começar, na capacidade de Edwards de representar
seu universo. Um dos grandes prazeres dos filmes deste
período reside na galeria de tipos que povoam
o fundo das tramas: em Mulher Nota 10, por exemplo,
o compositor gay (Robert Webber) e o atendente de bar
(Brian Dennehy); o desabafo da mulher (Dee Wallace)
que Dudley Moore encontra num bar sobre como todos os
homens com quem vai para cama não darem conta
do recado registra tão forte quanto a crise de
meia idade de Moore, mesmo ela estando no filme por
menos de dez minutos. Edwards parece conhecer este espaço
como poucos, sabe o que ele tem de artificial, as diferentes
maneiras com que as pessoas se relacionam com ele. É
fascinante a maneira como Edwards trabalha o sentimento
de desconexão inerente a Los Angeles (um curta-metragista
poderia fazer um belo filme de montagem a partir das
cenas com carros nesses filmes), assim como a atração
que boa parte de seus personagens tem pelo lugar. Mais
importante: o olhar que Edwards lança jamais
será de um outsider. É muito por isso
que S.O.B. permanece a melhor sátira a
Hollywood. Há melhores filmes a partir do assunto,
mas não sobre ele, e muito disto porque
ao contrário de todos os outros cineastas talentosos
que resolveram tratá-lo, Edwards não tem
problema algum de se assumir como um insider.
Num primeiro momento, o filme pode não parecer
tão envolvente, seu humor soar um tanto óbvio,
isto até percebemos como ele efetivamente chega
ao assunto. O herói do filme é um produtor
(Richard Mulligan) e não um roteirista ou diretor,
como se espera que produz um musical milionário
que não interessa a ninguém (leia-se Lili,
Minha Adoravel Espiã). Ele enlouquece e resolve
que, se o público se recusa a ver o bom e velho
entretenimento familiar, vai lhe dar uma nova versão
porno-soft em que sua esposa/estrela (Julie Andrews)
irá aparecer nua pela primeira vez. Só
isso. O filme é sobre como alguns amigos o ajudam
enquanto alguns tantos outros tentam lhe puxar o tapete.
O que termina por elevá-lo é a sua constatação
mais simples: Hollywood é no fundo uma grande
fábrica de salsichas e há a forma como
o cineasta faz com que ela ressoe nos seus personagens.
A grande tragédia é que tudo ali é
pensado para ser um autômato em série (logo
Edwards que tivera a sua experiência de produção
seriada com as Panteras Cor de Rosa e que antes tivera
seu primeiro sucesso na TV) e isto inclui as pessoas
que vivem desta indústria. A força do
filme vem muito da maneira como alguns personagens negociam
com isso, e a forma como Edwards leva a situação
até o extremo a que não esperávamos
que alguém fosse chegar. Até mesmo a estrutura
épica do filme é usada por Edwards para
ressaltar as maneiras como a indústria de cinema
funciona, automatizando seus membros. As últimas
cenas são o mais simples e singelo tapa na cara
que Edwards poderia encontrar, uma espécie de
atestado de independência do cineasta, sua forma
bastante particular de resistência.
Edwards é um destes cineastas cujo lado sensível
convive de perto com um outro bastante cruel, que costuma
se demonstrar de forma mais direta justamente nos seus
momentos mais cômicos, algo que é bastante
visível em S.O.B.. Andrew Sarris aponta
que Edwards foi o primeiro cineasta americano que provou
ser possível usar a velha gag do homem que escorrega
na casca de banana, mostrar que ele quebrou a perna
e a partir disso tornar a situação ainda
mais engraçada, algo em que S.O.B. talvez
seja o exemplo mais claro. A certa altura, uma perseguição
de screwball termina em assassinato e a conclusão
acaba sendo seu auge cômico, mesmo com o cineasta
não aliviando a situação e a vítima
não sendo um dos personagens que pudéssemos
imaginar tendo este final. Não há diferenças
para Edwards entre drama e comédia, entre o sensível
e o grosseiro e, por fim, não há limites
para o mau gosto. As Confusões de um Sedutor,
o último filme do período, talvez seja
a expressão mais clara disso tudo. Trata-se de
um filme seríssimo como todas as melhores comédias
de Edwards sobre um escritor don juan alcoólatra
e sua decida ao fundo do poço que é também
uma aula em timing cômico (basta ver a cena inicial
em que John Ritter é pego pela amante na cama
com sua cabelereira e todos eles são surpreendidos
pela chegada da esposa). A construção
de cada grande situação cômica se
resolve em paralelo com o acúmulo de desastre
na vida pessoal de Ritter, de forma a uma enriquecer
a outra. O ponto máximo talvez seja o momento
em que ele acaba forçando a barra para que a
então ex-esposa o convide para jantar e ele
termina precisando aturar os insultos da ex-sogra e
do ex-enteado. A cena mais memorável do filme,
porém, é a batalha das camisinhas luminosas,
um destes momentos exemplares de Edwards levando um
conceito muito além do que a maior parte dos
cineastas consideraria de bom tom: Ritter é convencido
por uma mulher a usar uma das camisinhas luminosas do
namorado (um famoso e nada simpático cantor de
rock), as luzes se apagam, o corno adentra o recinto,
Ritter se esconde, o corno coloca uma também,
Ritter é descoberto e nos vemos observando uma
tela escura com dois objetos luminosos a perseguir um
ao outro.
As Confusões de um Sedutor jamais funcionaria
se Edwards e Ritter não fossem capazes de nos
vender o sujeito como alguém que, apesar de todo
o seu talento para atrair o caos, se mostrasse também
inegavelmente atraente. A paciência do cineasta
para os maiores defeitos das suas personagens, assim
como sua facilidade em nos aproximar de seus problemas,
é vital para que estes filmes funcionem. Minhas
Duas Mulheres talvez seja o mais simpático
filme já feito sobre bigamia. Edwards nos apresenta
passo a passo a construção da armadilha
que vai levar Dudley Moore até o ponto em que
está com duas esposas em trabalho de parto no
mesmo andar de hospital. O filme funciona basicamente
porque as mesmas qualidades que fazem com que o espectador
simpatize com Moore são justamente aquelas que
o levaram até a condição de bígamo.
Moore é ao mesmo tempo um completo inocente e
um completo culpado, e quanto mais ele insiste que não
quer machucar nenhuma das suas mulheres, mais óbvio
fica o tamanho do estrago quando a verdade vem à
tona. Os protagonistas destes filmes de Edwards sempre
mantêm esta condição de serem ao
mesmo tempo adoráveis e detestáveis, e
a maneira como ele os conhece e consegue fazer com que
nós também terminemos por conhecê-los
é parte integral da força de filmes como
Minhas Duas Mulheres ou As Confusões
de um Sedutor.
Victor ou Victoria? é a primeira vista
à exceção entre estes filmes, a
começar por se passar na Paris dos anos 30
mas é talvez aquele em que o ponto de vista de
Edwards se revela de forma mais cristalina (ponto de
vista este muito marcado pelo que ele observa ao seu
redor). Esta Paris artificial de estúdio outro
universo de showbiz, por sinal é só
mais uma nova versão da Los Angeles de Edwards.
Estamos aqui num universo mecanizado que muito se assemelha
ao de S.O.B., mas que pode ser observado por
uma ótica mais distanciada. Como na maior parte
dos filmes pós-Mulher Nota 10, tudo gira
à primeira vista em torno de sexo, já
que para Edwards a identidade sexual é fator
determinante do nosso comportamento social (um pequeno
insight que passa quase despercebido em Mulher Nota
10: é a visão do jovem e atlético
amante de Robert Webber que primeiro obriga Dudley Moore
a assumir sua crise). Victor ou Victória?,
o título já nos diz, é um filme
sobre identidades sexuais em curto-circuito; mulher,
travesti, gay, machão, a loira burra e todas
as demais identidades apresentadas pelo filme se dissolvem
e se movem até turvarem completamente. Pouco
importa se James Garner magnífico saiba ou
não se está apaixonado por uma mulher
ou por um homem afeminado, pois o filme já estabelece
seu desejo muito antes do personagem descobrir a verdade.
No universo proposto por Edwards ou coloca-se este desejo
em ação ou agoniza-se e morre. Victor
ou Victoria é logo uma seqüência
natural tanto para Mulher Nota 10 quanto para
S.O.B.: as fluidas identidades do primeiro encontram
o universo mecanizado do segundo.
A fluidez de Victor ou Victoria? invade inclusive
a construção do filme, que radicaliza
as variações de tom habituais de Edwards:
trata-se tanto do mais leve dos filmes do cineasta como
daquele mais se aproximando de um tom aterrador, em
que a comédia mais rasgada ou o musical descontraído
convivem lado a lado com um romantismo exacerbado e
momentos extremamente secos (especialmente no primeiro
ato). Nisso, Assassinato em Hollywood (título
bastante banal para o original Sunset) é
uma espécie de seqüência para Victor
ou Victória?: novamente estamos num filme
de época (desta vez em Los Angeles) num universo
de figuras bastante icônicas com um James Garner
muito consciente das similaridades do material. Trata-se
do ficcional encontro de dois mitos: o histórico
(Wyatt Earp) e um cinematográfico (o hoje esquecido
Tom Mix) num universo de superfícies e facilidades
em constante transformação. Sunset
é um quase western que é também
uma quase sátira que ameaça mas nunca
se transforma num noir antes do tempo. Trata-se
de um filme quase no processo de se tornar algo: espécie
de filme-manufatura onde observamos a construção
de mitos tanto nas figuras que se movimentam pela
trama como muito dos elementos da história, logo
a importância da forma como o filme passeia pelas
variações. Trata-se do mais claro filme
de cinéfilo de Edwards desde Um Convidado
Bem Trapalhão de 68, que calhava de ser também
o mais regional dos seus primeiros filmes, em que a
loucura dos bastidores hollywoodianos era observada
por um extra indiano que não podia estar mais
distante daquele universo. Cada um à sua maneira,
Sunset e As Confusões de um Sedutor
encontram formas de fazer um último inventário
da obra de Edwards.
Filipe Furtado
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